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O Presente é tal qual como era Antigamente: Colonização, Violência e Expansão no Território Yanomami

Carolina Antunes Condé de Lima*

 

Ao pensarmos em Relações Internacionais (RI), como o próprio nome diz, o internacional se coloca como principal ambiente de análise da disciplina. Há, contudo, uma tentativa de mudar isso – cada vez mais se voltar para dentro tem se tornado tema das RI. Parte deste movimento se preocupa em olhar para os processos de colonização, epistemicídios e genocídios dos povos tradicionais em busca de entender como essas violências, que datam do século XV, se perpetuam e são determinantes para as formações dos Estados nacionais.

A luta por território no Brasil é uma das principais características formadoras do nosso país. A história oficial nos conta que desde a chegada dos colonizadores portugueses até a expansão do território e a anexação do Acre, no início do século XX, a extensão do país foi conquistada por desbravadores e aventureiros que contribuíram para a construção da grandeza nacional. A história não oficial, entretanto, nos conta um outro lado: a expansão territorial brasileira foi construída com muito derramamento de sangue e não por homens que se aventuraram de forma heroica pelo território desconhecido, tampouco por tratados assépticos assinados entre portugueses e espanhóis ou representantes do governo brasileiro e dos Estados vizinhos.

Outra questão mal contada é a história sobre as disputas territoriais terem findado no início do século XX. Podemos dizer que as disputas de demarcação de fronteiras acabaram com a anexação do Acre em 1903 após a assinatura do Tratado de Petrópolis, mas conflitos por territórios são constantes no Brasil até hoje. Uma das regiões que segue sendo foco de disputas é o território amazônico. O norte do país foi a última região a passar pelo processo de colonização e desde o período regencial têm sido pauta de preocupação nacional. Desde pressões internacionais pelo direito à navegação do Rio Amazonas, passando pela  invasão francesa e britânica dos territórios brasileiros (1832 e 1835, respectivamente) e até o interesse das grandes potências internacionais pela região, exposta ao longo do século XX, o Norte do Brasil preocupa constantemente os elaboradores da Defesa Nacional.

No final da década de 1980 e início da década de 1990, quando se iniciaram as discussões sobre securitização e o acréscimo da questão do meio ambiente às pautas de segurança internacional, vários nomes da política mundial seguiram a fala de Henry Kissinger, ainda na década de 1970, sobre a necessidade de a Amazônia deixar de ser território brasileiro. O histórico de intervenções militares dos EUA em países da América Latina ao longo de sua história permitiu que o temor fosse visto como uma possibilidade real pelos militares brasileiros. Além disso, tal fala fez reviver o medo gerado pelo histórico plano de Mathew Fontaine Maury, tenente reformado da Marinha norte-americana, que pretendia enviar escravizados para a Amazônia para que fosse cultivado algodão – à época, criou-se o medo de o território amazônico ser transformado em um “novo Texas” (VIDIGAL, 2014). Dado o histórico, é possível dizer que a ideia de que a Amazônia é área de interesse internacional não é um delírio das Forças Armadas e isso é determinante na definição de políticas e ações realizadas pelas forças de segurança na região.

A necessidade da defesa do território a qualquer custo criou no paradigma militar a ideia de que a soberania brasileira sobre a região só poderia ser garantida por meio da colonização em oposição ao seu “vazio demográfico”. Conforme apontado por Adriana Marques (2007, p. 49), o vazio demográfico da região amazônica não se refere ao despovoamento, em seu sentido literal, mas sim ao “vazio de uma população comprometida com a preservação da soberania brasileira sobre a região”. Dessa forma, como parte da Política de Segurança Nacional adotada pelos militares durante a ditadura (1964-1985), foi estabelecida uma política de transferência populacional – “homens sem terra” que sofriam no sertão nordestino, foram incentivados a ocupar as “terras sem homem” do norte do Brasil.

A partir da tríade colonização – segurança nacional – soberania, a ocupação da região amazônica tem sido feita sem qualquer respeito pelas populações que ali sempre estiveram. Pelo contrário, graças ao incentivo do Estado, que nos últimos quatro anos retomou de forma acentuada a política de ocupação da região, estabelecida ainda no período colonial e revivida durante o período ditatorial brasileiro, o norte do país segue sendo saqueado por garimpeiros e madeireiros ilegais, enquanto as populações indígenas da região lutam para manter seu território. De acordo com o Observatório da Mineração, entre 1985 e 2020, a área minerada no Brasil cresceu mais de seis vezes, 72% dessa área minerada encontra-se na Amazônia e 495% desse crescimento se deu em territórios indígenas nos últimos dez anos. Esses dados demonstram que a luta das populações originárias pela manutenção de suas terras não é algo recente, muito pelo contrário, ela data da colonização e permanece até hoje. Nos últimos anos, no entanto, as questões sobre as disputas pela terra, na região, têm ganhado maior atenção em vista da política do atual governo e pelo avanço das discussões sobre mudanças climáticas e a urgência que se criou em salvar o que ainda resta da floresta.

Logo após a eleição do presidente Bolsonaro, em 2018, a revista Nature publicou um editorial no qual afirmava que “o novo presidente brasileiro era uma adição às ameaças globais à ciência”. Além disso, quase em tom preditivo, o editorial alertou para a questão da expansão da fronteira agrícola ao apontar que “sua eleição envia[va] os sinais errados para proprietários de terras e empresas que detêm considerável influência sobre o futuro da maior floresta tropical do planeta”. Nos últimos quatro anos, assistimos a retirada de proteções legais do território amazônico e quebras anuais de recordes de desmatamento da região. De acordo com o último levantamento do INPE, o desmatamento entre 2019-2022 foi 60% maior do que no quadriênio anterior – a área total desmatada equivale a um território maior do que o estado do Rio de Janeiro. Dessa área, mais da metade do desmatamento ocorreu em terras públicas, sendo que 83% aconteceram em área federal, segundo o IPAM.

O desmatamento nos territórios indígenas teve, em média, um aumento de 153% quando comparado com o período de medição anterior, enquanto nas unidades de conservação a área desmatada teve um aumento de 63%. Em termos federativos, os estados mais afetados são Amazonas (AM), Acre (AC) e Rondônia (RO), áreas que sofrem com a expansão agrícola. A preservação das terras indígenas é assegurada pela Constituição de 1988. O Artigo 231 reconhece “a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, além de creditar à União a obrigação de “demarcar, proteger e respeitar todos os seus bens”. Os parágrafos 1º e 2º do Artigo ainda determinam que o uso da terra é de exclusividade da população indígena, e o parágrafo 3º impõe que qualquer aproveitamento dos “recursos” das terras deve ser aprovado pelo Congresso Nacional. Por fim, o parágrafo 6º estabelece que “são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.

Apesar da Constituição, os povos indígenas e suas terras têm sido constantemente desrespeitados, invadidos e explorados. Atualmente no Brasil 728 Terras Indígenas são reconhecidas – 124 estão em identificação, são Terras em estudo por grupos de trabalho nomeados pela FUNAI; 43 são Terras identificadas, com relatório de estudo aprovado pela presidência da FUNAI; 74 são Terras declaradas pelo Ministério da Justiça; e 487 Terras homologadas e reservadas, ou seja, reconhecidas pela Presidência da República, adquiridas pela União ou doadas por terceiros. De acordo com o IBGE, essas Terras correspondem a 11,6% do território nacional e sua maior concentração está na chamada Amazônia Legal[1], território que corresponde a 58,93% do território nacional.

Dentre as 487 Terras demarcadas, está a Terra Indígena Yanomami (TIY), a maior reserva indígena do país. A sua homologação e demarcação aconteceu via Decreto Presidencial no dia 25 de maio de 1992, reconhecendo 9.664.975,48 hectares e um perímetro de 3.370km como território deste grupo. Localizada nos estados do Amazonas e Roraima, faz fronteira com a Venezuela e é lar para 26.780 indígenas, divididos em oito povos diferentes (a representação cartográfica pode ser visualizada no site Terras Indígenas no Brasil).

As primeiras informações sobre os povos Yanomamis datam de 1787; o aumento das invasões que começaram a descaracterizar seu território e sua demografia, no entanto, são da segunda metade do século XX. Desde então diversas invasões de garimpeiros, do Exército, de construtoras e mineradoras têm alterado a dinâmica do território e do seu povo. Durante a ditadura militar brasileira, várias aldeias foram dizimadas por doenças transmissíveis e desnutrição, o que levou à denúncia do Estado brasileiro por tais crimes pela Comissão Nacional da Verdade (CNV). O fim da ditadura, entretanto, não significou o fim das mortes. Em 1993, os Yanomamis foram massacrados naquele que ficou conhecido como o primeiro caso de genocídio do país, o caso de Haximu, quando homens, mulheres e crianças foram executados por garimpeiros.

