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Trump ambiciona a Groenlândia para fazer frente à presença russa e chinesa na região

No dia 27 de janeiro de 2025, Getúlio Alves de Almeida Neto, membro-fundador do Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético (CIRE), publicou uma análise no The Conversation sobre o interesse renovado de Donald Trump na Groenlândia e sua relação com a presença russa e chinesa no Ártico.

O artigo explora a estratégia dos EUA para a região, as disputas geopolíticas entre Washington, Moscou e Pequim, e os possíveis desdobramentos da abordagem de Trump, que considera até mesmo coerção econômica ou militar para adquirir a ilha.

Confira a análise completa para entender como o Ártico se tornou um novo palco de rivalidade entre as grandes potências.

Quais são as chances atuais de forças russas atacarem a Finlândia, Suécia ou Noruega?

No dia 23 de novembro de 2024, Hector Luis Saint-Pierre e Getúlio Alves de Almeida Neto, membro do Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético (CIRE), publicaram uma análise no The Conversation sobre as tensões crescentes entre a Rússia e os países nórdicos.

O texto aborda como a percepção russa sobre a expansão da OTAN influencia a dinâmica de segurança na região, além de explorar os preparativos de Suécia, Noruega e Finlândia para situações de crise e guerra.

Confira a análise completa para entender os desdobramentos estratégicos e o impacto do paradoxo da segurança nas relações internacionais.

A “liderança” regional do Uzbequistão e as Reuniões Consultivas de Chefes de Estado da Ásia Central: progresso ou estagnação?

O Uzbequistão tem se destacado como um ator chave na Ásia Central, liderando as Reuniões Consultivas de Chefes de Estado, que buscam fortalecer a integração regional e promover o crescimento econômico.

Neste texto, Guilherme Geremias da Conceição, membro do CIRE, explora o papel do país como líder regional, analisando os obstáculos à integração e os fatores históricos que moldam a política centro-asiática. O autor aborda como a região enfrenta desafios tanto no campo da segurança quanto nas relações econômicas e culturais, ao mesmo tempo em que busca um caminho para consolidar uma identidade regional única.

Leia o texto completo para mais insights sobre a dinâmica da Ásia Central.

Terra incógnita: a identidade nacional russa pós-dissolução da URSS

Maria Eduarda Carvalho de Araujo*

O dia 26 de dezembro de 2023 marcou 32 anos desde a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Este marco teve repercussões significativas na arena internacional, especialmente na forma como influenciaram os projetos e o comportamento da Federação Russa em contextos regional e global (Dias, 2014). Este texto disserta sobre o processo de formulação da identidade nacional russa após a dissolução da URSS, destacando as diferentes tradições e escolas civilizacionais, influenciadas pela interação e relações com o Ocidente (especialmente Estados Unidos e Europa) (Tsygankov, 2019). Assim, observa-se que o processo de estabelecimento de uma identidade nacional russa esteve a par com a necessidade de redefinição da estratégia nacional de política externa.

A dissolução da URSS marcou o colapso de um sistema de valores que refletia uma crença compartilhada sobre o destino da Rússia e das demais nacionalidades presentes naquele espaço geográfico (Ferraro Junior, 2016; Tsygankov, 2007). De acordo com Malinova (2017), este acontecimento exigiu a reconstrução das identidades nacionais das antigas repúblicas soviéticas em fronteiras simbólicas, adaptando e estabelecendo narrativas sobre o passado em um novo contexto político. A Federação Russa, em particular, enfrentou o desafio de desenvolver uma identidade nacional própria, pois, conforme argumentado por Malinova (2017) e Kuzio (1997), tanto a República Socialista Federativa Soviética Russa (RSFSR), quanto o Império Czarista, possuía uma identidade nacional distinta, pois a mesma passou pela construção da nação concomitantemente com a do império. Ou seja, a identidade nacional tendia a ser associada ao país como um todo, ao invés de alguma parte em específico. Dessa forma, após a dissolução da URSS, em 1991, a Federação Russa teve de estabelecer uma nova identidade nacional, recuperando recursos simbólicos e históricos, que estavam permeados por ideologia e sujeito a debates, gerando controvérsias profundas e alimentando conflitos políticos ao invés de promover uma coesão mais ampla.

Além disso, a dissolução da URSS, marcou uma situação de crise de identidade, reavivando o pensamento civilizacional na Rússia bem como o dualismo histórico sobre se a Rússia seria considerada um país europeu ou asiático (Tsygankov, 2007; Segrillo, 2016). Ao retomar o passado e a formação do Leste e Oeste, bem como as invasões de povos de ambos os lados, Segrillo (2016) aponta que a Rússia se viu obrigada a se posicionar estrategicamente com relação às influências externas, sendo desenvolvidas três escolas de pensamento sobre a civilização russa. A seguir se encontra uma tabela onde são apresentadas as principais características dessas escolas de pensamento. Contudo, vale pontuar que algumas existem desde o Império Czarista e todas são muito complexas e dinâmicas, dialogando entre si e apresentando, em certos pontos, similaridades ou até mesmo ambiguidades internas, abarcando também mudanças de paradigmas e alterações no decorrer do tempo:

Tabela 1 – Principais características das escolas russas de pensamento em política externa e a civilização russa

Descrição Atores Relação com as RIs
Ocidentalista (Westernizers) Enfatizam a semelhança e uma afinidade natural da Rússia com o Ocidente, o considerando uma civilização progressista e a mais viável. Por meio da união com as nações do Ocidente, a Rússia seria capaz de superar seu atraso econômico e político, bem como ser capaz de responder às ameaças externas. No período pós-soviético, pode ser subdividida entre liberais e sociais democratas. Alguns atores são:

●       Boris Yeltsin, ex-presidente da Federação Russa (1991 – 1999);

●       Dmitri Trenin, especialista russo e diretor do Carnegie Moscow Center entre 1994 e 2022.

Após a dissolução da URSS, os liberais russos estavam convencidos de que o novo mundo global era definido pela difusão do Ocidente, dos valores do mercado livre e da democracia liberal.

A visão de integração e parceria estratégica com o Ocidente, de Boris Yeltsin, assumia o desenvolvimento de instituições democráticas liberais e a construção de uma economia de mercado aos moldes ocidentais.

Estatista (Statists) Enfatizam a soberania, o status de grande potência nos assuntos globais; a defesa e fortalecimento do Estado Russo; nas capacidades econômicas e militares. Entre os principais atores pós-soviéticos, estão:

●       Yevgeny Primakov, primeiro-ministro da Rússia (1998 – 1999);

●       Sergei Karaganov, cientista político russo que dirige o Council for Foreign and Defense Policy.

Acreditam que a Rússia estaria exposta a ameaças externas e deveria permanecer uma grande potência capaz de responder a elas. Consideram a grandeza e a força da Rússia como objetivos de política externa.
Civilizacionista (Civilizationists) Enxergam a Rússia como uma civilização de valores culturais autênticos e distintos do Ocidente. Alguns pensadores defendem um compromisso com os valores do Cristianismo Ortodoxo, enquanto outros veem a Rússia como uma síntese de várias religiões e uma unidade eurasianista orgânica e distinta da cultura europeia e asiática. Composto por eurasianistas e nacionais comunistas. Algumas figuras contemporâneas são:

●       Patriarca Kirill, bispo ortodoxo russo;

●       Vladimir Putin, presidente da Federação Russa entre 2000 a 2008 e 2012 a 2024; e primeiro-ministro entre 1999 a 2000 e 2008 a 2012.

Mais orientados ao status quo, com respostas mais agressivas aos dilemas de segurança da Rússia. No contexto pós-soviético, alguns pensadores defendem a expansão externa como o melhor meio de garantir a segurança da Rússia, sendo também visto como legítimo e permitido no contexto internacional.

Fonte: tabela organizada com base em Tsygankov (2019); Tsygankov (2021) e Segrillo (2016).

As três escolas de pensamento procuram apresentar opções internacionais para a Rússia, de maneira a ter uma coerência com a história nacional e o mundo (Tsygankov, 2007; Segrillo, 2016). Como Tsygankov (2019) argumenta, a identidade da Rússia é um continuum, influenciado pela interação com o Ocidente em um processo histórico, retomando os tempos de Pedro, o Grande. Embora, em um contexto mais recente, as reformas de Gorbachev e a desintegração da URSS tenha aberto espaço para novos políticos russos que viam o país como uma parte da civilização ocidental, Tsygankov (2007) afirma que a tradição ocidentalista, quando aplicada no campo político pós-soviético, possuía fraquezas em estabelecer um paralelo histórico do país com o seu passado para justificar a adesão ao Ocidente. A perspectiva de integração fez necessário desenvolver instituições liberais democráticas e implementar reformas econômicas radicais, que aprofundaram a polarização sobre os caminhos que o país deveria seguir. O objetivo era inserir a Rússia e ganhar um status integral nas instituições econômicas e de segurança europeias, como a União Europeia (UE) e Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), seguindo o conceito de Casa Comum Europeia (Ferraro Junior, 2016, Tsygankov, 2007; Silva; Ilikova, 2022).

Porém, a conclusão foi que as reformas ocidentalistas e liberalizantes minavam a soberania russa e enfraqueciam a capacidade de modernização do Estado. Isso levou ao fortalecimento da oposição, que defendia uma identidade eurasianista e a Rússia como uma grande potência centrada em valores de ordem e segurança. À medida que o cenário se desenvolvia, apesar do processo de expansão da OTAN, os laços comerciais entre a Rússia e a Europa começaram a se fortalecer, consolidando o pensamento liberal no discurso nacional. O consenso sobre o eurasianismo, inspirado em Primakov, foi considerado ultrapassado e potencialmente conflituoso, exigindo uma revisão do dilema civilizacional da Rússia (Tsygankov, 2007).

Com a chegada de Putin ao poder nos anos 2000, a visão da Rússia como uma potência europeia marcou uma alteração na ideia civilizacional e uma nova visão dos interesses nacionais da Rússia (Tsygankov, 2019). Essa mudança de percepção baseou-se na exploração do passado russo, na história da identidade nacional e concentrou-se na segurança, na sobrevivência e na reconstrução econômica. Na segunda metade de 1999, os movimentos rebeldes chechenos e as explosões em prédios residenciais em Moscou, seguidos pela queda dos preços do petróleo, chamaram a atenção do Ocidente para a Rússia. Isso se deveu ao seu apoio na luta contra o terrorismo e à crescente importância do fornecimento de energia para as economias europeias (Tsygankov, 2007).

No entanto, após as revoluções coloridas na Geórgia, Ucrânia e Quirguistão, entre 2003  e 2005, juntamente com o forte apoio do Ocidente nestes movimentos, a Rússia os interpretou como desestabilizadores e direcionados contra o poder e a segurança do Kremlin. Além disso, a vontade da Ucrânia e da Geórgia em juntar-se à OTAN adicionou uma percepção russa de insegurança estratégica (Tsygankov, 2019). Este processo fez com que a Rússia emergisse como crítica ao Ocidente, buscando estabelecer seu próprio nicho econômico e político nos mercados globais e instituições políticas, bem como no reforço de sua influência no espaço pós-soviético (Dias, 2014; Tsygankov, 2021). Exemplos desses comportamentos são, como Dias (2014) aponta: as iniciativas regionais para preservar sua influência na região, por meio da Comunidade de Estados Independentes e a Organização do Tratado de Segurança Coletiva, também estão, assim como Tsygankov (2021) argumenta, as políticas de construção de uma União Econômica Euroasiática, a busca por melhorar a posição da Rússia dentro da Organização de Cooperação de Xangai e na movimentação para a Ásia, nas dimensões econômicas e políticas.

Como Tsygankov (2021) observa, as tensões entre Rússia e Ocidente, que vão, em um período mais recente, desde às revoluções coloridas, à guerra na Geórgia, em 2008, até a anexação da Crimeia, em 2014 e que atinge seu ápice com a crise ucraniana, por exemplo, auxiliaram no fortalecimento de vozes nacionalistas, que pressionaram o Kremlin a enquadrar seu discurso em termos civilizacionais, alterando sua trajetória para uma postura vista como antiocidental. Estes aspectos, ao lado da desintegração da URSS e o confrontamento com a necessidade de redefinir a estratégia de política externa, seguida pela dificuldade da Rússia em ser reconhecida e se projetar como um membro à altura do Ocidente nos fóruns internacionais contribuiu para um crescente orgulho nacional e fortalecimento dos valores distintos da Rússia e de seu caráter de grande potência (Dias, 2014; Tsygankov, 2021).

Concomitantemente, como Makio e Fuccille (2023) argumentam, as políticas de memória se tornaram uma questão de interesse do Estado desde 2005 e, a partir de 2012, passou a haver uma reformulação da identidade russa, se baseando em um apelo às memórias de eventos que marcaram a história russa. Malinova (2017) aponta que a Grande Guerra Patriótica (Segunda Guerra Mundial) se mostrou a mais utilizável em termos de pensar o passado da Rússia. Isso exigiu uma adaptação dos discursos soviéticos e das práticas de comemoração. Assim, a dissolução da URSS e seu passado previamente consolidado são usados para garantir a continuação da identidade ao longo do tempo por meio da memória e de suas políticas.

O que se observa são tentativas para a inserção da Rússia no sistema internacional, influenciadas pelo desenvolvimento e comportamento em relação ao Ocidente. Este processo parece entrar, conforme Dias (2022) aponta, em um novo momento de competição sobre uma área de influência contestada tanto pela União Europeia quanto pela Rússia. A autora argumenta que o comportamento russo na invasão da Ucrânia mostra que os esforços de controle do espaço pós-soviético é um elemento central para a Rússia. Ademais, como Tsygankov (2019) argumenta, esta movimentação vem se enquadrando em discursos que seguem linhas civilizacionais, retomando memórias de um passado sagrado e que destaca a Rússia como uma potência independente da civilização europeia, algo visto com clareza tanto no discurso de anexação da Crimeia, em março de 2014, quanto no discurso de início da operação militar especial na Ucrânia, em fevereiro de 2022.

Assim, o que se observa, por meio das escolas de pensamento russas e neste amplo processo político pós-soviético, especialmente mais recentemente, com a invasão na Ucrânia, é que o que determina as escolhas de política externa por parte de Moscou se baseia em como o Ocidente assimila a Rússia enquanto um membro igual e legítimo no sistema internacional. Neste processo, a legitimação da política externa russa baseia-se na articulação entre as tradições civilizacionais, que definem as imagens do país, sua identidade perante o mundo e na definição do futuro que se espera para a Rússia.

*Maria Eduarda Carvalho de Araujo é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bacharela em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). É bolsista CAPES, membro-fundadora do CIRE (Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético) e pesquisadora no Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: mec.araujo@unesp.br

Imagem: Foto de Roman Verton – Moscow, Rússia. Por: Pexels/Roman Verton.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DIAS, Vanda Amaro. A Crise Ucraniana e a Transformação das Dinâmicas de Segurança na Europa Oriental. Nação e Defesa, Lisboa, v. 162, n. 162, p. 45-70, ago. 2022.

DIAS, Vanda Amaro. As relações da Rússia com a Ucrânia, Bielorrúussia e Moldova: poder, dependências e assimetrias no espaço pós-soviético. In: DAEHNHARDT, Patrícia; FREIRE, Maria Raquel (org.). A política externa russa no espaço euro-atlântico: dinâmicas de cooperação e competição num espaço alargado. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014. Cap. 2. p. 57-84.

FERRARO JUNIOR, Vicente Giaccaglini. A construção do sistema político da Rússia pós-soviética: relações executivo-legislativo e federalismo de 1990 a 2015. In: SEGRILLO, Angelo; DOMINGUES, Camilo; FERRARO JUNIOR, Vicente Giaccaglini. Rússia, Ontem e Hoje: ensaios de pesquisadores do lea sobre a história da Rússia. São Paulo: Fflch/Usp, 2016. p. 57.

KUZIO, Taras. Borders, symbolism and nation‐state building: Ukraine and Russia. Geopolitics and International Boundaries, v. 2, n. 2, p. 36–56, 1997.

MAKIO, Danielle; FUCCILLE, Alexandre. The 2014 Russian Invasion of Crimea: identity and geopolitics. Revista Brasileira de Política Internacional, [S.L.], v. 66, n. 1, p. 1-20, 2023. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/0034-7329202300113.

MALINOVA, Olga. Political uses of the great patriotic war in post-soviet Russia from Yeltsin to Putin. In: FEDOR, Julie; KANGASPURO, Markku; LASSILA, Jussi; ZHURZHENKO, Tatiana. War and memory in Russia, Ukraine and Belarus. Glasgow: Palgrave Macmillan, 2017. Cap. 2. p. 43-70.

SEGRILLO, Angelo. EUROPE OR ASIA?: the question of Russia’s identity in the discussions between westernizers, slavophiles and eurasianists and an analysis of the consequences in present day russia. 2016. 279 f. Dissertação (Pós-Doutorado) – Curso de História, History Department (Fflch), Universidade de São Paulo, Sao Paulo, 2016.

SILVA, André Luiz da; ILIKOVA, Lilia. A política externa russa e suas relações com a América Latina e o Brasil. Iberoamerica, [S.L.], n. 4, p. 70-91, 2022. Institute of Latin American Studies of the Russian Academy of Sciences ILA RAS. http://dx.doi.org/10.37656/s20768400-2022-4-04.

TSYGANKOV, Andrei P.. Finding a Civilisational Idea: ⠼west,⠽ Eurasia,⠽ and ⠼euro-East⠽ in Russia’s foreign policy. Geopolitics, [S.L.], v. 12, n. 3, p. 375-399, 31 maio 2007. Informa UK Limited. http://dx.doi.org/10.1080/14650040701305617.

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A Ásia Central Pós-Soviética: 32 anos depois

Guilherme Geremias da Conceição*

Historicamente a Ásia Central foi uma região disputada por grandes potências, tendo em vista suas riquezas naturais e sua posição estratégica no coração da Eurásia[1]. Ainda assim, passadas três décadas desde o colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e da emancipação de cinco novos Estados no local, essa região permanece chamando pouca atenção dos estudiosos brasileiros dada à escassez de pesquisas disponíveis sobre o assunto. Mesmo que, com os desdobramentos recentes na política internacional, as perspectivas econômicas quanto ao uso de seu potencial exportador energético estejam sob análise, as características do desenvolvimento social da região, bem como a compreensão sobre os seus processos políticos, quando estudadas, continuam sendo conduzidas por um debate ocidental enviesado. Nesse sentido, com vistas a desfazer a aparência monolítica das repúblicas, este texto objetiva realizar um breve balanço sobre a Ásia Central pós-soviética, analisando seus projetos de integração regional e os posicionamentos internacionais adotados pelos países que compõem a região separadamente.

Uma vez que foram conservadas as fronteiras nacionais-administrativas, herdadas do período soviético, inúmeros problemas relacionados à distribuição de recursos, à infraestrutura, ao sistema de transportes e às questões étnicas eclodiram nas jovens repúblicas. Entregues a sua própria sorte, estas precisaram se estabelecer rapidamente enquanto Estados independentes sem a experiência de tê-lo feito anteriormente. Dessa forma, para os “cinco stãos” da Ásia Central, o fim da URSS significou enfrentar uma dura transição para o incerto e o desafio de organizar, em um curto período, quadros tecno-burocráticos e estruturas político-administrativas sem o respaldo prestado pela União anteriormente[2]. Embora alguns países da região tenham conseguido manter uma relativa estabilidade pós-1991 – o que não implica adoção de práticas democráticas ou a recusa de usar a violência contra opositores, como nos casos do Cazaquistão, Turcomenistão e Uzbequistão –, outros viveram momentos de conflito e tensão política desde os primeiros anos de emancipação, como foi a guerra civil no Tadjiquistão entre 1992 e 1997, e a instabilidade política pós-Revolução Colorida, ou “Revolução das Tulipas”, no Quirguistão entre 2005-2011 e 2017-2020 (Linn, 2004; Kubicek, 2011).

No tocante à política externa, os países da Ásia Central vêm se comportando de maneira pendular em relação às divergências territoriais que possuem entre si e às alianças bilaterais e regionais que firmaram durante os últimos trinta e dois anos. No caso tadjique, por exemplo, existe uma constante oscilação no relacionamento com os vizinhos Uzbequistão e Quirguistão. Enquanto, em 2018, Tashkent e Dushanbe discutiram sobre a cooperação industrial de defesa e exercícios militares conjuntos, em 2021, uma disputa por um corpo de água na divisa quirguiz se transformou em um dos confrontos fronteiriços mais graves desde 1991. No caso das relações, por vezes tensas, uzbeque-turcomenas, o Turcomenistão aceitou assinar a Convenção do Mar Cáspio em 2018 e trouxe uma resolução parcial para as disputas de fronteira com o Uzbequistão, com o qual mantém uma cooperação estratégica no setor energético. Podemos, ainda, considerar que embora o Estado turcomeno, rico em gás e autodeclarado “neutro”[3], e o Tadjiquistão possuam diferenças no quadro dos recursos naturais, ambos compartilham uma longa fronteira com o Afeganistão, principal produtor de heroína e ópio do mundo. Este fato, somado ao papel de rota para grupos extremistas, não somente destaca as fragilidades destes Estados como também o seu caráter de “escudos”, enquanto fiadores da segurança regional (Visentini, 2022; De Haass, 2017).