A primeira grande onda de invasão do garimpo na TIY foi no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Apesar da diminuição da corrida pelo ouro no território, muitos núcleos de garimpagem se mantiveram ali, de onde permaneceram perpetuando violência e problemas sanitários para a população. Desde a eleição de  Bolsonaro, houve uma piora notável na questão. Bolsonaro, que sempre se manifestou contra a implementação das demarcações de Terras Indígenas, também tem um histórico de incentivos à liberação da mineração em territórios demarcados e do seu uso para expansão da monocultura. Desde 2019, ano em que assumiu o governo, o número de garimpeiros na TIY só cresce, confirmando a hipótese apontada pela Nature após sua eleição. Em 2019, de 6 a 7 mil homens exploraram ouro ilegalmente na região demarcada.  Em 2020, o Projeto de Lei 191/20 foi apresentado no intuito de regulamentar a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em terras indígenas – apenas neste ano, 2.234 hectares foram destruídos no TIY, um aumento de 30% em relação ao ano anterior. O ano de 2021 foi ainda mais devastador para os Yanomamis – foram 3.272 hectares de destruição, um aumento de 46% em um ano, a maior taxa anual desde 1992. Desde 2016, o garimpo em Terra Yanomami cresceu 3.350%.

A invasão do garimpo representa também o aumento da violência contra os povos que habitam a região.  O avanço da violência tem como consequência o aumento de mortes – apenas em 2021, 101 yanomamis foram mortos por garimpeiros. Além das mortes diretas por conflitos, houve aumento da desnutrição infantil, de casos de malária, diversos casos de intoxicação por mercúrio (consequência direta da mineração fluvial), casos de abusos sexuais contra mulheres e crianças, inclusive o estupro seguido de morte de uma menina de 12 anos em abril deste ano, e denúncias de casos de exploração sexual de crianças e mulheres yanomamis em troca de comida.

Olhar para a questão Yanomami e todas as outras lutas por terra no território brasileiro desde o período da colonização ajuda a pôr fim na retórica da formação estatal pacífica do nosso Estado. Nossa formação foi, e ainda é, realizada de forma violenta contra as populações originárias. A formação de fronteiras, assim como seu processo de independência, não foi consequência de conflitos internacionais, mas sim resultados de diversas lutas internas, o que impacta diretamente na dinâmica das nossas Forças Armadas: a sua história foi forjada a partir de um olhar para dentro, para seu próprio território e para os povos que aqui habitam; a lógica é a de combate ao inimigo interno que ameaça a soberania nacional. O retorno da doutrina militar para o governo fez com que o processo de ocupação e destruição das “terras vazias” do norte do país fosse acentuado; para os Yanomamis, além da ocupação de suas terras e do conflito sempre iminente, os últimos anos contribuíram para a construção de uma tragédia humanitária. “Em 2021, a região registrou quase 50% dos casos de malária do País e hoje existem cerca de 3 mil crianças com déficit nutricional” (Agência Câmara de Notícias, 2022).

A questão dos Territórios Indígenas pode até não ser vista como causa de conflitos internacionais ou como um tema das Relações Internacionais pelo mainstream, que ainda teima em excluir o interno de suas dinâmicas, mas sua existência é uma consequência direta do modelo de colonização e do Estado nacional que aqui foi construído. Este ator tão determinante das RI, no Brasil, teve uma construção discursiva diferente: o inimigo é interno e precisa ser tutelado a todo custo para que nossa sobrevivência, autonomia econômica e soberania sejam garantidos.

[1] A Amazônia Legal corresponde à área de atuação da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM delimitada em consonância ao Art. 2o da Lei Complementar n. 124, de 03.01.2007. A Amazônia Legal foi instituída com o objetivo de definir a delimitação geográfica da região política de atuação da SUDAM como finalidade promover o desenvolvimento includente e sustentável de sua área de atuação e a integração competitiva da base produtiva regional na economia nacional e internacional. A região é composta por 772 municípios. (IBGE, Amazonia Legal, s.d. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/geociencias/cartas-e-mapas/mapas-regionais/15819-amazonia-legal.html?=&t=o-que-e. Acesso em: 30/10/2022).

*Carolina Antunes Condé de Lima é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), bolsista CAPES e pesquisadora do GEDES e do Observatório de Conflitos desde 2021.

Imagem em destaque: Ouro do sangue Yanomami. Vista aérea da região do rio Mucujaí na Terra Indígena Yanomami. Por: Bruno Kelly/Amazônia Real.

Referências

MARQUES, Adriana. Amazônia: pensamento e presença militar. 2007. 232 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

VIDIGAL, Carlos Eduardo. História das relações internacionais do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2014.

 

Desprojetos de Brasil

Mariana Janot*
David Succi Júnior**
Lívia Peres Milani***
Samuel Alves Soares****
Texto publicado originalmente em Le Monde Diplomatique Brasil.

No dia 19 de maio de 2022, o Instituto General Villas Bôas realizou o lançamento oficial do Projeto de Nação: o Brasil em 2035. O documento foi elaborado em parceria com o Institutos Sagres e o Instituto Federalista e coordenado pelo general da reserva Rocha Paiva. O vice-presidente, Hamilton Mourão, participou do evento de lançamento. Não resta dúvidas da influência dos militares na elaboração do documento. Segundo os autores, o projeto visa estabelecer uma Estratégia Nacional – também referida como Grande Estratégia ou Política Nacional -, que seja de longo-prazo, “apartidária, sem radicalismos ideológicos, étnicos, religiosos, identitários ou de qualquer natureza”. A proposta representa a continuidade de uma ideologia de segurança nacional, tem insuficiências metodológicas e vem embutida de uma visão autoritária.

O Projeto de Nação como continuidade de uma tradição militar

No projeto, se descreve um Brasil majoritariamente conservador e liberal, socialmente coeso em seus valores morais, éticos e cívicos, resistente ao movimento globalista, movido pelo agronegócio e mineração, esvaziado de legislações de demarcações de terras indígenas e assertivo no combate ao crime organizado e à corrupção. Para alcançar este Brasil, seria necessário superar interesses político-partidários, identitários e radicais, incapazes de compreender os verdadeiros interesses nacionais, que somente o conservadorismo evolucionista poderia interpretar. O projeto afirma que este é o caminho para o futuro, porém, este é, precisamente, o passado, e tem nome: Doutrina de Segurança Nacional.

É indicativo que o site oficial do Instituto Sagres indique como fundamentação do estudo figuras e ideias caras ao grupo militar e civil que Lentz (2022) denominou como conservador-intervencionista. Desde a década de 1930 se constrói uma ideologia de segurança nacional em que cabe às Forças Armadas o dever e o direito de interpretar, formular e implementar os objetivos nacionais da coletividade brasileira, junto a um grupo de tecnocratas e elites econômicas, mantendo uma visão elitista do que o Brasil já foi, do que o país é no presente e, sobretudo, do que o Brasil deve ser.

Na Escola Superior de Guerra, espaço de articulação do Golpe de 1964, se formulam planejamentos e manuais para uma Política Nacional e uma Grande Estratégia norteadas pela indissociabilidade entre segurança (conservação) e desenvolvimento (progresso controlado). Em seus Manuais Estratégicos, bem como no Planejamento Estratégico de Golbery do Couto e Silva, há uma constante ênfase na análise estratégica de conjuntura e levantamento de situações futuras de curto e longo prazo, no âmbito doméstico e global, a fim de se delimitar e perseguir os Objetivos Nacionais Permanentes e Atuais, sob gestão e intervenção consciente do Estado (Couto e Silva, 1981, pp.403-409).

Em continuidade desta tradição, no Projeto de Nação lançado nesta semana, somos apresentados a uma Estratégia Nacional “consolidada em documentos que englobam as estratégias a serem aplicadas para conquistar e ou manter os Objetivos Nacionais (ON), estabelecidos pelo mais alto nível de direção do Estado (nível político), e de acordo com Diretrizes Político-Estratégicas por ele definidas” (Sagres, 2022, p.14). Os autores do projeto o anunciam como resultado de um estudo de cenários, que visa a democracia estável e ao desenvolvimento do país.

As insuficiências metodológicas

A elaboração de cenários prospectivos é um instrumento empregado por diversas entidades públicas, privadas, nacionais e internacionais no processo de planejamento, tomada de decisão e comunicação de objetivos e políticas. De forma resumida, cenários prospectivos são imagens do futuro e dos desenvolvimentos que podem produzir determinadas situações no futuro. Há uma série de metodologias e diferentes ferramentas empregadas para sua formulação, cujo ponto comum é o pressuposto de que as cenas resultantes não têm propósito preditivo, isto é, de asseverar o que de fato ocorrerá. São instrumentais justamente por explorarem possibilidades e ampliarem o imaginário político. Neste sentido, os cenários estão sempre, inevitavelmente, no plural. São cenas, comumente entre três e quatro, que buscam compreender o maior espectro possível de alternativas.