Por sua vez, o Quirguistão, conhecido como a “Suíça da Ásia Central” por abrigar as principais montanhas e bacias hidrográficas da região, tentou estabelecer uma política externa multidimensional concentrada em relações flexíveis com os Estados vizinhos. Mesmo que o início da década de 1990 tenha sido marcado por hostilidades com o Uzbequistão e o Cazaquistão, resultado da saída de Bishkek da zona do rublo, as três nações logo se aproximaram e criaram uma união econômica, a Comunidade Econômica da Ásia Central – hoje fundida com a União Econômica Eurasiática (UEE). Dessa forma, as disputas na fronteira uzbeque-quirguiz se estabilizaram na medida em que o Uzbequistão reconheceu a dependência dos recursos hídricos do vizinho e que o Quirguistão passou a necessitar do gás uzbeque. No mesmo sentido, o Cazaquistão apostou em uma inserção global multi-vetorial – em alguns momentos ocidentalizada. O país desenvolveu uma política exterior que equilibrou a triangulação Rússia-China-Estados Unidos no local ao mesmo tempo que sustentou as iniciativas de integração regional e a disputa velada pela hegemonia centro-asiática com o Uzbequistão.

O movimento conciliatório também foi adotado pelo Estado uzbeque recentemente. O país é o mais populoso e o único que compartilha fronteiras com os demais Estados da região, além de possuir a força militar mais especializada. Hoje, Tashkent, de maneira inversa ao modelo de inserção internacional tímido – e por vezes contraditório – desenvolvido desde o início da independência, busca cada vez mais a consolidação de relações bilaterais harmônicas, tornando-se novamente um player significativo para o xadrez geopolítico regional (Cornell; Starr, 2018; Toktogulov, 2022).

Como resultado do fim da Guerra Fria, os novos e instáveis países da Ásia Central também tiveram de lidar com uma série de atores internacionais dispostos a assentar sua presença na região, principalmente interessados em sua posição estratégica e nos recursos energéticos[4]. Abria-se, assim, um grande espaço para competição e concorrência entre atores locais e extrarregionais, com a entrada de países ocidentais na região e o sucesso de acordos para exploração de gás e petróleo, os quais deveriam compor com os países centro-asiáticos no decorrer dos anos 1990 em um movimento relacionado com a retração russa logo após o desmantelamento da URSS). Nesse sentido, Moscou não tardaria a retornar ao cenário com força total, principalmente porque busca controlar tais rotas de exportação via Comunidade dos Estados Independentes (CEI) ou via UEE. Já o esforço chinês de aproximação teria início em 1997 com a compra de direitos de exploração no Cazaquistão. Dependendo de importações de petróleo desde o começo dos anos 1990, Pequim procurava diversificar seus parceiros e diminuir a dependência das rotas marítimas de transporte (Cornell; Starr, 2018; Visentini, 2022).

Outros países também demonstraram interesse em fechar acordos com a Ásia Central. Entre eles estão Azerbaijão, Coreia do Sul, Índia, Irã, Paquistão, Japão e, mais recentemente, a Turquia, que busca capitalizar suas ligações culturais e étnicas com a região em troca de concessões econômicas e benefícios políticos (Toktogulov, 2022). Os Estados Unidos também aumentaram sua presença local no começo dos anos 2000, quando teve início a guerra ao terrorismo. A resposta americana aos ataques de 11 de setembro criou a necessidade de estabelecer pontos de apoio na conflagração contra o Afeganistão. Para tanto, Washington buscou parcerias com os países centro-asiáticos, estabelecendo bases militares em alguns deles. Esse contexto marca a aproximação entre os EUA e Uzbequistão, concretizada com a instalação na base de Karshi-Khanabad (K2). Processo semelhante foi desenvolvido com o Quirguistão através da criação de uma base (mansitcenter) localizada no aeroporto de Manas[5] (Schwirtz, 2011). No entanto, apesar dos esforços ocidentais de manter ativos esses canais de comunicação com os governos regionais, as pressões para a democratização e um possível epicentro de Revoluções Coloridas que se agregaram à presença dos EUA fez com que os regimes passassem a se sentir ameaçados.

Neste contexto, ocorre uma maior aproximação com a Rússia e a China, representados na figura da Organização para Cooperação de Xangai (OCX). Segundo Collins (2009), a criação da OCX[6] – uma evolução dos Cinco de Xangai – demonstra a existência de um espaço para cooperação em temas de segurança sem que os governos da Ásia Central percebam isso como uma ameaça. Isso se deve ao fato de que esses países teriam suas reivindicações contra movimentos radicais internos atendidas no âmbito da organização, como a Estrutura Antiterrorista Regional (SCO-RATS), sediada em Tashkent. Além disso, a OCX trabalha  em conjunto com a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO), cujo mandato inclui a participação de sua Força Coletiva de Reação Rápida no combate ao terrorismo. Esta organização adjacente, fundada pela Rússia em 2002, conta com a participação da Armênia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão, e representa um forte pilar da influência do Kremlin na região (Visentini, 2011).

Como um último elemento-chave para entender o núcleo eurasiano pós-soviético, vale mencionar o desenvolvimento do que se convencionou chamar de Nova Rota da Seda ou Belt and Road Initiative (BRI). O conjunto de ambiciosos projetos de construção de rodovias, ferrovias, gasodutos e oleodutos hoje representa a incontestável conexão entre a infraestrutura chinesa e as repúblicas da Ásia Central. Estima-se que, entre 2013 e 2020, a quantidade total de investimentos chineses no Cazaquistão no âmbito da BRI foi de US$18,69 bilhões destinados ao setor de energia, transporte e mineração. Enquanto as empresas chinesas representam atualmente um terço do total de investimentos estrangeiros no Quirguistão, e participam a níveis superiores a 50% na dívida externa do Tadjiquistão. Os números são também expressivos no Uzbequistão, onde o IDE chinês foi de US$3,9 bilhões nos últimos três anos e tende a duplicar até 2025 (Gerstl; Wallenböck, 2020).

Ainda que de maneira mais tímida, o Turcomenistão também integra a estratégia de Pequim por meio do gasoduto Ásia Central – o qual conecta os campos Bagtyyarlyk e Iolotan ao coração da China, via Uzbequistão – e do Corredor Norte-Sul – que liga Rússia, Cazaquistão, Turcomenistão e Irã –, além da ferrovia Lapis Lazuli, que visa integrar o Afeganistão de volta ao comércio global por ligações com Azerbaijão, Geórgia e Turquia. A linha férrea também está prevista para conectar o Estado turcomeno ao Uzbequistão no Norte, ao Paquistão no Sul e a portos como Gwadar, no Golfo Pérsico (Gerstl; Wallenböck, 2020).

No entanto, se tratando de uma região com tamanha importância política, são inúmeros os desafios para o futuro da Ásia Central e seus projetos de integração. Diante dos últimos acontecimentos no Cazaquistão (2022) e do histórico deixado pelas Revoluções Coloridas desde a década de 2000, uma desestabilização efetiva no Quirguistão, por exemplo, poderia preparar terreno para a radicalização da rivalidade Sul no país, região de fronteira com o Tadjiquistão, e para a difusão de combatentes jihadistas visando o Uzbequistão e Xinjiang, na China[7]. Caso fosse o epicentro de uma revolta, o Estado turcomeno – que se encontra no centro dos interesses energéticos da China, de segurança imediata do Irã e de profundidade estratégica da Rússia – também poderia fragilizar a integração eurasiana, principalmente porque sua neutralidade internacional impediria o fornecimento de assistência militar multilateral no âmbito da CSTO ou da OCX[8]. Outro cenário provável, seria um distúrbio generalizado no Uzbequistão, mais especificamente na região autônoma do Karakalpakstão, o que poderia não somente irradiar a instabilidade para toda Ásia Central, por conta de sua localização, como também ressuscitar células do Movimento Islâmico do Uzbequistão (IMU)[9], que durante a “Guerra ao Terror” dos EUA no Afeganistão estiveram escondidas no Paquistão.

Com isso, nota-se que a Ásia Central enquanto região, mas também levando em consideração seus atores estatais e suas agendas externas independentes, passou a ser uma peça importante na estruturação dos cenários estratégicos internacionais. Seja pelo viés econômico, no âmbito dos recursos naturais que possui e em seu potencial de escoamento, ou pelas considerações político-securitárias, as quais envolvem o radicalismo de alguns grupos que agem na região e sua posição “pivotante”, conforme já defendido pelo geoestrategista britânico Halford Mackinder, em 1919 (MELLO, 1999). Nesse sentido, mesmo que as repúblicas centro-asiáticas sejam, comumente, caracterizadas pelo autoritarismo e apresentem similaridades ao ponto de serem analisadas em conjunto, os cinco Estados têm percorrido caminhos autônomos e alternativos entre si, bem como na perseguição de seus objetivos de desenvolvimento político e econômico, oscilando entre aliança e rivalidade. Dessa forma, se faz extremamente importante ressaltar o papel destes países para o resto do mundo, considerando o seu peso geopolítico e suas particularidades no cenário da integração eurasiana atual.

[1] Não por acaso, a famosa Rota da Seda tinha o espaço hoje formado pelos países centro-asiáticos como um de seus trechos de maior proeminência.

[2] Outro assunto de extrema importância para os países da Ásia Central é a gestão das águas na região e a consequente exploração de seu potencial hídrico, concentrado principalmente no Quirguistão e no Tadjiquistão. O compartilhamento de fluxos de água pelas repúblicas implica uma gestão compartilhada dos recursos, limitando assim o impacto que obras de irrigação e hidrelétricas poderiam ter sobre os países que repousam no baixo curso dos rios.

[3] Apesar dessa condição, o Turcomenistão mantém relações comerciais significativas com os EUA, Rússia, Irã e um crescente comércio transfronteiriço com o Afeganistão. Nesse sentido, o governo turcomeno parece aproveitar-se dos interesses – muitas vezes – conflitantes desses atores como meio de extrair concessões, especialmente em questões de energia.

[4] No que diz respeito ao petróleo e ao gás passíveis de exploração na Ásia Central, o estabelecimento de acordos multilaterais e bilaterais deram origem a uma rede de gasodutos e oleodutos ligando a região ao Ocidente e Oriente, seja através da Rússia – continuidade das tradicionais rotas de transporte – ou de novos caminhos e parceiros. Muitos projetos ainda estão em discussão e disputam o apoio dos governos regionais. Nesse sentido, ainda resta definir o futuro de projetos ambiciosos como, por exemplo, o Nabucco, o South Stream (ambos paralisados atualmente) e o TAPI (Turcomenistão-Afeganistão-Paquistão-Índia, hoje sendo implementado pelo Banco Asiático de Desenvolvimento), além daqueles ligados à Belt and Road Initiative (BRI), lançada no Cazaquistão em 2013 pelo presidente da China, Xi Jinping (Cornell & Starr, 2018).

[5] Em 2009, diante de pedidos para o fechamento da base por parte do governo do Quirguistão, os Estados Unidos concordaram em aumentar os repasses de investimento e em reformar o aeroporto de Manas para permanecerem na localidade. No entanto, a chegada de um novo presidente, Almazbek Atambayev, em novembro de 2011, reviu as reivindicações e declarou sua intenção de fechar definitivamente a base em 2014, ano em que terminaria a licença concedida aos estadunidenses (Schwirtz, 2011).