Ainda que o documento disponibilizado ao público não explique os meandros da sua elaboração, diversas inconsistências metodológicas podem ser depreendidas, das quais destacamos duas. A primeira delas é a noção de “cenário foco”. O relatório afirma não ser um exercício de adivinhação, no entanto, apresenta apenas uma possibilidade de futuro. Os mini cenários são elementos de uma única cena. O general Rocha Paiva, coordenador do projeto, explica que este cenário foi escolhido por ser o mais provável. Definir um desenvolvimento futuro como mais provável, assim como o único a ser comunicado, contradiz diretamente tanto o objetivo deste tipo de instrumento – ampliar as possibilidade e alternativas -, quanto a afirmação dos próprios elaboradores de que não buscam prever o futuro. Ademais, incorre-se no risco de meramente projetar para o futuro a conjuntura presente.

A ideia de probabilidade conduz à segunda inconsistência metodológica: como a probabilidade foi mensurada? O general que coordenou o projeto revela duas etapas deste processo, uma consulta realizada no interior dos ministérios, sem especificar quais, e outra mais ampla, com a participação de dois a três mil respondentes, de acordo com o que informou. Não fica claro, no entanto, como essas consultas foram feitas, quem participou, qual peso foi dado para cada resposta e como foi possível depreender a probabilidade de futuro a partir da percepção deste grupo, posteriormente filtrada pelos elaboradores do documento final. Rocha Paiva também informa que antes de indicar a hipótese mais provável os respondentes deveriam ler uma explicação, que denominou de “ambientação”, uma vez que nem todos os participantes conheciam todos os temas.

De pronto é possível questionar em que medida este texto explicativo influenciou a resposta dos consultados. Assumir a impressão de um grupo, cujas características desconhecemos, como método de mensurar probabilidade faz com que posicionamentos políticos, morais e possíveis preconceitos sejam descritos e apresentados como fatos, legitimado pelo que denominam no documento de “métodos consagrados”. Ademais, relatórios de cenários prospectivos são convencionalmente informados e introduzidos por ampla pesquisa acadêmica, levantamento de dados e bibliografia especializada, o que não se faz presente no documento e na apresentação deste projeto.

Por fim, construir cenários prospectivos é um exercício intrinsecamente normativo e, mais que em outras atividades acadêmicas, não existe neutralidade. Os autores do Projeto de Nação, no entanto, não explicitam essa limitação, pelo contrário, partem do pressuposto de que falam pela nação, entendendo que “significativa parcela do povo [brasileiro] hoje se identifica como conservador e liberal” (Sagres, 2022, p. 12). Essa assertiva, no entanto, é contestável. O “povo brasileiro” é plural e reduzi-lo a uma única visão de mundo, que ademais não ressalta as especificidades das minorias, é sintomático de autoritarismo. O problema não é elaborar cenários a partir de um ponto de vista conservador, mas apresentar esta visão como sendo a opção do “povo brasileiro”. A retórica de “povo” é contraditória também por ser conectada com um elitismo explícito, expresso na defesa dos interesses do agronegócio, que deveria ser estimulado e protegido “como fator estratégico de segurança alimentar global e nacional” (Sagres, 2022, p.37). A seguir, apresentamos outros indícios de autoritarismo embutidos no documento e convidamos a todos a refletirem sobre nossos contrapontos em alguns dos aspectos críticos deste projeto.

As contradições e o autoritarismo expressos no Projeto de Nação

Existem diversas contradições e problemáticas explícitas no texto divulgado pelo Instituto General Villas Bôas. Nesta sessão, analisamos aquelas presentes nas visões sobre o sistema internacional, a proteção da Amazônia, a educação e a segurança pública. Existem dois pontos da concepção sobre a ordem internacional explicitada que merecem destaque: a visão de rivalidade entre grandes potências e o combate ao globalismo. No primeiro caso, embora o diagnóstico não seja impensável, considerando as atuais disputas protagonizadas por China e Estados Unidos, o mesmo é naturalizado e parece haver resignação do papel do Brasil como potência média, desvalorização da diplomacia e subestimação da capacidade brasileira em promover consensos internacionais. Já o uso da palavra globalismo é sintomático: trata-se de um termo não acadêmico, mobilizado pela nova direita global, para entre outros pontos, se contrapor ao avanço transnacional de pautas progressistas relativas à proteção do meio-ambiente e aos direitos das mulheres e de populações LGBTQI+. O documento propõe, portanto, uma continuidade da política externa do governo Bolsonaro ainda que mais pragmática em relação à China – como defende o vice-presidente.

No que se refere à Amazônia, o projeto explicita a necessidade de aumentar a produção do agronegócio, da mineração e reduzir as legislações que protegem o meio ambiente e as terras indígenas. As forças armadas têm, historicamente, defendido o argumento de que a região amazônica precisa ser “integrada” ao Estado brasileiro, na premissa de que é um “vazio”, servindo como uma espécie de fronteira final brasileira que precisa ser garantida pelo braço forte e mão amiga, já que os povos originários não fazem parte da Pátria pensada dentro dos espaços militares, deixando um espaço desocupado pelo Estado, vulnerável às “cobiças internacionais”. A aversão militar à demarcação de terras indígenas é palpável, já tendo sido caracterizada como “irresponsável e caótica” pelo atual ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Heleno, quando era comandante de tropas na Amazônia. A defesa da ocupação das terras por meio do agronegócio e mineração, em evidente agressão às comunidades que vivem no território – poucas semanas após uma criança Yanomani ter sido estuprada e assassinada por garimpeiros e indígenas de sua aldeia terem sido forçados a fugir – é apresentada no projeto como uma diretriz de Defesa Nacional. Esta diretriz não é apenas autoritária: é genocida.

Os autores do projeto consideram que o ambiente escolar estava promovendo agressões físicas, mentais e psicológicas contra as crianças e adolescentes por meio de ideologias perpetradas por educadores. Este quadro não encontra nenhum respaldo com os fatos da realidade brasileira. Mais de 70% dos assassinatos de crianças abaixo de nove anos são cometidos por pessoas conhecidas das vítimas, em sua maioria, no ambiente doméstico ou nas ruas. Ainda, mais de 60% dos casos de estupro e violência sexual de jovens ocorrem dentro das casas, e mais de 80% dos criminosos são pessoas conhecidas – familiares e pessoas próximas à família. Políticas públicas de educação sexual, saúde e conscientização nas escolas protegem as crianças e jovens da agressão. Quanto ao ensino superior, defende-se a cobrança de mensalidade nas universidades públicas, com justificativa pouco evidente.

Segundo o projeto, o problema não é o orçamento, e sim a gestão. Neste sentido, indica-se a necessidade de aprimorar a gestão por meio do controle sobre a escolha dos reitores, prática já adotada pelo atual governo federal, evidenciando ainda mais o teor autoritário do documento. Ademais, há um explícito ataque à autonomia acadêmica e de cátedra, ao acusar as instituições públicas de ensino superior de suposta ideologização. Recentemente, argumentos, frequentemente infundados, sobre má gestão e imposição de pensamento doutrinário tem sido mobilizados politicamente para descredibilizar as instituições de ensino e pesquisa do país, como justificativa para redução orçamentária e deslegitimação de críticas ao governo federal [1] [2] [3]. De forma correlata, ao longo de todo o documento, políticas de educação e pesquisa são restritas a áreas consideradas estratégicas, o que abre espaço para punição a setores mais politicamente engajados, assim como um foco exclusivo na pesquisa aplicada, em detrimento da pesquisa básica.  Gratuidade do ensino e autonomia universitária são pilares do ensino público e de qualidade país, cuja reforma pode, e deve ser feita de forma democrática, plural e inclusiva.

No texto afirma-se que, na segurança pública, o crime organizado prosperava no país devido à leniência política em vitimizar criminosos, algo já registrado, por exemplo, na documentação oficial da Intervenção Federal no Rio de Janeiro, sob comando do General Braga Netto. O discurso de que é preciso ser mais agressivo é de longa-data no país, porém a realidade brasileira é de alto punitivismo, como mostram os altos índices de encarceramento, e de estratégias violentas de combate ao crime organizado e narcotráfico, retratadas pelas operações letais constantes em favelas e periferias que não resolvem a criminalidade, e aumentam o número de mortes de policiais e civis, em sua maioria, jovens negros.

Ainda, o projeto defende a maior autonomia das Polícias Militares e o estreitamento de suas relações com o Exército. Atualmente, há um projeto em discussão e revisão na Câmara dos Deputados, cujo relator é capitão Augusto (PL), que busca garantir maior autonomia às PMs, a fim de blindar a corporação. O vice-presidente, general Mourão, concorda com essa ideia geral, desde que mantendo o cargo de generalato restrito às forças armadas, para que a hierarquia seja mantida. Além disso, o Projeto afirma que há preconceito com Policiais Militares ocupando cargos políticos.  Não se trata de preconceito, e sim, de uma premissa democrática básica: profissionais que exercem função policial e militar, especializados no uso de armas e comando de tropas não devem assumir cargos políticos enquanto estiverem na ativa ou imediatamente após serem transferidos para a reserva. É preciso um distanciamento, temporal e espacial, entre a profissão armada e a esfera política, pois esta é uma arena de diálogo e negociações, e não há como negociar sob ameaça das armas. Todo este movimento indicado no projeto caminha na direção contrária à assertividade civil sobre as forças de segurança no país, que já se encontra gravemente debilitada.