[6] Fazem parte da OCX: China, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão e Uzbequistão. No início da década de 2010, considerados todos os seus membros, a organização ocupava uma área de 30.183,554 km, na qual viviam em torno de 1.532.323.523 de pessoas; e possuía um PIB somado de US$12,51 trilhões. Para fins de comparação, a União Europeia possui área de 4.324.782 km, para uma população de 502.489.143 de pessoas, e PIB de US$14,82 trilhões (Visentini, 2011).

[7] Ver mais em: KORYBKO, A. “The Coming Color Revolution Chaos And ‘Media Crimea’ In Kyrgyzstan” (2014), In KORYBKO, A. Hybrid Wars: the indirect adaptive approach to regime change. Moscow: Peoples’ Friendship University of Russia, 2015.

[8] Ver mais em: KORYBKO, Andrew. “Turkmenistan As The Three-For-One Staging Ground For Eurasian Destabilization” (2014) In KORYBKO, A. Hybrid Wars: the indirect adaptive approach to regime change. Moscow: Peoples’ Friendship University of Russia, 2015.

[9] No Afeganistão, o grupo que buscava estabelecer um califado islâmico no Uzbequistão, recebeu apoio do regime Talibã, da Interservices Intelligence Agency do Paquistão e da al-Qaeda de Osama bin Laden, além de orquestrar inúmeros atos de terrorismo no Estado uzbeque entre os anos de 1998 e 2009, utilizando suas instalações no Quirguistão (Cornell & Zenn, 2018).

 

*Guilherme Geremias da Conceição é mestrando no Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) e bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Possui interesses em temas de pesquisa como construção de Estado na URSS; política externa Uzbeque; integração regional na Ásia Central e espaço pós-soviético. Pesquisador e membro-fundador do CIRE (Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético).

Imagem: “Monumento Lenin”. Istaravshan, Tadjiquistão (1965). Por: Stefano Perego

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COLLINS, Kathleen. Clan Politics and Regime Transition in Central Asia. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

CORNELL, S.E.; STARR, S.F.. “Regional Cooperation in Central Asia: Relevance of World Models”. The Central Asia-Caucasus Analyst, 2018. Disponível em: <https://www.cacianalyst.org/publications/analytical-articles/item/13547-regional-cooperation-in-central-asia-relevance-of-world-models.html>. Acesso em: 02 jan. 2024.

DE HAAS, Marcel. “Relations of Central Asia with the Shanghai Cooperation Organization and the Collective Security Treaty Organization”. The Journal of Slavic Military Studies, v. 30, n. 1, p. 1-16, 2017. DOI: 10.1080/13518046.2017.1271642.

GERSTL, Alfred & WALLENBÖCK, Ute. China’s Belt and Road Initiative: Strategic and Economic Impacts on Central Asia, Southeast Asia, and Central Eastern Europe. Reino Unido: Taylor & Francis, 2020.

KUBICEK, Paul. Authoritarianism in Central Asia: curse or cure. In Third World Quarterly, vol. 19, n. 1, p. 123, 2011.

LINN, Johannes F. Economic (Dis)Integration matters: the Soviet collapse revisited. The Brookings Institution, out. 2004.

MELLO, Leonel Itaussu Almeida. Quem tem medo da geopolítica?. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1999.

SCHWIRTZ, M. “New Leader Says U.S. Base in Kyrgyzstan Will Be Shut”. The New York Times, 8 de novembro de 2011. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2011/11/02/world/asia/kyrgyzstan-says-united-states-manas-air-base-will-close.html>. Acesso em: 02 jan. 2024.

TOKTOGULOV, B. “Uzbekistan’s Foreign Policy Under Mirziyoyev: Change or Continuity?”. Eurasian Research Journal, 4 (1), 49-67, 2022.

VISENTINI, Paulo Fagundes. O dragão chinês e o elefante indiano: a ascensão da Ásia e a transformação do mundo. São Paulo: Leitura XXI, 2011.

VISENTINI, Paulo Fagundes. Oriente Médio, Afeganistão e Ásia Central: a lógica da guerra sem fim. Porto Alegre: Leitura XXI, 2022.

 

 

As relações Rússia-Otan (1991-2023): um breve panorama histórico

Getúlio Alves de Almeida Neto*

 

Trinta e dois anos após a dissolução da União Soviética, observamos o reposicionamento dos 15 países que compunham o bloco, em diferentes contextos e níveis de aproximação ou distanciamento, em relação ao chamado mundo ocidental liderado pelos Estados Unidos. Em específico, a Rússia, oficialmente o Estado sucessor da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), possui um delicado e complexo relacionamento com o assim chamado Ocidente. Nesse sentido, o objetivo do presente texto é apresentar um breve panorama sobre o desenvolvimento das relações entre a Rússia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em específico no que se refere aos temas de Segurança Internacional.

Em 1º de julho de 1991, antes mesmo da dissolução oficial da URSS, teve fim o Pacto de Varsóvia (PV), aliança militar criada em 14 de maio de 1955, durante o governo do líder soviético Nikita Kruschev. A aliança, composta por URSS, Bulgária, Tchecoslováquia, Alemanha Oriental, Hungria, Polônia, Romênia e Albânia (até 1968), fora, sobretudo, uma reação à adesão da antiga Alemanha Ocidental, naquele mesmo ano, à aliança militar ocidental criada em 1949. É nesse contexto que se encontra um dos germes do que viria a ser uma das principais críticas de Moscou aos líderes ocidentais. 

Em 1990, durante o processo de reunificação da Alemanha, um encontro entre o Secretário de Estado dos EUA, James Baker, e o líder soviético, Mikhail Gorbachev, gerou discussão, que perdura até os dias atuais. Conforme a perspectiva dos soviéticos –  alegada pelos russos, como visto por Putin em sua mais recente entrevista com o jornalista estadunidense Tucker Carlson – Baker teria dito à Gorbachev que a OTAN não expandiria “nem um centímetro a mais para o leste”, após o governo soviético ter concordado em retirar suas tropas do território da Alemanha Oriental. A frase foi tema de disputas de narrativas desde então, mas uma série de documentos desclassificados comprovam reiteradas garantias de Baker na conversa com Gorbachev e outros memorandos e comunicações entre líderes europeus que indicariam aos soviéticos que a OTAN não iria incorporar mais Estados à leste. Ademais, a própria continuidade da existência da OTAN sempre foi vista pela Rússia como incongruente no contexto pós-Guerra Fria, uma vez que a aliança havia sido criada justamente para fazer frente à ameaça da União Soviética. Assim, não teriam motivos que justificassem a manutenção do bloco.

Não obstante, as possibilidades de cooperação entre Rússia e os países da OTAN se abriram, sobretudo durante o primeiro mandato de Boris Yeltsin. Assim, algumas iniciativas surgiram nessa direção, tais como: o Conselho de Cooperação Norte-Atlântico (NAAC, na sigla em inglês), criado em 1991  e mais tarde substituído pelo Conselho de Parceria Euro-Atlântico (EAPC, na sigla m inglês), em 1997, e a Parceria para a Paz (PfP, na sigla em inglês), em 1994. Estas iniciativas, ainda existentes, buscavam, como objetivo último, estabelecer uma base de diálogo para promover a confiança e a cooperação bilateral em assuntos militares entre os países da OTAN e os países não-membros da aliança na Europa e Ásia Central, muitos deles ex-repúblicas soviéticas. Além destas iniciativas, a participação de tropas russas em missões de peace enforcement (IFOR, 1995-1996) e peacekeeping (SFOR, 1996-2004) na Bósnia e no Kosovo (KFOR, desde 1999), sob liderança de tropas da OTAN, foram amostras da tentativa de aproximação e cooperação entre o novo Estado russo com o Ocidente. Por último, a assinatura do Ato Fundador em 27 de maio de 1997, no qual havia o reconhecimento mútuo do status de não-adversário entre as partes e a definição de princípios como o interesse comum, reciprocidade, transparência e o conceito de segurança indivisível, materializado na instituição do Conselho Permanente OTAN-Rússia, parecia ser mais um elemento que colocaria fim na lógica de dois inimigos da Guerra Fria. 

Entretanto, dois eventos do ano de 1999 podem ser entendidos pontos de virada na relação entre as partes: o bombardeio da OTAN contra as tropas sérvias durante a Guerra do Kosovo e a segunda expansão da aliança após a Guerra Fria, com a adesão da Tchéquia, Polônia e Hungria, todas ex-repúblicas soviéticas. Críticas foram feitas pelo governo russo à forma como tropas ocidentais intervieram no conflito contra o governo de Belgrado, histórico aliado da Rússia, ainda mais sem a aprovação ou anuência do Conselho de Segurança da ONU (CSNU). Soma-se a isso, o novo conceito estratégico publicado pela OTAN, em 24 de abril de 1999, o qual estabelecia a possibilidade de intervenção da aliança mesmo que não em defesa de um membro que sofrera um ataque, conforme estabelecido no Artigo 5º de seu documento fundador. Além disso, o documento deixava em aberto a possibilidade de futuro alargamento a qualquer país interessado. Como resultado, o governo russo passou a ver menor possibilidade de cooperação com o Ocidente, e a entender que seus interesses não seriam levados em consideração devido à desproporcionalidade das relações de forças militar e econômica entre Moscou e o bloco liderado por Washington. 

Na virada do século, a rápida aproximação de Putin com George W. Bush na esteira dos ataques de 11 de setembro parecem ter sido, novamente, uma tentativa de mostrar a potência russa como possível parceiro estratégico dos EUA na condução das políticas de segurança internacional. Pouco tempo depois, no entanto, novos episódios trouxeram ao Kremlin a dúvida sobre a disposição estadunidense de levar em consideração os interesses russos. A Guerra do Iraque (2003), cuja invasão da coalizão liderada pelos EUA não fora aprovada pelo CSNU; a retirada dos EUA dos Tratado sobre Mísseis Antibalísticos (ABM), em vigor desde de 1972; e uma nova rodada de expansão da OTAN, em 2004 – com a adesão de Bulgária, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Letônia, Lituânia, novamente todas ex-repúblicas soviéticas ou países membros do Pacto de Varsóvia – demonstraram a Putin que o contexto internacional pós-Guerra Fria era, sem dúvida alguma, marcado pela unipolaridade estadunidense e falta de capacidade russa de defender seus interesses ou participar de um concerto global da segurança internacional. Por fim, as chamadas Revoluções Coloridas que depuseram governos mais próximos a Moscou na Geórgia (2003), na Ucrânia (2004) e no Quirguistão (2005), contribuíram para o entendimento do governo russo de que o objetivo final do Ocidente era minar qualquer capacidade de influência russa no seu entorno geográfico. Todas essas críticas foram expostas e principalmente marcadas pelo célebre discurso de Putin na Conferência de Munique, em 2007. 