Na cerimônia de lançamento, o general Rocha Paiva apresentou o Projeto de Nação e perguntou se “alguém não quer este Brasil?”. Respondemos, sonoramente, que este Brasil não nos interessa. Nos interessa um Brasil democrático, plural, diverso, popular e soberano, pensado e dialogado livremente por todos que nele habitam.

 

* Mariana Janot é doutoranda no Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp/Unicamp/PUC-SP). Bolsista CAPES. Contato: mariana.janot@unesp.br.

**David Succi Júnior é doutorando no Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp/Unicamp/PUC-SP).

***Lívia Peres Milani é pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp/Unicamp/PUC-SP). Contato: livialpm@gmail.com. Bolsista Capes-PrInt.

****Samuel Alves Soares é professor associado da Universidade Estadual Paulista e do Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp/Unicamp/PUC-SP).

Os quatro autores são membros do Grupo de Elaboração de Cenários Prospectivos, vinculado ao Gedes.

Imagem: Divulgação do Projeto de Nação: o Brasil em 2035. Disponível em Portal Gov.br.

 

Referências

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Barbosa, Lisa. Penido, Ana. Entre a cruz e a espada: quais as armas corretas para defender a Amazônia? São Paulo: Brasil de Fato, 25 de março de 2022. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2022/03/25/artigo-entre-a-cruz-e-a-espada-quais-as-armas-corretas-para-defender-a-amazonia>

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Castro, Helena. A violência de gênero contra as populações indígenas: a outra face do desenvolvimento neoextrativista. São Paulo: ERIS, 03 de maio de 2022. Disponível em: <https://gedes-unesp.org/violencia-de-genero-contra-as-populacoes-indigenas/>

Conectas. Brasil se mantém como 3º país com maior população carcerária do mundo. 18 de fev. de 2020. Disponível em: <https://www.conectas.org/noticias/brasil-se-mantem-como-3o-pais-com-a-maior-populacao-carceraria-do-mundo/>

Couto e Silva, Golbery. Planejamento estratégico. Brasília: Editora UnB, 1981

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Succi Jr., David. Gontijo, Raquel. Soares, Samuel (org). O futuro da universidade pública e da ciência no Brasil em 2040. São Paulo: Editora Unesp, 2022. Disponível em: <http://editoraunesp.com.br/catalogo/9786557140666,o-futuro-da-universidade-publica-e-da-ciencia-no-brasil-em-2040>

Teixeira, Pedro. Mourão: “Relação Brasil-China sempre foi de alto nível”. Brasília: CNN, 23 de maio de 2022. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/mourao-relacao-brasil-china-sempre-foi-de-alto-nivel/>

Tenente, Luiza. Reitores eleitos nas universidades federais e não empossados por Bolsonaro criticam ‘intervenções’ do governo. Educação: G1. 07 de dez. de 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/12/07/reitores-eleitos-nas-universidades-federais-e-nao-empossados-por-bolsonaro-criticam-intervencoes-do-governo.ghtml>

Unicef. Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. Outubro de 2021. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/media/16421/file/panorama-violencia-letal-sexual-contra-criancas-adolescentes-no-brasil.pdf>

Consequências para as populações civis e os limites legais humanitários na guerra Rússia-Ucrânia

Beatrice Daudt Bandeira* 

Após meses de tensão nas relações Rússia-Ucrânia e aproximação das tropas russas das fronteiras do país vizinho, iniciou-se, no último dia 24 de fevereiro, uma guerra na Europa, autorizada pelo presidente russo, Vladimir Putin.  O ato, que é reconhecido por Putin como uma “operação militar especial”, gera reações e preocupações internacionais, além de efeitos potenciais para a política de segurança na Europa, bem como para a balança de poder mundial vigente. Para as populações presentes na Ucrânia, restam os custos da guerra: aumento generalizado de suas vulnerabilidades e baixas de civis. Cenário que deve se agravar conforme a escalada do conflito. O risco humanitário decorrente do uso da força em um conflito armado internacional é uma discussão fundamental, mas tradicionalmente deixada em segundo plano pelos combatentes. Em contraponto, sugerimos uma análise que se concentre nas consequências de hostilidades às populações civis na Ucrânia, discussão que se apoia nos relatos de organizações humanitárias e de direitos humanos internacionais, que estão atuando in loco, e que têm se preocupado com possíveis violações das leis internacionais da guerra pelos combatentes.

Os dilemas acerca da coexistência entre a Rússia e a Ucrânia são de longa data. A preocupação da Rússia com a Ucrânia consiste no temor de uma expansão ocidental para os países do leste-europeu e os espaços pós-soviéticos. O que, de fato, aconteceu com o estabelecimento de alianças entre os atuais membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e os esforços de consolidação da defesa, segurança e alcance da esfera de influência ocidental na região. Para contextualizar, em dezembro de 2021, a Rússia apresentou à OTAN e aos Estados Unidos um conjunto de exigências, entre as quais a garantia de que a Ucrânia não se junte à aliança militar, o que, caso concretizado, como alega Putin, seria uma ameaça crítica à dimensão política da segurança nacional russa. O acordo foi rejeitado.

A retórica russa versa sobre a preocupação de que a Ucrânia se torne, portanto, uma nação “anti-Rússia”. Além disso, os interesses russos na região partem, também, de perspectivas geopolíticas, bem como laços históricos comuns aos dois países e o elemento identitário. A Ucrânia está localizada em uma região estratégica de acesso ao Mar Negro pelo Porto de Sebastopol e Putin reconhece o país como vital para a preservação do nacionalismo e a unidade nacional russa – o idioma russo é, inclusive, falado na Ucrânia, principalmente no leste do país. O que, todavia, não serve em hipótese alguma como justificativa para as agressões que caracterizam o cenário atual.

Afora as possibilidades de resolução das controvérsias por meios diplomáticos, a medida prática de contenção adotada pelas autoridades do Ocidente (como o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e líderes da União Europeia) tem sido, até o momento, a imposição de sanções e pressões financeiras, inclusive penalidades a bancos russos, mas para as quais a Rússia parece ter se preparado, em maior ou menor grau. No âmbito da comunidade internacional, a Rússia, como um dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, exerce seu poder de veto sobre resoluções que condenem a invasão, como aconteceu no dia 25 de fevereiro.

Do ponto de vista do escopo legal e humanitário, diversas organizações internacionais têm buscado chamar atenção para a necessidade de que as forças ofensivas no conflito cumpram com as normas do Direito Internacional Humanitário sobre meios e métodos de guerra.  Pronunciaram-se acerca do tema: Comitê Internacional da Cruz Vermelha, International Rescue Committee, Human Rights Watch (HRW), Anistia Internacional, além de agências das Nações Unidas, como Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), por exemplo.

À medida que a crise se prolonga, as vulnerabilidades das populações presentes na Ucrânia tendem a ser rapidamente agravadas assim como a dificuldade de suprir suas necessidades básicas o que terá impacto, especialmente, sobre grupos como os de crianças, mulheres, idosos e enfermos. Deve-se considerar que as ameaças à dignidade humana dos afetados por qualquer conflito armado são reais e urgentes. Lógica que serve para destacar os possíveis impactos humanos, sociais, psicológicos, políticos e financeiros no curto e longo prazo.

As longas filas de carros que deixam a Ucrânia evidenciam a situação dramática, marcada pela preocupação da população com sua segurança, pelo reconhecimento, por parte da Rússia, da integridade territorial do país e o inadiável apelo para o restabelecimento da paz. As consequências da guerra devem afetar o fluxo de deslocados internos (que já atinge o número de 160 mil) e de refugiados ucranianos: ao menos 875 mil pessoas que, apesar das condições meteorológicas, deixaram seu país desde o início da invasão russa com destino aos países vizinhos, Polônia, Moldávia, Romênia e Hungria. Tais números devem aumentar rapidamente nos próximos dias.

Para as comunidades que permanecem nas zonas de conflito (que têm recorrido às estações subterrâneas de metrô como abrigo contra bombas) está em jogo o acesso aos bens básicos de sobrevivência, como atendimento médico seguro e eficaz. E serão por elas testemunhados os impactos que ataques militares, quando feitos de forma indiscriminada – o que descumpre as leis da guerra, inclusive -, têm sobre infraestruturas civis essenciais, incluindo instalações de saneamento, distribuição de eletricidade e transmissão, bem como serviços de distribuição de alimentos e água, prédios habitacionais, hospitais e escolas. Tipo de ataque ilustrado pelas imagens de um míssil, disparado pela Rússia, que destruiu parte de um prédio residencial, na madrugada do dia 26, na cidade de Kiev, onde as  tropas ucranianas (e civis) defendem o país contra a escalada de violência por parte da Rússia, que tem como objetivo o controle político da capital e a ambição de derrubar o governo do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky.