Depois de 2007, uma série de eventos se avolumaram para contribuir com a piora das relações entre Rússia e os países da OTAN. Através de suas incursões militares na Guerra da Geórgia (2008) e na Guerra da Síria (2011 – atualmente) em defesa do governo de Bashar al-Assad e em lado oposto ao apoio dado pelos EUA aos rebeldes sírios, bem como a anexação da Crimeia pela Rússia (2014), Moscou demonstrou que  não mais hesitaria em empregar suas forças armadas para fazer valer seus interesses em oposição aos interesses de norte-americanos e europeus. Em paralelo a este cenário, a divulgação de novos documentos oficiais de defesa e política externa da Rússia evidenciaram o aumento da insatisfação de Moscou com a contínua expansão do bloco ocidental e a definição da OTAN como principal ameaça ao país

De 2009 a 2020, outras três rodadas de expansão da OTAN incluíram a adesão de Albânia, Croácia, Montenegro e Macedônia do Norte. Da perspectiva russa, a promessa feita pelos líderes ocidentais a Gorbachev estava claramente sacrificada. Não somente houve uma expansão à leste, como também uma incorporação considerável de novos Estados que anteriormente estavam sob influência de Moscou. Por fim, a invasão russa à Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022 e a continuidade da guerra parecem ter colocado um fim, ao menos no presente momento, de qualquer possibilidade de cooperação entre Moscou e o bloco com sede em Bruxelas. Evidência principal dessa afirmação são as adesões de Finlândia e Suécia, tradicionais países neutros, à OTAN. 

De tal forma, a indefinição sobre as possibilidades de cooperação entre Rússia e OTAN caracterizadas pelo otimismo e institucionalização de iniciativas nos anos 1990 foi, ao longo do tempo, dando espaço a uma crescente certeza do status de adversários geopolíticos com interesses divergentes até chegar em seu momento mais crítico com a Guerra da Ucrânia. Nesse sentido, o questionamento sobre a validade da manutenção da OTAN enquanto aliança militar que fora criada na lógica da Guerra Fria é, ao mesmo tempo, a origem dos confrontos indiretos entre as duas partes e a justificativa para sua continuidade em meio a um cenário politicamente conturbado e marcado por guerras. 

 

*Getúlio Alves de Almeida Neto é doutorando e Mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp/Unicamp/Puc-Sp). Bolsista FAPESP. Pesquisa na área de Defesa e Segurança, com enfoque na reestruturação militar russa pós-soviética como instrumento de projeção de poder e a política russa para o Ártico. Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual de São Paulo “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP, campus de Franca – SP). Pesquisador e membro-fundador do CIRE (Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético).

Imagem: History of Nato enlargement. Por: Creative Commons 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALMEIDA NETO, Getúlio. Manifesto Moscou: o Conceito de Política Externa russa de 2023 urge um mundo multipolar. Disponível em: https://gedes-unesp.org/manifesto-moscou-o-conceito-de-politica-externa-russa-de-2023-urge-um-mundo-multipolar/. Acesso em: 14 fev. 2024.

CARLSON, Tucker. Exclusive: Tucker Carlson Interviews Vladimir Putin. Youtube, 8 de fev. 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fOCWBhuDdDo&t=3s. Acesso em: 11 mar. 2024

NATIONAL SECURITY ARCHIVE . NATO Expansion: What Gorbachev Heard. Disponível em: https://nsarchive.gwu.edu/briefing-book/russia-programs/2017-12-12/nato-expansion-what-gorbachev-heard-western-leaders-early. Acesso em: 14 fev. 2024.

NATO. The Alliance’s Strategic Concept (1999). 24 April 199. Disponível em: https://www.nato.int/cps/en/natohq/official_texts_27433.htm. Acesso em: 14 fev. 2024.

NATO. Topic: Euro-Atlantic Partnership Council. Disponível em:https://www.nato.int/cps/en/natohq/topics_49276.htm. Acesso em: 14 fev. 2024

NATO. Topic: Partnership for Peace programme Disponível em: https://www.nato.int/cps/en/natohq/topics_50349.htm. Acesso em: 14 fev. 2024

PRESIDENT of Russia. Speech and the Following Discussion at the Munich Conference on Security Policy. 10 Feb. 2007. Disponível em: http://en.kremlin.ru/events/president/transcripts/24034. Acesso em: 14 fev. 2024.

 

O conflito Armênia-Azerbaijão e o futuro da integração militar CSTO: realinhamentos e impactos regionais

O conflito entre Armênia e Azerbaijão tem suas raízes em séculos de disputas territoriais, intensificadas após a dissolução da União Soviética e a formação de alianças regionais. Em setembro de 2023, as tensões em Nagorno-Karabakh resultaram em uma ofensiva militar que não só alterou a dinâmica local, mas também trouxe à tona questões sobre o futuro da CSTO, a aliança militar liderada pela Rússia.

Este texto, de Guilherme Geremias da Conceição, membro do CIRE, oferece uma visão crítica sobre os impactos da crise, destacando os realinhamentos geopolíticos e as consequências humanitárias dessa nova fase do conflito.

Leia a a análise completa acessando a página do texto.

Manifesto Moscou: o Conceito de Política Externa russa de 2023 urge um mundo multipolar

Getúlio Alves de Almeida Neto*

Em 31 de março, foi publicado pelo Ministério das Relações Exteriores da Rússia a nova edição do documento intitulado “Conceito de Política Externa da Federação Russa”.[1] Trata-se da quinta versão do documento, após as publicações em 2000, 2008, 2013 e 2016. Em conjunto com outros documentos como a Doutrina Militar e o Conceito de Segurança Nacional da Federação Russa, o Conceito de Política Externa visa a comunicação com o público doméstico e, sobretudo, externo. Em relação ao segundo, o conjunto de documentos expõe a visão da Rússia sobre o sistema internacional, as principais ameaças e riscos definidos pelo governo para a segurança nacional do país, bem como delimita a forma de reação a estas ameaças. Ao publicar tais documentos, o Kremlin busca dotar de previsibilidade seus princípios de política externa e política de defesa. Em última análise, pode-se compreendê-los como um elemento de dissuasão da política externa russa. Nesta pequena análise, o objetivo é destacar alguns pontos de mudanças nas publicações do Conceito de Política Externa ao longo dos anos e tendo em vista o cenário atual marcado pela Guerra da Ucrânia e por perspectivas de transição hegemônica em curso no sistema internacional.

Em primeiro lugar, é importante ressaltar que, desde a primeira versão do Conceito de Política Externa (RUSSIA, 2000) algumas linhas centrais permanecem constantes, auxiliando na compreensão da visão russa sobre o sistema internacional. Entre estas, destacam-se cinco elementos fundamentais: 1) a defesa pelo respeito ao Direito Internacional e às normas internacionais; 2) a supremacia do Conselho de Segurança da ONU (CSNU) como órgão de resolução de conflitos; 3) a busca em evitar a escalada armamentista convencional e nuclear; 4) o respeito entre os interesses das potências e a não interferência em questões domésticas; 5) a crítica à expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para regiões próximas à fronteira russa.

Destarte, o que se evidencia nas diferentes versões do Conceito de Política Externa é, em maior medida, uma mudança no tom adotado em suas disposições, ora mais otimista, ora mais pessimista e reativa; a forma como interesses e ameaças são definidos de maneira mais ou menos implícita; e o modo como o governo enxerga o papel de grande potência a ser exercido pela Rússia. Nessa perspectiva, observam-se algumas alterações ao longo de suas quatro primeiras edições.

No documento de 2000, destacam-se sobretudo o caráter mais pragmático quanto à possibilidade de cooperação no âmbito do Conselho Rússia-OTAN, criado em 1997, apesar da ressalva quanto à incongruência entre as diretrizes políticas e militares da aliança militar ocidental com os interesses securitários russos (RÚSSIA, 2000). Em específico, o documento apresentava o posicionamento russo contrário ao uso da força sem autorização do Conselho de Segurança da ONU em nome do uso de conceitos como “intervenção humanitária” e “soberania limitada”, em uma clara alusão ao bombardeio da OTAN na Guerra do Kosovo, em 1999. Por fim, cabe destaque ao fato de que, já em 2000, o Conceito de Política Externa ressaltava a autopercepção russa quanto ao seu status de grande potência e definia como objetivo o estabelecimento de uma ordem multipolar que levasse em conta a variedade de interesses dos Estados nas relações internacionais.

Em sua segunda edição, publicada em julho de 2008 – portanto um mês antes da Guerra da Geórgia – o documento não apenas explicitava o desejo russo por uma nova ordem internacional multipolar, mas já afirmava o início da derrocada do modelo internacional dominado pelo Ocidente desde o fim da Guerra Fria (RÚSSIA, 2008). Nesse sentido, destacava-se a crítica ao modelo de alianças políticas e militares – novamente em referência à OTAN – quanto a sua capacidade de lidar com os desafios securitários contemporâneos, além de uma nova crítica ao projeto de expansão da aliança militar ocidental e as negociações para adesão de Geórgia e Ucrânia. Não obstante, a Rússia ainda se mostrava disposta a cooperar no contexto do Conselho Rússia-OTAN, desde que com base no reconhecimento dos interesses das potências.

A versão de 2013 aprofundava o posicionamento russo quanto a sua percepção do fim da hegemonia estadunidense no sistema internacional, que passava a dar lugar para o surgimento de novos polos de poder, sobretudo na região Ásia-Pacífico. Em razão do declínio de seu poder relativo, o Ocidente – segundo a perspectiva russa – iria usar de medidas para manter seu poder, que por consequência tornaria o sistema internacional mais instável (RÚSSIA, 2013).

Entre a publicação do documento em 2013 e a sua quarta edição, em 2016, houve a anexação da Crimeia, em 2014, um movimento crucial da política externa russa para os desdobramentos que levaram ao atual estado das relações entre Rússia e o Ocidente. Dois anos após o ocorrido, o Conceito de Política Externa da Federação Russa pela primeira vez apontava explicitamente para a emergência de um sistema multipolar e novos modelos de desenvolvimento. Nesse sentido, além de uma disputa entre Estados no campo político, militar e econômico, o posicionamento do governo russo identificava a concorrência entre diferentes modelos na dimensão civilizacional, criticando a tentativa de imposição de valores entre as partes. Dessa forma, a busca do Ocidente de impor seu modelo ao redor do globo e impedir a ascensão de novos polos de poder seria o principal motivo para a instabilidade internacional.

A principal diferença entre o documento de 2016 e as versões anteriores, no entanto, foi a menção explícita aos Estados Unidos, no trecho que se segue:

[…] a Rússia não reconhece a política dos Estados Unidos de jurisdição extraterritorial para além dos limites da lei internacional e considera inaceitável tentativas de exercer pressões militares, políticas, econômicas, ou de qualquer outra natureza, e se reserva o direito de responder firmemente a ações hostis, incluindo o reforço de sua defesa nacional e tomando medidas retaliatórias ou assimétricas. (RÚSSIA, 2016, quarta seção, artigo 72, tradução nossa).

Nesse contexto, o Conceito de Política Externa de 2023 tem como principal diferença em relação às versões anteriores o seu caráter de manifesto que, pela primeira vez, assinala de maneira desvelada o projeto russo de estabelecimento de uma nova ordem mundial. Ainda que nas duas últimas versões já fosse possível identificar claramente a insatisfação russa com o modelo atual de configuração de forças, a versão de 2023 torna-se claramente mais propositiva e otimista em relação à capacidade russa de se estabelecer como polo de poder e à possibilidade e vontade de outros Estados do sistema internacional de se unirem em um projeto que busque repensar a estrutura política, econômica e securitária global. Destaco, a seguir, quatro pontos principais de análise que se relacionam com este objetivo.

Em primeiro lugar, há a defesa do fim da hegemonia do dólar como meio de pagamento internacional e moeda de reserva, ainda que o documento não cite de maneira explícita o nome da moeda estadunidense, como se vê nas passagens abaixo:

“[…] O facto de alguns países abusarem da sua posição dominante nalgumas áreas fomenta os processos de fragmentação da economia global e as desigualdades no desenvolvimento dos países. Novos sistemas de pagamento nacionais e transfronteiras estão a ganhar forma, há um interesse crescente em novas moedas de reserva internacionais e estão a surgir motivos para a diversificação dos mecanismos de cooperação económica internacional” (RÚSSIA, 2013, artigo 10, p. 4).

“[…] adaptar o comércio e os sistemas monetários globais às realidades de um mundo multipolar e às consequências da crise da globalização económica para, antes de mais nada, reduzir a capacidade dos países hostis de abusar do seu monopólio ou da sua posição dominante nalguns sectores da economia mundial e aumentar a participação dos países em desenvolvimento na gestão econômica global” (RÚSSIA, 2013, artigo 39, p. 17).

O segundo ponto de destaque é a menção a uma série de iniciativas multilaterais, fóruns e organizações que engloba o relacionamento com Estados em todos os continentes, dando ênfase sobretudo à África e Ásia, regiões nas quais a influência relativa dos Estados Unidos tem diminuído, tais como o Fórum de Parceria Rússia-África e a Grande Parceria Eurasiática. Além disso, o Conceito de Política Externa define como uma área prioritária o fortalecimento do papel internacional de instituições e organizações nas quais a Rússia possui participação significativa, como os BRICS, Organização de Cooperação de Xangai (OCX), Comunidade de Estados Independentes (CEI), União Econômica Eurasiática (UEE), Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), e RIC (Rússia, Índia, China). Por fim, destaca-se a menção à iniciativa do “Conceito russo de segurança coletiva no Golfo Pérsico”, proposta na qual a Rússia se vê como ator facilitador da retomada de normalidade das relações entre os países do Oriente Médio. Ao longo do texto há, de maneira velada, o principal argumento utilizado pelo governo russo no que tange à diferença entre o relacionamento dos países com Moscou e Washington: a não interferência em assuntos domésticos e relativos à estabilidade dos regimes políticos.

O terceiro tema cuja importância é ressaltada nesta análise se refere à menção explícita dos Estados Unidos como principal fonte de ameaça à segurança da Rússia, citando de maneira aberta a OTAN apenas uma única vez. Nesse sentido, a Rússia passa a definir o Ocidente não como um bloco monolítico que busca estabelecer um projeto hegemônico, mas como uma constelação dos Estados Unidos e “seus satélites”, os quais podemos inferir, principalmente, a Europa. Nesse sentido, o espaço no texto dedicado à Europa é breve e direto. No artigo 49, o documento afirma que as complicações nas relações entre Rússia e Europa se devem às concepções estratégicas e ao fomento de uma política antirrussa por parte dos Estados Unidos, que acaba por limitar a soberania dos países europeus em nome de seu projeto hegemônico. No artigo 61, o governo russo faz um convite à cooperação com países europeus ao colocar sobre eles a responsabilidade de:

     […] perceberem que não existe alternativa à coexistência pacífica e cooperação mutuamente vantajosa em pé de igualdade com a Rússia […] isso terá um impacto benéfico na segurança e bem-estar da região europeia e ajudará os países europeus a ocupar um lugar condigno na Grande Parceria Eurasiática e no mundo multipolar. (RÚSSIA, 2023, p. 30-31)

Por fim, o principal destaque em relação ao Conceito de Política Externa de 2023 está em relação ao foco dado ao processo em curso de transição do sistema internacional, que, na perspectiva russa, abandona o modelo de projeto hegemônico estadunidense em favor de um mundo multipolar. No artigo 12, o documento aponta para a crise na ordem mundial vigente e afirma que a resposta lógica a este cenário é reforçar a “cooperação entre países que estão sujeitos a pressões externas” a partir de mecanismos de integração regionais e transregionais. Pode-se sugerir que se trata de uma referência à cooperação da Rússia com Irã, China e Índia. Ademais, o documento transparece seu caráter de manifesto que busca apoio global ao projeto de transição da polaridade internacional ao afirmar, no artigo 18, que a Rússia busca um sistema de relações internacionais que “preserve a identidade cultural e civilizacional e garanta igualdade de oportunidades de desenvolvimento para todos os países, independentemente da sua posição geográfica, da dimensão do seu território, do seu potencial demográfico, de recursos e militar, e do sistema político, económico e social.”.

Por fim, cabe destacar o uso do argumento de respeito às leis internacionais e à reiterada menção ao CSNU como principal órgão responsável pela manutenção da segurança internacional, a crítica às intervenções militares unilaterais e ao processo decisório de aplicação de sanções sem a anuência do órgão. Ao analisarmos tais afirmações a partir do contexto da Guerra da Ucrânia – assim como fora o caso das versões anteriores sob a luz da Guerra da Geórgia e da anexação da Crimeia – é claro que o leitor estranhe a contradição do governo russo. Nesse sentido, o Conceito de Política Externa de 2023 novamente se diferencia dos outros ao fazer menção ao Artigo 51 da Carta da ONU , sobre o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva, como uma prerrogativa legal que justificaria a invasão russa à Ucrânia para se defender das ameaças tais como percebidas por Moscou. Além desta, o documento busca resguardar o direito russo não cumprir com tratados internacionais que não estejam de acordo com a Constituição da Federação Russa, como disposto no artigo 21.

Em suma, pode-se afirmar que o novo Conceito de Política Externa da Federação Russa continua com as linhas gerais da política externa russa do século XXI. Nesse sentido, permanece como objetivo principal a transformação da arquitetura de segurança do pós-Guerra Fria e o fim da hegemonia estadunidense em prol da formação de um sistema de relações internacionais multipolar, no qual a Rússia deverá exercer um papel principal como um dos principais centros de poder em base de igualdade e reconhecimento dos interesses entre as potências. No entanto, a publicação do documento em 2023 representa o mais elevado nível de confiança – e, também, cinismo em relação ao respeito às disposições da Carta da ONU – da política externa russa em relação a este processo de transformação do sistema internacional. Enquanto as quatro primeiras versões foram gradativamente aumentando a ênfase na defesa por um mundo multipolar e possuíam um tom de prenúncio da derrocada estadunidense, o documento de março de 2023 já reconhece o cenário pós pax-americana e faz um convite aos demais Estados para participarem da construção de um sistema internacional que leve em conta os interesses dos diferentes atores que queiram se desvencilhar do modelo político-econômico estabelecido por Washington.

Por fim, o posicionamento russo não descarta a possibilidade de cooperação com os países europeus. Não obstante, Moscou busca mostrar como é cada vez menos dependente do relacionamento com seus vizinhos ocidentais, que teriam muito mais a perder com a má relação com a Rússia, em detrimento de um aprofundamento das relações com os países euroasiáticos e, principalmente, com potências como China e Índia. Em 2023 Moscou afirma abertamente que a hegemonia dos Estados Unidos deve ser encerrada em prol de um sistema multipolar com a participação russa como um dos polos de poder; coloca a responsabilidade da instabilidade internacional na recusa de Washington em aceitar o fim de sua hegemonia; e convoca outros atores a participarem da construção de um novo sistema internacional.

 

* Getúlio Alves de Almeida Neto é doutorando e mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Defendeu a Dissertação de Mestrado sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br

[1] A versão em português está com a grafia de Portugal, que será mantida nos trechos citados ao longo do texto.

Referências

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RÚSSIA. The Ministry of Foreign Affairs of the Russian Federation. Concept of the Foreign Policy of the Russian Federation. 2016.  Disponível em: https://archive.mid.ru/en/foreign_policy/news/-/asset_publisher/cKNonkJE02Bw/content/id/2542248. Acesso em: 2 maio 2013

Conflito fronteiriço na Ásia Central: sinais tardios de um processo incompleto da desintegração soviética

Getúlio Alves de Almeida Neto*

A Ásia Central é composta por cinco Estados que faziam parte da extinta União Soviética (URSS), a saber: Cazaquistão, Quirguistão, Uzbequistão, Tadjiquistão e Turcomenistão. A oeste do Mar Cáspio, Azerbaijão e Armênia são outras duas ex-repúblicas soviéticas. Ao sul do Tadjiquistão e Turcomenistão, o Afeganistão, embora nunca tenha sido parte do bloco soviético, tem papel central e delicado na memória militar da história russa, devido aos dez anos da frustrada Guerra do Afeganistão (1979-1989). Como produto desse contexto, a região da Ásia Central é destacada como uma das zonas de principais interesses estratégicos para Moscou no século XXI. Contudo, recentes eventos que aumentam a  instabilidade na região têm se tornado um desafio para o papel almejado pelo governo russo de ser reconhecido como garantidor da estabilidade dos regimes e da segurança de seus aliados, e como  principal potência com interesses nesta região.

Em específico, vale citar a guerra por Nagorno-Karabakh travada entre Armênia e Azerbaijão (2020), a retirada das tropas americanas do Afeganistão e a retomada do poder pelo Talibã (2021), os protestos em janeiro de 2022 no Cazaquistão e, mais recentemente, conflitos fronteiriços entre o Tadjiquistão e Quirguistão, assunto tratado brevemente a seguir. Com esse cenário em mente, o objetivo principal deste texto é debater os principais desafios impostos a Moscou na busca por uma posição privilegiada de potência regional em meio (i) à ascensão de outras duas potências na região, nomeadamente China e Turquia; (ii) a crescente eclosão de conflitos entre ex-repúblicas soviéticas e (iii) o crescimento de movimentos nacionalistas que buscam diminuir a influência russa sobre os governos locais em termos políticos, securitários e econômicos.