Até o momento, as consequências desta guerra para a população civil não têm sido suficientemente vislumbradas pelas partes políticas envolvidas. Organizações humanitárias e de direitos humanos internacionais, a exemplo da Anistia Internacional, a própria ONU e a HRW, citadas anteriormente, alertam para a preocupação com possíveis ataques que violem as leis internacionais. Destaca-se que o Direito Internacional Humanitário (ou leis da guerra), apesar de não proibir que a escalada de violência armada tenha lugar no espaço urbano, apresenta como obrigação legal e moral dos combatentes não realizar ataques deliberados e imprudentes que atinjam pessoas e infraestruturas civis. Além disso, o uso de arsenal, que inclui munições de fragmentação, também é proibido por sua capacidade de gerar danos generalizados a civis.

Relatos feitos por trabalhadores das organizações têm informado sobre a dificuldade do monitoramento da violência e de supostas violações do Direito Internacional Humanitário, que podem estar acontecendo por todo o país. A HRW, por exemplo, apurou um caso em que um míssil balístico russo, com munição de fragmentação, atingiu um hospital na cidade de Vuhledar. Como bem lembra a Anistia Internacional: “Alegações por parte da Rússia que apenas utilizam armas guiadas de precisão são manifestamente falsas”.

Conforme a ONU ao menos 136 civis (sendo 13 crianças) foram mortos até o dia 1 de março. Número que, assim como o de casos de feridos pelos ataques – registrado até o momento como sendo de 400 pessoas -, ainda permanece incerto. O Ministério da Saúde da Ucrânia estimou que, até o dia 27 de fevereiro, o número de vítimas foi de 352 civis mortos (sendo 14 crianças) e 1.684 feridos. A constante desinformação disposta em relatórios não oficiais, as dúvidas sobre a extensão da invasão russa, e a falta de segurança para que os profissionais humanitários realizem seus trabalhos devem contribuir diretamente para o agravamento da situação no país.

Enquanto Putin indica um posicionamento ainda mais agressivo, ao colocar em alerta as força nucleares do país, a comunidade internacional permanece buscando mecanismos de sanção na tentativa de minar a incursão russa sobre o país vizinho. Protestos pró-Ucrânia e em solidariedade às vítimas têm sido registrados ao redor do mundo, inclusive no Brasil. No escopo do humanitarismo internacional, as organizações pedem, de forma urgente, para que as partes ofensivas reconheçam e ofereçam garantias – e demonstrem tal compromisso na prática – de que trabalhadores humanitários, pessoas e instalações civis não serão alvos.

* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP – Unicamp – PUC-SP) e pesquisadora do Grupo de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). Seus interesses de pesquisa incluem as áreas de ação humanitária e análise de conflitos armados internacionais. Contato: beatricedaudtb@gmail.com.

Imagem: Pessoas se abrigam no metro de Kiev, 2022. Divulgado por: Wikimedia Commons.

Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher: Reflexões acerca das raízes da violência contra as mulheres e a questão do Estado (Parte II)

Gabriela Aparecida de Oliveira *

Maria Eduarda Kobayashi Rossi **

 

No artigo “Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher: avanços e retrocessos na América Latina e no Brasil sob a pandemia” oferecemos um panorama sobre os efeitos da criação do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher sobre as vidas de mulheres latino-americanas e brasileiras. Embora haja avanços significativos, principalmente no que se refere a uma maior visibilidade das desigualdades de gênero e ao estímulo a ações de prevenção e combate às violências contra mulheres e meninas, não podemos perder de vista o fato de que a América Latina continua a ser a região mais perigosa para elas fora de uma zona de guerra. E por que isso ocorre?

De acordo com autoras feministas como Rita Segato (2014, 2016), os corpos das mulheres são espaços onde as múltiplas violências foram naturalizadas desde a colonização. A cultura patriarcal tem disseminado ações de enorme crueldade, que se fazem presentes até hoje. Nas palavras de Segato: “O acesso sexual está contaminado pelo universo do dano e da crueldade — não apenas apropriação dos corpos, sua anexação enquanto territórios, mas sua destruição. Como os danos, conquista, roubo e estupro estão associados, eles permanecem, portanto, como ideias correlatas ao longo do período de instalação das repúblicas e até a atualidade[1]” (SEGATO, 2016, p. 21, tradução nossa).

No atual contexto de pandemia e ascensão de governos mais autoritários na região, a violência contra mulheres ganha requintes de crueldade. Desamparadas pelo Estado, elas sofrem uma sobrecarga com os serviços domésticos e de cuidado ⎼ aderindo a jornadas duplas ou triplas de trabalho, e ficando mais expostas à violência doméstica por passarem mais tempo em casa. Observa-se, portanto, uma forte relação entre a perpetuação da violência e exploração dos corpos feminilizados ⎼ principalmente de mulheres não brancas e periféricas, como ressaltado por Françoise Versés (2021) e, na realidade brasileira, por autoras como Sueli Carneiro (2011), Lélia Gonzalez (2020) ⎼ e a lógica capitalista de  histórica acumulação de capital.

Como ressaltado por Silvia Federici (2019), o trabalho não-remunerado ou “trabalho reprodutivo” refere-se a uma série de atividades relacionadas à educação, ao cuidado e à reprodução biológica, os quais são imprescindíveis para a reprodução da força de trabalho que mantém as engrenagens do capitalismo funcionando.

A lógica neoliberal também cria seu próprio discurso acerca do trabalho feminino, salientando que a solução para libertar-se da opressão está no abandono das tediosas tarefas domésticas e na inserção das mulheres no mercado de trabalho. Entretanto, estes discursos conhecidos como “feminismo liberal” escondem o fato de que a sua “libertação” só pode acontecer mediante a exploração da mão-de-obra feminina não-branca, e muitas vezes migrante, que passa a desempenhar essas tarefas indesejadas (HOOKS, 2020). Em contextos de crise socioeconômica e desamparo do Estado, as mulheres não-brancas são as mais afetadas, pois devem ocupar-se de atividades reprodutivas e de cuidado que, em outros momentos, poderiam ser desempenhadas pelo próprio Estado por meio de políticas públicas. Como exemplo, podemos citar as políticas públicas para a concessão de apoios financeiros, além do oferecimento e melhoria de serviços públicos de cuidado, como asilos para idosos, creches e escolas integrais para crianças (ILO, 2018). No que se refere às questões reprodutivas, as políticas oferecidas pelo Estado contam com a oferta de anticoncepcionais, capacitação dos profissionais de saúde para assistência em planejamento familiar, programas de saúde e prevenção nas escolas, bem como a garantia de uma boa saúde e atendimento (BRASIL, 2005).

Segundo a Oxfam Brasil (2020), durante a pandemia, o desemprego atingiu principalmente mulheres negras (babás, empregadas domésticas, motoristas, profissionais da saúde) que não tiveram a opção de ficar em casa e seguiram trabalhando sob condições insalubres e com alto risco de contaminação. Não à toa, a primeira vítima do coronavírus detectada no Brasil foi uma mulher negra de 57 anos e empregada doméstica. A ONU Mulheres (2021) observa que, na região Norte do Brasil, as mulheres indígenas foram as mais impactadas, pois “são elas que acessam políticas públicas, vão à cidade e se expõem ao cuidar de vários assuntos da família, tendo que sair das aldeias”.

No que se refere à maior exposição à violência durante a pandemia, os índices de agressões, estupros e feminicídios aumentaram no Brasil e ao redor do mundo. Em 2019, três em cada dez mulheres foram violentadas e 1.326 feminicídios foram registrados no país (um aumento de 7,1% em comparação aos índices de 2018), além de um estupro a cada oito minutos. Em 2020, o número de feminicídios teve um pequeno acréscimo, o que não significa que seja um cenário menos alarmante: foram 1.350 casos que correspondem a uma mulher morta a cada seis horas.

Além de o fator étnico-racial ter uma importante influência sobre esses índices (as mulheres negras e indígenas são as mais expostas à violência), destacamos também a questão das mulheres transexuais e travestis. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), aproximadamente 70% da população trans do país não conseguiu acesso às políticas emergenciais do Estado, por conta da sua situação de vulnerabilidade social que inclui a falta de documentos e acesso à moradia e serviços básicos de saúde e educação. Muitas mulheres trans continuaram se prostituindo para manter sua renda, ficando mais expostas ao vírus. O isolamento social tampouco evitou violências, pois é dentro de suas casas – que deveriam ser, a princípio, o lugar mais seguro – que muitas mulheres são agredidas e mortas. No caso das mulheres trans, houve um acréscimo de 43% de assassinatos no ano de início da pandemia. Essa situação evidencia como a vulnerabilidade socioeconômica de mulheres está profundamente relacionada à violência sofrida por elas.

 

Realidades latino-americanas e perspectivas futuras

Perante a ineficiência dos Estados latino-americanos em promover boas condições de vida para a sua população (sobretudo feminina, negra, indígena e LGBTQIA+) em um contexto de crise econômica e pandemia, movimentos feministas da Argentina, Brasil, Chile, Uruguai, Venezuela, Colômbia, Equador, Bolívia e México têm resistido e se organizado para cobrar ações dos governos, além de recorrer a redes de apoio comunitário. Na realidade, tratam-se de demandas históricas que se tornaram ainda mais urgentes, senão, inadiáveis.

Nas manifestações do Dia Internacional da Mulher (8 de Março de 2021), as argentinas pediam a visibilização e a elaboração de políticas públicas para diminuir a superexploração das mulheres; o direito a uma lei trabalhista para travestis e transexuais e uma reforma judicial feminista contra a violência. Em complemento, sob o lema “A pandemia não é desculpa”, as uruguaias tomaram as ruas, mostrando o protagonismo das mulheres na mitigação da pobreza na pandemia. As chamadas “ollas populares” (“panelas populares”), refeitórios populares coletivos, atenderam milhares de pessoas em situação de vulnerabilidade no país.

Também se destacam movimentações no Chile, onde mulheres percorreram as ruas de Santiago em um movimento pela construção coletiva de uma nova constituinte, buscando enterrar a constituição neoliberal, autoritária e excludente da ditadura de Augusto Pinochet. Uma das características da nova constituição seria a “criação de um governo feminista que combata a violência de gênero e garanta o direito de cada mulher decidir sobre o seu corpo”. Nos dias atuais, as perspectivas são positivas para o Chile, onde o segundo turno das eleições presidenciais, realizado no dia 19 de dezembro, foi disputado por José Antonio Kast, um candidato pinochetista e ultraliberal (o conhecido “Bolsonaro chileno”), e Gabriel Boric,  representante da esquerda política nacional, terminando com a vitória desse último. A presença da extrema direita no país aparenta ser uma reação conservadora (ou “backlash”) a uma constituição que, dentre outras coisas, pretende incorporar uma perspectiva de gênero e objetivos feministas que podem abalar as estruturas vigentes. A conquista da esquerda, porém, traz esperança para outras eleições presidenciais, como a que ocorrerá no Brasil em 2022.

Tanto no Chile, quanto no Brasil e outros lugares do mundo, presenciamos a precarização das vidas de milhões de mulheres que continuam resistindo dentro de um sistema patriarcal, machista, misógino, racista e que ainda cultiva uma série de preconceitos contra a população LGBTQIA. Portanto, o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra a Mulher nos suscita reflexões que vão além da conscientização da sociedade e operacionalização de medidas a curto prazo: nos faz questionar toda a dinâmica capitalista que tem o poder de decidir quais corpos são dignos de viver e quais são matáveis (MBEMBE, 2016; BUTLER, 2020), e vislumbrar alternativas dentro e fora do Estado.

 

* Mestranda em Paz, Defesa e Segurança Internacional pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e pesquisadora do IARAS – Núcleo de Estudos de Gênero do GEDES.

** Graduanda em Relações Internacionais pela UNESP, bolsista FAPESP (processo 2021/04480-3).

Imagem por: UN WOMEN.

 

[1] No original “El acceso sexual se ve contaminado por el universo del daño y la crueldad —no solo apropiación de los cuerpos, su anexión a territorios, sino su damnación —. Conquista, rapiña y violación como damnificación se asocian y así permanecen como ideas correlativas atra- vesando el periodo de la instalación de las repúblicas y hasta el presente” (SEGATO, 2016, p. 21).

 

Referências Bibliográficas

BIROLI, Flávia; VAGGIONE, Juan Marco; MACHADO, Maria das Dores Campos. Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina. Boitempo Editorial, 2020.

BUTLER, Judith. Corpos Que Importam: os limites discursivos do” sexo”. n-1 edições, 2020.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo Afrolatinoamericano. Zahar; 1ª edição. 2020.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva. Editora Elefante: Coletivo Sycorax, 2019. Disponível em: http://coletivosycorax.org/wp-content/uploads/2019/09/CALIBA_E_A_BRUXA_WEB-1.pdf

HOOKS, bell. Teoria feminista. Editora Perspectiva SA, 2020.

MBEMBE, Achille.  Necropolítica. In: Arte & Ensaios. Revista do PPGAV/EBA/UFRJ. n. 32. 2016.

SEGATO, Rita Laura. La guerra contra las mujeres. Traficantes de sueños, 2016.

SEGATO, Rita. Las nuevas formas de la guerra y el cuerpo de las mujeres. Revista Sociedade e Estado – Volume 29, Número 2,  Maio/Agosto 2014.

VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. Ubu Editora, 2020.

ZARAGOCIN, Sofía. La Geopolítica del Útero: hacia una geopolítica feminista decolonial en espacios de muerte lenta. IN: Cruz, D y Bayon, M. (Eds.), Cuerpos, territorios y feminismos. Quito: AbyaYala y Estudios Ecologistas del Tercer Mundo, 2018.

Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher: origens, avanços e retrocessos na América Latina e no Brasil sob a pandemia (Parte I)

Gabriela Aparecida de Oliveira *

Maria Eduarda Kobayashi Rossi **

 

O Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra a Mulher (25 de novembro) foi instituído em 17 de dezembro de 1999, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, e homenageia as irmãs Pátria, Minerva e Maria Teresa Mirabal. Elas foram assassinadas por seu ativismo contra a ditadura de Rafael Leónidas Trujillo (1930-1961), na República Dominicana. A criação da data pode ser vista como um reflexo dos esforços de movimentos feministas, os quais objetivam operacionalizar transformações sociais pelo fim da violência de gênero ⎼ que atinge não apenas mulheres e meninas, mas também homens, meninos e a população LGBTQIA +.

O contexto de sua criação foi marcado por uma série de avanços sobre as questões de gênero na agenda internacional. Destaca-se, em ordem cronológica: a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw, 1979), a Declaração sobre Eliminação da Violência Contra a Mulher (1994), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994), a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim (1995), bem como a elaboração da Resolução 1325/2000. Essa última originou a Agenda Mulheres, Paz e Segurança, ressaltando a necessidade da participação de mulheres nos espaços políticos, nos processos de resolução de conflitos e construção da paz.

Desde sua origem, a data objetiva mobilizar a consciência social crítica, estimulando a efetivação de projetos, políticas públicas e planos de ação nacionais para prevenir as violências contra as mulheres e meninas, bem como proporcionar a igualdade de gênero na política[1]. Incentiva-se, também, a realização de pesquisas e a difusão de dados sobre o tema em questão. Vale mencionar que, no âmbito da ONU, muitos projetos são financiados pelo Fundo internacional para a eliminação da violência contra as mulheres e pelo Fundo para a Igualdade de gênero, os quais foram criados, respectivamente, em 1996 e 2009.

No Brasil, desde 1997, tais órgãos contribuíram para o financiamento de diversos projetos como o “Iyà Àgbá – Rede de Mulheres Negras Contra a Violência”, realizado pela Fundação Criola em 2005, e o projeto “Juventude e Arte para qualquer parte: pelo fim da Violência contra as Mulheres” realizado pela Casa da Mulher Trabalhadora – CAMTRA, em 2017. Além disso, há cada vez mais iniciativas que buscam envolver os homens nas ações transformativas, incentivando a construção de masculinidades positivas. Nesse sentido, uma das instituições brasileiras que mais se destacou foi o Promundo, com os projetos “Engajando Homens para Acabar com a Violência Baseada em Gênero: um Estudo de Intervenção e Avaliação de Impacto em Vários Países” (2008) e “Envolvendo os jovens para acabar com a violência contra mulheres e meninas no Brasil e na República Democrática do Congo” (2016-2017).

No ano de 2021, em homenagem às pautas trazidas pelo dia 25 de novembro, a ONU Mulheres criou a campanha “Una-se pelo Fim da Violência contra as Mulheres”, realizada entre os dias 20 de novembro e 10 de dezembro. As ações buscaram reduzir as violências que se manifestam das formas: direta (agressão física), estrutural, psíquica, sexual (como o estupro, mutilação genital), obstétrica e política. Tais violações cresceram durante o período da pandemia de COVID 19, e merecem atenção nacional e internacional. De acordo com a ONU Mulheres (2021): “A pandemia exacerbou fatores de risco para a violência contra mulheres e meninas, incluindo desemprego e pobreza, e reforçou muitas das causas profundas, como estereótipos de gênero e normas sociais preconceituosas. Estima-se que 11 milhões de meninas podem não retornar à escola por causa da COVID-19, o que aumenta o risco de casamento infantil. Estima-se também que os efeitos econômicos prejudiquem mais de 47 milhões de mulheres e meninas vivendo em situação de pobreza extrema em 2021, revertendo décadas de progresso e perpetuando desigualdades estruturais que reforçam a violência contra as mulheres e meninas”.