Entre 14 e 16 de setembro de 2022, os arredores da vila de Kök-Tash, no Quirguistão, próxima à fronteira com o Tadjiquistão, foram palco de hostilidades entre forças de segurança de ambos os países, que se acusaram mutuamente de ter iniciado o confronto. Na narrativa quirguiz, forças tadjiques invadiram vilas em seu território com tanques, veículos blindados e morteiros, e realizaram bombardeios no aeroporto da cidade de Batken (Quirguistão). Por sua vez, os tadjiques acusaram as forças quirguizes de bombardear um posto militar na fronteira e aldeias em seu território. Estima-se que mais de 100 pessoas tenham sido mortas, e aproximadamente 136 mil deslocadas nas regiões de Batken e Leilek, no Quirguistão. O confronto teve início enquanto os presidentes Emomali Rahmon (Tadjiquistão) e Sadyr Japarov (Quirguistão) estavam presentes na cúpula da Organização para Cooperação de Xangai (OCX) no Uzbequistão. Um cessar-fogo foi acordado entre os chefes dos Comitês de Segurança Nacional dos dois países, Kamchybek Tashiyev (Quirguistão) e Saimumin Yatimov (Tadjiquistão). Em 25 de setembro, os chefes dos serviços de segurança dos dois países assinaram um acordo se comprometendo a retirar tropas de quatro postos militares próximos à região do conflito. O acordo foi alvo de críticas no Quirguistão, as quais afirmavam que a desmilitarização da fronteira facilitaria a invasão da população tadjique nos territórios disputados.

O confronto entre forças tadjiques e quirguizes é apenas o episódio mais recente de uma série de conflitos e tensões que ocorrem na fronteira entre os dois países há 30 anos. O último episódio de maior tensão havia sido em abril de 2021, que resultou na morte de 49 pessoas, além de 260 feridas. A frequência das hostilidades nesta região decorre, em grande medida, da delimitação de fronteiras na esteira do processo de dissolução da União Soviética. Nesse sentido, dos 970 quilômetros de extensão total de fronteira, estima-se que apenas metade desse total tenha sido oficialmente definida. Além disso, o Tadjiquistão possui um exclave em território quirguiz, Voruque. Em específico, a região de Batken, no Quirguistão, abriga fontes subterrâneas de água de grande importância para a atividade econômica das populações locais, majoritariamente composta por pequenos agricultores.

O histórico de distribuição de terras no período soviético é outro fator que contribui para a reivindicação de ambos os lados sobre o direito ao território. Quando a propriedade privada da terra foi introduzida no Quirguistão, parte das pastagens arrendadas no território do Tajiquistão foram registradas como propriedade privada dos cidadãos do Quirguistão. Com o fim do bloco soviético, os sistemas de irrigação, que muitas vezes cruzam as fronteiras entre os países, passaram a ficar sob insegurança jurídica devido à não demarcação plena das fronteiras. Consequentemente, disputas pelo acesso à água são frequentes nos últimos 30 anos, ainda que, em sua maioria, sejam atritos entre civis sem maiores desdobramentos. Somado aos fatores históricos e geográficos que implicam na disputa por recursos hídricos, a ascensão de movimentos nacionalistas dentro dos países dotam a região de maior grau de instabilidade.

Andrey Kortunov propõe uma interessante análise dos conflitos pós-soviéticos a partir da concepção de um processo de independência tardio. Segundo o historiador russo, a queda da URSS em 1991 foi vista como um processo relativamente pacífico quando comparado com a dissolução de outros impérios, a despeito de alguns conflitos de menor escala e duração (Tadjiquistão, Nagorno-Karabakh; Abecásia, Ossétia do Sul, Transnístria, Chechênia e Daguestão). Assim, Kortunov sugere que o colapso da URSS tenha sido apenas o início de um processo “longo, complexo e contraditório de desintegração imperial” e de construção de novos Estados-nacionais que perduram até os dias atuais. Na perspectiva do autor, a maior parte do espaço pós-soviético – com exceção dos países bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia) – permaneceu extremamente interligada em termos econômicos, de infraestrutura, educação, ciência, cultura, e na mentalidade das elites políticas e econômicas. Por essa lógica, seria possível afirmar que o real processo de desintegração do bloco soviético passou a acontecer somente com o surgimento de uma nova geração nas populações dos novos Estados nacionais.

Neste contexto, movimentos nacionalistas no Tadjiquistão e no Quirguistão corroboram para o acirramento das disputas entre os países. Enquanto o Tadjiquistão é um Estado marcado pela centralização de poder no governo de Emomali Rahmon, Presidente do país desde 1994 após a Guerra Civil do Tadjiquistão (1992-1994), o Quirguistão é relativamente mais aberto politicamente, sendo governado por Sadyr Japarov desde 2021. Ambos os líderes se utilizam das tensões fronteiriças em benefício de apoio político interno. Enquanto Rahmon faz uso de uma retórica expansionista em busca de consolidação da nação tadjique e de seu regime e manutenção do controle sobre os militares, Japarov, ao longo de sua campanha presidencial em 2021, prometia resolver as disputas territoriais. Em detrimento de uma solução negociada, ambos os países vêm se armando paralelamente ao acirramento das disputas retóricas e aos conflitos localizados na fronteira. O Tadjiquistão vem adquirindo munições e treinamentos militares da Rússia, China, Irã e dos Estados Unidos, sobretudo devido a sua extensa fronteira com o Afeganistão e ao receio de espalhamento das ameaças provenientes do território afegão. Por sua vez, o Quirguistão recebe assistência militar norte-americana, ainda que sob a alcunha de construção democrática. Recentemente, o país adquiriu drones turcos (modelos Bayraktar) e veículos blindados de transporte pessoal da Rússia.

Além dos desafios impostos pelos crescentes conflitos entre ex-repúblicas soviéticas, destaca-se aqui o fato de que a Ásia Central é o ponto de encontro de potências com diferentes níveis de influência e múltiplos interesses, nomeadamente: Rússia, China, Turquia. Na perspectiva russa, portanto, ser capaz de promover a estabilidade regional e manter o poder de influência sobre as ex-repúblicas soviéticas é um duplo desafio que se apresenta a partir das relações com Pequim e Ancara.

Em geral, a maior parte do comércio exterior com estes países é feito com a Rússia. Além disso, a Rússia é destino de migração de mão de obra oriunda da Ásia Central, cujos salários são enviados para os familiares e constituem uma importante parcela da renda destes países. Para além do campo econômico, Moscou exerce grande influência na região a partir da lógica da segurança, institucionalizada sobretudo na Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), cujos membros são: Rússia, Belarus, Armênia, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão. Nos protestos de janeiro de 2022, o presidente cazaque, Kassym-Jomart Tokayev solicitou o envio de tropas do bloco militar, que atuaram pela primeira vez desde sua criação, com o objetivo de reprimir os protestos e garantir a estabilidade do país. Não obstante, a OTSC não é a única instituição intergovernamental que reúne a Rússia e outros países da Ásia Central que faziam parte da URSS. Nesse sentido, a Organização para Cooperação de Xangai (OCX) engloba 9 países: China, Rússia, Cazaquistão, Tadjiquistão, Quirguistão, Uzbequistão, Índia, Paquistão e Irã. Trata-se de uma organização de cooperação política, econômica e militar, que estabelece como prioridade combater o separatismo, o terrorismo e o fundamentalismo religioso. Nesse formato, o poder de influência russa é diluído com outras potências, sobretudo devido à presença chinesa.

A China, por sua vez, vem fortalecendo os laços com os países da Ásia Central principalmente no campo  econômico , cujo símbolo maior encontra-se no projeto da Nova Rota da Seda. Contudo, as preocupações no âmbito da segurança têm se tornado cada vez mais sensíveis aos chineses, principalmente no que tange aos Uigures, população túrquica de maioria islâmica na província de Xinjiang. Localizada no extremo oeste chinês, Xinjiang faz fronteira com Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão e Afeganistão. Com o receio de que haja um movimento independentista islâmico fomentado por radicais – na perspectiva chinesa – nos países da Ásia Central, é de interesse de Pequim manter a estabilidade dos governos vizinhos. Exemplo disso, é o financiamento chinês para a construção de uma nova base militar no Tadjiquistão, próxima à fronteira com o Afeganistão.

Para além da China, a Turquia é outra potência regional cujos interesses podem se tornar um empecilho para Moscou em seu objetivo de garantir a primazia nas relações com os países da Ásia Central. No caso da Turquia, o interesse em se tornar país chave no concerto regional se insere dentro da política externa neo-otomanista[1] de Recep Erdogan. Nessa perspectiva, Ancara tem buscado se posicionar como líder do “mundo túrquico”, se utilizando da narrativa que enfatiza os laços históricos, étnicos e linguísticos comuns entre a Turquia e os países da Ásia Central.[2] Para tal, a Turquia tem aumentado a cooperação econômica com os países da região, sobretudo em relação ao comércio e investimentos em infraestrutura de transporte. No campo da cooperação militar, a Turquia estabeleceu contatos com Cazaquistão e Uzbequistão em meio à guerra entre Armênia e Azerbaijão pelo controle sobre Nagorno-Karabakh. Foram assinados acordos de cooperação militar e técnico-militar com os dois países, além da discussão de uma parceria estratégica entre Turquia e Cazaquistão.

Ademais, há o desejo turco de criar uma aliança militar liderada por Ancara com os países da Ásia Central, o chamado Turan Army. No entanto, tal iniciativa é mais complexa quanto a sua execução, uma vez que Cazaquistão e Tadjiquistão fazem parte do OTSC, enquanto a Turquia é membro da OTAN. Por fim, o governo de Recep Erdogan tem investido na propaganda da Turquia como líder e defensora dos muçulmanos e dos povos túrquicos, através de instrumentos de soft power imagéticos, como o cinema e a indústria de entretenimento. Institucionalmente, a cooperação entre os países se dá sob os auspícios da Organização dos Estados Túrquicos, bloco que inclui o Azerbaijão, Cazaquistão, Quirguistão, Turquia e Uzbequistão.

A partir dos elementos apresentados, sugere-se que a capacidade de influência de Moscou sobre os países da Ásia Central tende a ser colocada em xeque. Três elementos são destacados como os maiores desafios a Moscou no que tange às relações com as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central. Em primeiro lugar, a capacidade de Moscou de agir como garantidor da estabilidade política e social nos países, sobretudo a partir do uso da organização militar OTSC, bem como no papel de mediador dos conflitos. Em segundo lugar, a ascensão de novos atores com interesses na região, a destacar China e Turquia, munidos, principalmente, de capacidade econômica, no caso chinês, e cultural-religioso, no caso turco. Por fim, a guerra iniciada pela Rússia na Ucrânia, assim como os outros episódios de interferência na soberania territorial de outros ex-estados soviéticos – nomeadamente Ossétia e Abecásia do Sul, na Geórgia, em 2008; e Crimeia, em 2014 – podem promover a imagem da Rússia como potência agressora entre a população destes países, fortalecendo o surgimento de uma nova elite política e econômica entre estes de cunho mais nacionalista e favoráveis a um distanciamento das relações com Moscou em prol de uma aproximação com outras potências da região.