Na América Latina, o alto índice de violências de gênero e feminicídios – que coloca a região como o lugar mais perigoso no mundo para as mulheres – também sofreu um acréscimo durante a pandemia (TRICONTINENTAL, 2020). Em um contexto de crise econômica e ascensão de governos de direita e extrema direita na região, as violências contra mulheres e outros grupos marginalizados aumentam em número e crueldade. Observa-se, na América Latina, uma alta instabilidade política e econômica, bem como um acirramento do conservadorismo religioso (principalmente neopentecostal) e do neoliberalismo. Nesse contexto, atores de distintos perfis ideológicos coincidem no desprezo aos direitos humanos e aos tratados internacionais assinados para a garantia de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Ainda que o período anterior, marcado por governos de esquerda e centro esquerda, não tenha, necessariamente, promovido um avanço desses direitos, hoje vemos o fortalecimento da atuação de grupos conservadores religiosos e seculares. Assim, além da retirada de direitos de mulheres e outros grupos vulnerabilizados, presenciamos, em muitos países, a transformação de movimentos sociais em inimigos políticos. Como consequência, temos a deslegitimação de suas pautas e atos violentos dirigidos a ativistas (BIROLI et. al., 2020).

No Brasil, o projeto “Elas no Congresso” do Instituto AzMina, divulgou um levantamento das ações do governo de Jair Bolsonaro, constatando que os discursos misóginos, machistas, racistas e LGBTQIA+fóbicos do presidente de extrema-direita têm sido, de fato, colocados em prática. Em uma análise profunda de decretos, portarias, medidas provisórias, cartilhas de campanhas governamentais, direcionamento orçamentário, execução orçamentária e propostas legislativas, o AzMina concluiu que o ataque aos direitos das mulheres tem caracterizado as ações do atual governo.

Dentre essas ações, destacamos a perda de status ministerial por parte da antiga Secretaria de Políticas para Mulheres, a criação do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (cujos discursos restringem a concepção de “família” à família patriarcal e heteronormativa, também conhecida como “família triangular”: composta por pai, mãe e filhos, na qual a mulher deve desempenhar papéis de gênero tradicionais como cuidar da casa e dos filhos), e a extinção do programa “Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência” (que foi substituído pelo programa “Proteção à vida, fortalecimento da família, promoção e defesa dos direitos humanos para todos”). Também se destaca a má gestão dos recursos que seriam destinados às políticas voltadas para a promoção de direitos e oportunidades sociais para mulheres. Dados mostram que o governo deixou de usar um terço dos recursos aprovados entre 2019 e o primeiro semestre de 2021, uma cifra de quase R$ 400 milhões que poderiam ter sido gastos no combate à violência de gênero, incentivo à autonomia e saúde feminina.

Ainda que o panorama das lutas feministas mostrem um avanço de suas conquistas e impactos sobre a sociedade, os dados recentes deixam evidente que muitas ações e políticas públicas devem ser feitas. Nesse sentido, é importante refletir sobre o papel do Estado na promoção da igualdade de gênero. Essa questão é assunto do artigo “Reflexões acerca das raízes da violência contra as mulheres e a questão do Estado” (clique aqui para ler!).

 

* Mestranda em Paz, Defesa e Segurança Internacional pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e pesquisadora do IARAS – Núcleo de Estudos de Gênero do GEDES.

** Graduanda em Relações Internacionais pela UNESP, bolsista FAPESP (processo 2021/04480-3).

Imagem por: UN WOMEN.

 

[1] Sobre este tema, é importante ressaltar  que a ONU Mulheres da América Latina e Caribe publicou, em 2020,  o documento “Rumo à paridade e à participação inclusiva na América Latina e no Caribe”, o qual foi elaborado em preparação para a 65º Comissão da ONU sobre a Situação da Mulher (CSW), trazendo avanços e desafios sobre a participação das mulheres em espaços públicos. Além disso, em 2020, a ONU esquematizou um mapa sobre a participação das mulheres na política, o qual pode ser consultado pelo link: <https://lac.unwomen.org/en/digiteca/publicaciones/2020/03/women-in-politics-map-2020>. Acesso em dezembro de 2021.

 

As violências contra crianças e adolescentes no Brasil

Nos últimos tempos, brasileiros e brasileiras que possuem importantes cargos políticos – como o próprio presidente, Jair Bolsonaro, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves e o ministro da Educação, Ricardo Vélez  – têm se manifestado sobre formas de proteger as crianças e os adolescentes no Brasil. Apesar da ênfase em se autoproclamarem defensores da infância e da adolescência, não se discute o que significa, de fato, protegê-las, e a quais formas de violência elas estão submetidas. Frases de efeito como “Nunca a infância foi tão atingida como nos dias de hoje” são repetidas à exaustão, fazendo com que levantar a bandeira da defesa das crianças e dos adolescentes torne-se um senso comum, com baixos esforços de reflexão e que diz pouco sobre as formas de violência na nossa sociedade brasileira. Refletir sobre as consequências e as manifestações da violência é um primeiro passo para elucidar essa situação.

Johan Galtung (1969; 1990), analista da violência e da paz cujo trabalho ganhou destaque na década de 1960, já pensava a conceituação da violência de forma ampla. O autor propôs que violência é o desequilíbrio entre a realização potencial e real das capacidades humanas. Em outras palavras, Galtung considera que há violência quando os indivíduos não conseguem desenvolver suas plenas potencialidades humanas – seja por um impedimento direto de um indivíduo sobre o outro ou por um obstáculo estrutural da sociedade que nega aos seres humanos condições de justiça social. Segundo esse raciocínio, a violência – física e psicológica – pode se expressar nas formas direta, estrutural e cultural.

A violência direta manifesta-se em ocasiões em que o sujeito e o objeto da violência são identificáveis como indivíduos concretos. Essa forma de violência expressa de forma mais explícita, por exemplo, em atos de violência de um indivíduo sobre outro, como em um assassinato, ataque com armas ou mesmo por meio de armas de destruição em massa. A violência direta impressiona e choca, pois é visível, preocupante, gera medo e insegurança pessoal. Pode ser percebida, identificada, denunciada e seus agentes punidos (GALTUNG 1969).

Não menos preocupante é a violência estrutural (ou indireta). Na concepção de Galtung, a estrutura da sociedade em que os indivíduos nascem os impede de desenvolver todo o seu potencial como humanos porque não lhes são dadas as mesmas oportunidades (FERREIRA, 2016; GALTUNG, 1969; 1990). Isso abarca as desigualdades sociais; as relações desiguais de poder; o acesso desigual a serviços básicos de educação e saúde; discriminação racial; discriminação de gênero; exploração econômica de uma classe social sobre as outras. A violência estrutural manifesta-se independentemente da existência de um indivíduo praticando atos diretos de violência sobre outro. Ela existe na estrutura das sociedades e está ancorada na injustiça social.

 Por sua vez, a violência cultural ocorre por meio de símbolos, imagens, religião, ideologia, discursos inflamados, “onipresença do retrato do líder”, hinos e paradas militares, linguagem e arte, padrões de comportamento e consumo (GALTUNG, 1990, p. 291). Ou seja, são valores produzidos de cima para baixo, aquilo que possui valor simbólico capaz de justificar a dominação das estruturas de violência e naturalizar a violência estrutural.  A combinação da violência estrutural com a violência cultural pode resultar na violência direta, no sentido em que as pessoas encontram formas de se rebelar contra esse sistema desigual, que as forçam a buscar soluções pela violência direta (GALTUNG, 1969; 1990).

Justamente por serem profundas e enraizadas na sociedade e não tão explícitas como atos de violência direta, as formas estrutural e cultural acabam por ficar menos visíveis nas análises sobre violência, permanecendo quase intocáveis em uma sociedade que pensa mais em formas paliativas de frear a violência direta, e menos em formas de realmente tratar a violência estrutural. Mais do que isso, frequentemente as violências estrutural e cultural não são sequer consideradas formas de violência, mas sim consequências naturais do mérito de uns e demérito de outros: os indivíduos em melhores condições socioeconômicas são merecedores de desfrutar tais benefícios de vida, enquanto os indivíduos que não possuem essas condições são culpabilizados por não atingirem esse mesmo patamar social.

Envolvidas por esses três tipos de violência estão as crianças e adolescentes. De fato, eles estão sujeitos à violência direta quando são vítimas de sequestros, assassinatos, tráfico de crianças, pedofilia, entre outros. Porém, mesmo as formas de violência direta os atingem de maneira discriminatória. As crianças e os adolescentes negros e de baixa renda são mais vulneráveis a esse tipo de violência. São vítimas da violência extrema do próprio aparelho de segurança estatal que, em tese, foi feito para defendê-los. Por meio de atos de repressão policial desproporcionais – como espancamentos e mortes – em periferias de centros urbanos, presencia-se a banalização da violência contra jovens negros e pobres.

As crianças e os adolescentes brasileiros já partem de níveis socioeconômicos muito distintos. A violência estrutural é expressa quando lhes é dada diferentes chances de acesso à educação, quando lhes é negada acesso a lazer e saúde (direitos que estão garantidos no Estatuto da Criança e do Adolescente). Ocorre também quando esse mesmo Estatuto não é visto como garantidor de direitos, mas como um malefício que deve ser descartado, pois incentivaria a “malandragem e a vagabundagem infantil”. Violência é utilizar crianças e adolescentes como instrumentos morais para espalhar notícias deturpadas que aprofundam ainda mais a naturalização da violência estrutural. Violência também é manipular e inventar (des)informações sobre a educação sexual e ao cercear o acesso dos jovens à educação sexual nas escolas (afetando principalmente as meninas, que são culpabilizadas pela gravidez indesejada).  A violência contra a criança e o adolescente manifesta-se ao naturalizar a morte de crianças e adolescente em favelas e tratá-los como bandidos. Por meio de símbolos culturais como discursos, imagens e cenas de ódio, além de incentivar crianças e adolescentes a utilizarem armas, a violência se faz presente ao naturalizar uma cultura de ódio e hostilidade.