[1] Entende-se como política externa turca neo-otomanista aquela que, sob o comando de Recep Erdogan, reorientou as relações externas turcas para o Oriente, em detrimento do tradicional privilégio dado às relações com Estados Unidos e Europa no século XX. Nesse sentido, o governo turco assumiu o compromisso de se tornar uma liderança regional no Oriente Médio, a partir do resgate do passado otomano – a partir de uma narrativa que enfatiza o poder político, espiritual  e cultural  do antigo Império Otomano – e se posicionando como defensor dos muçulmanos sunitas.

[2] Por povos túrquicos entende-se aqueles que compartilham elementos etno-linguísticos, compreendendo, entre outros: turcos, turcomanos, cazaques, usbeques, quirguizes, azeris, uigures.

*Getúlio Alves de Almeida Neto é mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Defendeu a Dissertação de Mestrado sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br

Imagem: Os exclaves tadjiques de Sarwan and Woruch; o enclave quirguiz de Barak, os enclaves uzbeques de Chong-Kara, Dzhangail, Shohimardon, So’x and Tayan. Por Lencer/Wikimmedia Commons.

Referências

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Primeiro como farsa, depois como tragédia: Crimeia, Ucrânia e as novas regiões anexadas pela Rússia

Danielle Amaral Makio*

Era março de 2014 quando Vladimir Putin, em seu segundo mandato presidencial, assinava o documento que reconhecia a anexação da península da Crimeia à Federação Russa. Oito anos mais tarde, a Ucrânia voltaria a ter parte de seu território integrado ao estado russo por decisão do Kremlin. O documento que reconhece as regiões de Kherson, da Zaporizhia e das Repúblicas Populares do Donbass, Donetsk (DNR) Luhansk (LNR), como parte da Rússia foi assinado em 29 de setembro de 2022, logo após a realização de referendos que sondaram o desejo das populações locais de serem anexadas. Segundo os resultados divulgados, respectivamente 87,05%, 93,11%, 99,23% e 98,42% dos habitantes de cada local apoiam a anexação. Apesar de terem contado com supostos observadores, as consultas populares, bem como a decisão pela violação da integridade territorial ucraniana, não conta com amplo reconhecimento internacional. Até mesmo a China, parceiro importante do governo russo, demonstrou cautela ao tratar do ocorrido, abstendo-se de abertamente condenar ou reconhecer a atitude de Putin. A decisão de Moscou acontece a despeito das afirmações feitas pelo Kremlin em 2014 e 2015, as quais garantem que a anexação da Crimeia não seria seguida por novas tomadas de território ucraniano pela Rússia. Nesse contexto, a nova onda de anexações levanta alguns questionamentos acerca de suas semelhanças em relação ao ocorrido em 2014, de suas motivações e de sua legitimidade.

Regiões anexadas pela Rússia, por SyntaxTerror/Wikimedia Commons.

De início, é preciso salientar que há diferenças e semelhanças fundamentais entre o contexto da Crimeia e das quatro regiões recentemente anexadas. O contexto político da primeira à época de sua anexação era razoavelmente distinto daquele que vemos nas outras. A península crimeia, em virtude de seu processo de formação populacional e política, passou por diversos períodos históricos nos quais seu pertencimento à Rússia ou Ucrânia foi contestado até chegar à situação em que gozava de relativa autonomia administrativa em relação a Kyiv. Tal “independência” era reconhecida pelas autoridades ucranianas e não tinha seu status contestado como o que ocorria em regiões do Donbass, desde 2014, quando coalizões irredentistas tomaram o poder em certas províncias e instalaram regimes próprios. Dessa forma, a península mantinha certo distanciamento, ainda que limitado, das decisões políticas da capital. É por conta destes dispositivos que, entre outros exemplos, a Crimeia foi capaz de criar diretrizes particulares acerca de algumas políticas linguísticas e educacionais.

Outro ponto de afastamento importante entre os locais aqui analisados são as vantagens estratégicas oferecidas por cada um. Ainda que Kherson, Zaporizhia, Donetsk e Luhansk favoreçam Moscou na medida em que lhe oferecem maior presença nos mares de Azov e Negro e conectem a Rússia à Crimeia por terra, esta conta com atrativos únicos. Entre estes, destacamos (i) o acesso privilegiado ao Mar Negro, uma vez que a península se localiza em região muito propícia à navegação, é próxima de jazidas de hidrocarbonetos e tem boa estrutura portuária; e (ii) a presença da base naval de Sevastopol, onde se localiza o principal destacamento da Marinha russa. Para além das vantagens geopolíticas representadas pelo entreposto militar, Sevastopol é também importante para o Kremlin do ponto de vista afetivo e discursivo. Conhecida como a “cidade da glória”, o local é usualmente usado para invocar os avanços tecnológicos e militares que garantiram a grandeza do Império Russo, narrativa muito mobilizada por Vladimir Putin em sua política de grande potência.

Entre as semelhanças observadas entre a anexação das cinco regiões aqui mencionadas, podemos destacar (i) os fortes traços de russofonia e de aproximação a símbolos étnicos e culturais da Rússia; (ii) a queda nos níveis de aprovação popular em relação a Vladimir Putin, que também passava por um período de baixa popularidade às vésperas da incursão sobre a Crimeia; e (iii) a contestação da veracidade dos referendos realizados. Apesar de ter uma estrutura administrativa que permitia maior “alinhamento” à política russa, a Crimeia contou com um processo de consulta popular que, dada a ampla presença de militares russos e a rapidez com que se deu, levantou suspeitas acerca da legitimidade de seu resultado. Da mesma maneira, a ausência de cabines de votação e a intensa participação do Exército russo durante as votações nas regiões de Kherson, Zaporizhia, Donetsk e Luhansk sugerem limites ao livre-arbítrio dos votantes.

Além desse contexto que torna a legitimidade dos referendos questionável, ainda deve-se considerar que, nos locais recentemente anexados, houve uma intensa onda de emigração de cidadãos e cidadãs que, podemos supor, eram em sua maioria opostos à integração à Rússia. Tal inferência é corroborada pelo resultado de pesquisas feitas antes mesmo do início da “incursão militar russa sobre a Ucrânia”, segundo as quais 80% e 90% da população de Kherson e Zaporizhia, respectivamente, era contrária à anexação. Os dados sugerem que, apesar de serem parte de uma região historicamente mais afeita a uma postura pró-Rússia, parte considerável da população local não estava disposta a renunciar à Ucrânia. Nesse contexto, na tentativa de garantir apoio irrestrito à secessão e subsequente união à Federação Russa, esta vem oferecendo uma série de benefícios aos locais, como acesso a passaporte russo, assistência social e médica, entre outros. Estas medidas, quando somadas a outras como adoção do rublo, veiculação de mídias russas e mudanças nas políticas educacionais das regiões, sugerem a estruturação de um projeto de dominação que se debruça sobre o estabelecimento de uma presença moscovita plena nos âmbitos militar, civil, burocrático e afetivo.

Apesar da legitimidade contestável do ocorrido, Vladimir Putin reiterou, à semelhança do ocorrido em 2014, que a Rússia está agindo em prol da defesa do direito de autodeterminação dos povos. A postura oficial do Kremlin se baseia em um entendimento do processo de formação estatal que julga ser a Ucrânia, sobretudo suas porções leste e sudeste – tradicionalmente mais afeitas a características etnolinguísticas tipicamente russas -, parte indissociável do estado russo. Na esteira desta narrativa, notamos também a centralidade do conceito de política externa do país, segundo o qual é dever deste proteger os povos russos e/ou russófonos, entre os quais se enquadram aqueles que habitam as regiões recém anexadas. Estas pessoas, no atual contexto de guerra que se estende desde fevereiro, estariam sob a ameaça de um governo ucraniano que persegue e intimida vida das minorias étnicas russas no país. O teor discursivo desta justificativa tem relação com a própria identidade que vem sendo promovida por Moscou sobretudo desde 2012, momento em que o Kremlin assevera sua busca por lugar de destaque na política internacional e fortalece discursos que legitimam a superioridade russa e seu dever cívico de proteger seu povo e seu Estado.

As motivações russas em relação às províncias de Kherson e Zaporizhia e às Repúblicas de Donetsk e Luhansk, porém, vão além do desejo de proteger a população. Após sofrer importantes reveses em fronts localizados na porção leste e centro-leste da Ucrânia, Moscou se vê encurralada por duas necessidades: de um lado, precisa garantir uma retomada da liderança militar do conflito, aumentando sua superioridade tática sobre a Ucrânia; do outro, precisa aumentar a moral do país perante a própria população russa, que já começa a demonstrar crescentes níveis de desaprovação das ações do governo em relação ao conflito. As anexações, nesse sentido, vêm em resposta a ambas as demandas.

Na medida em que fazem desses territórios parte da Rússia, abrem precedente para que qualquer ataque às províncias seja interpretado como um ataque ao próprio Estado russo, possibilitando, assim, uma declaração de guerra por parte do Kremlin – lembremos que, até o momento, a Rússia está oficialmente em uma “incursão militar especial”, não em guerra de fato, o que limita o número de efetivo militar que pode ser mobilizado pelo país e as armas que podem ser usadas. Uma declaração de guerra oficial, portanto, levaria ao uso total da capacidade militar de Moscou, possibilitando, inclusive, o uso de armamento nuclear. Ademais, como já mencionado, as anexações facilitam o estabelecimento de um corredor terrestre ligando Rússia à Crimeia, o que traz benefícios econômicos e militares à primeira. Do ponto de vista doméstico, a expectativa é que a união das províncias à Federação Russa aumente a aprovação do governo, seguindo os resultados positivos da guerra na Geórgia de 2008 e da anexação da Crimeia em 2014.

Os resultados de médio e longo prazo referentes aos recentes desdobramentos da guerra russo-ucraniana ainda são incertos. À semelhança do ocorrido em 2014, o Kremlin parece agir a partir de um cálculo que envolve interesses estratégicos, necessidade de garantir alta nos níveis de aprovação interna e desejo por tomar para si – ou retomar se considerarmos a visão do governo russo – regiões historicamente pertencentes ao Estado russo. Do complexo universo de razões que explicam os eventos aqui comentados, portanto, forma-se uma amálgama de identidade, afetos, memória, geopolítica e tentativa de sustentação de regime político. Nesse ínterim, ainda que Vladimir Putin tenha se declarado aberto a negociações, as recentes manobras de Moscou parecem afastá-lo de obter alguns de seus objetivos iniciais, como a desmilitarização da Ucrânia e a não adesão desta à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), de forma menos traumática.

 

Danielle Amaral Makio é mestranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e bolsista Erasmus Mundus no programa de mestrado internacional CEERES (Central and East European, Erausian and Russian Estudies). É também pesquisadora do Gedes e do Observatório de Conflitos.

Imagem em destaque: Putin em fevereiro de 2022, por Kremlin.ru, CC BY 4.0.

Imagem no corpo do texto: Regiões da Ucrânia anexadas pela Rússia. Por SyntaxTerror/Wikimedia Commons.