Portanto, a violência consiste em negar o acesso às mesmas oportunidades de desenvolvimento, além de não promover o acesso a uma cultura que incentive a paz. Ademais, é subestimar a capacidade de agência dos jovens ao moldá-los sob a rigidez do ensino militarizado como melhor forma de educação sem, entretanto, discutir junto à sociedade que tipo de educação está sendo oferecida e como ela contribui para formar cidadãos críticos e pensantes e não apenas obedientes às formas de dominação cultural e estrutural.

  A proteção de crianças e adolescentes está relacionada a todas as políticas que incidem – direta ou indiretamente – sobre a infância e a adolescência, tais como o acesso a creches, direito a licença maternidade e paternidade, direitos trabalhistas para que os pais possam também ter condições de cuidar de seus filhos e filhas da melhor maneira. Logo, proteger crianças e adolescentes abarca também protegê-los desse tipo de violência estrutural, ou seja, fornecer condições para que toda a sociedade possa cuidar de nossas crianças e adolescentes e para que eles tenham plenas capacidades críticas para serem agentes de transformação mundial.

É preciso levar em consideração esse ambiente de constante violência direta, estrutural e cultural para entender que, mesmo quando crianças e adolescentes são agentes da violência direta – isto é, quando praticam atividades criminosas como furto, roubo, tráfico de drogas – muitos não o fazem por “vagabundagem e malandragem infantil”.  Fazem-no porque estão inseridos em uma estrutura social em que cometer atos criminosos apresenta-se como uma possível forma de sobrevivência e de driblar algumas manifestações da violência estrutural, visto que fornecem certo ganho econômico e um vislumbre de ascensão social.

 Ao enxergarmos o quanto as violências são complexas, variadas e profundas, concluímos que respostas simples para proteger crianças e adolescentes são ineficazes e insuficientes. Além disso, soluções simplistas propostas por autoridades brasileiras acabam sendo formas de perpetuar as violências, no sentido em que não proporcionam discussões construtivas que evidenciem a dimensão estrutural que a temática possui. Nesse cenário, crianças e adolescentes não conseguem atingir seus plenos potenciais para se tornarem, elas próprias, agentes de transformação no mundo.

 

Giovanna Ayres Arantes de Paiva é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC/SP) e pesquisadora no Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

Referências bibliográficas:

GALTUNG, Johan. Violence, Peace and Peace Research. Journal of Peace Reasearch, v.6, n.3, 1969.

_____. Cultural Violence. Journal of Peace Reasearch , v. 27, n.3, 1990.

FERREIRA, Marcos Alan. Contemporaneidade dos Conceitos de Paz e Violência em Johan Galtung e sua aplicabilidade para a América do Sul. In: Winand, E.; Rodrigues, T. and Aguilar, S. Defesa e Segurança no Atlântico Sul. Aracaju: UFS Press, 2016.

Imagem: CC/ Gustavo Minas.

Armas para apagar as luzes

Matheus de Oliveira Pereira*

Um conhecido adágio diz que “para todo problema complexo existe uma solução simples, elegante e errada”. Registrada a ausência de elegância, é impossível não recordar a máxima ao lermos as notícias de que, na tarde do dia 15 de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro assinou o decreto que altera os dispositivos que ficaram conhecidos como “Estatuto do Desarmamento”, regulamentando a  Lei nº 10.826/2003 e modificando o decreto nº 5.123/2004.

A finalidade da mudança promovida por Bolsonaro é flexibilizar as regras para aquisição de armas de fogo e marca o cumprimento de uma das promessas mais emblemáticas de sua campanha presidencial; não por acaso, a assinatura se deu na primeira cerimônia pública deste tipo desde o início do governo.

Durante o ato, o presidente afirmou que o decreto visava restituir ao cidadão o direito à legítima defesa, declarando que este era uma desejo que havia sido soberanamente expresso nas urnas, além de atacar de maneira mais incisiva o gravíssimo problema de segurança pública enfrentado pelo Brasil nos últimos anos. O verniz democrático da justificativa oculta algumas sutilezas que, como tudo que cerca este governo, não parecem nada alvissareiras.

Do ponto de vista da segurança pública, a medida é, no mínimo, temerária e causa divergência inclusive no interior da base de apoio do governo. A literatura acadêmica aponta que mais armas, em geral, significam mais mortes, de maneira que não há razão crível para supor que facilitar o acesso às armas de fogo terá algum efeito positivo sobre a trágica taxa de homicídios no país. Os dados do Ministério da Saúde mostram que, desde o Estatuto do Desarmamento, a taxa de homicídios evoluiu em ritmo mais lento no país. A flexibilização parece fadada a aumentar o número de mortes, constituindo-se em uma preocupação adicional sobretudo às populações marginalizadas e alvo de violência constante como mulheres, homo e transsexuais e moradores das periferias (não custa lembrar: a maioria dos mortos por arma de fogo no Brasil não corresponde mais ao perfil do morador da Maré ou do Capão que da rua Dias Ferreira ou da Av. Faria Lima). Outra lembrança oportuna é que, num passado não muito distante, um certo deputado Jair Bolsonaro defendia, no plenário da câmara, a legalização de grupos paramilitares.

Há algo mais a ser considerado. É provável que Bolsonaro não estivesse pensando nestes termos ao assinar o decreto, mas o que sua medida faz, na prática, é refutar um princípio básico da forma estatal de organização política. A fundação do Estado moderno é indissociável do imperativo de segurança e está atrelada à premissa de que a melhor maneira de assegurar a todos a segurança necessária à vida e à realização das potências humanas era centralizar o uso da força na autoridade estatal. Filósofos como Thomas Hobbes e John Locke, talvez a caminho de integrar o index do ministro da educação, argumentam nessa toada, e Locke – pai do liberalismo que supostamente lastreia o governo do liberal-novo Bolsonaro – é enfático defensor da tese de que as liberdades individuais estarão mais bem protegidas pela concentração do poder coercitivo no Estado. A mediação dos conflitos sociais não poderia ser feita diretamente pelos indivíduos porque, deste modo, os critérios de justiça seriam variáveis e isso tenderia a produzir desordem e insegurança.  A centralização da violência organizada nas mãos do Estado tem, assim, o fito de proteger os cidadãos da violência resultante dos conflitos sociais, e é uma das ideias mestres da modernidade.

A mais notável exceção está nos Estados Unidos da América, inspiração evidente de Bolsonaro, que possui uma das mais permissivas políticas de acesso a armas de fogo do mundo. As peculiaridades do caso estadunidense demandam mais espaço que o disponível para serem adequadamente tratadas, mas algumas indicações devem ser feitas. A questão central é em que medida vale a pena buscar aproximar-se de modelo estadunidense. O país só perde para o Brasil em número de mortes por armas de fogo e possui uma cultura enraizada de atiradores que abrem fogo em escolas, ruas e casas noturnas. A história brasileira já não tem sangue o bastante – vide Vigário Geral, Candelária, Realengo e Osasco – para emular outras Columbines?

Por detrás de um ato previsto como de restituição à cidadania de um poder que lhe seria legítimo, está na verdade um atestado de falência e incompetência do Estado em prover aquilo que é sua função primária de ser. Facilitar o armamento ao cidadão é dizer-lhe cabe a ele sua autoproteção, revelando descrédito na capacidade da política e e suas instituições na mediação e acomodação dos conflitos e tensões presentes na sociedade, e em cujo seio repousa a origem da violência e criminalidade arrasadoras do Brasil.

O fato de a medida ser tomada na contramão de todas as evidências cientificas disponíveis só reforça o caráter hostil do governo à ciência, expresso, entre outras coisas, nos posicionamentos em relação às mudanças climáticas. Mostra ainda como a vocação do bolsonarismo parece ser uma emulação do quixotismo, elegendo como adversários os moinhos de vento da “doutrinação marxista”, do “globalismo” e da “ideologia de gênero”. Tudo isto seguindo uma prédica religiosa, que busca atacar as contradições próprias do nosso tempo sem se aproximar do cerne de sua causa: a brutal desigualdade socioeconômica e precarização das condições de vida produzidas pelas políticas econômicas que o atual delfim do governo pretende realizar ao paroxismo.

Embalado em armas, anti-cientificismo e retórica religiosa, o governo Bolsonaro parece querer resolver os dilemas da pós-modernidade apagando as luzes da modernidade, devolvendo-nos ao medievalismo que parece ser o ânimo intelectual de seu projeto.

 

* Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), professor da Universidade de Ribeirão Preto e pesquisador do Gedes.

Imagem por: Palácio do Planalto.