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Crises sul-americanas e a ausência brasileira

Tamires Aparecida Ferreira Souza*

 

O início da década de 2000, conhecida como a “era da mudança” e de desenvolvimento nacional e regional, marcou-se pela eleição, por vias democráticas, de governos progressistas na América do Sul, bem como pelo crescimento econômico, através do boom das commodities e dos recursos naturais. Neste cenário, apresentou-se a terceira onda regionalista, também denominada como regionalismo pós-liberal ou pós-hegemônico. Houve um movimento de priorização da agenda política, associada, nas políticas externas dos países, à busca de autonomia regional frente aos Estados Unidos e atores externos, e à adoção de políticas de desenvolvimento, além de uma inserção da região no cenário internacional. Observou-se, ainda, a concretização de consensos regionais e o desenvolvimento de instituições marcadas por abordagens multifacetadas (RIGGIROZZI; TUSSIE, 2012). Assim, iremos percorrer, brevemente, o período do regionalismo pós-hegemônico, destacando-se a criação da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), a fim de compreendermos o período atual de crises e mudanças na América do Sul, em especial com a concretização do governo de Jair Bolsonaro no Brasil.

A UNASUL se caracterizou como a principal organização criada nesta configuração da região. Em 2004, por iniciativa brasileira, desenvolveu-se a Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA), marcada pela associação, única, de doze países sul-americanos. Sua proposta baseava-se em cooperação política, com a coordenação de políticas exteriores e a convergência entre outras organizações, como a Comunidade Andina (CAN) e o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), e países como Chile, Guiana e Suriname, para uma área de livre comércio e uma integração física, energética e de comunicações, inserindo em seu escopo a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana. (SANAHUJA, 2009). Em 2008, essa Comunidade passou por uma transformação, com a assinatura do Tratado Constitutivo da União das Nações Sul-Americanas, objetivando promover na região uma personalidade jurídica internacional para dialogar com outros blocos, com o status de organização internacional. A UNASUL foi projetada como via alternativa às propostas da Organização dos Estados Americanos (OEA) e do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), para a resolução de conflitos regionais. Ademais, a União é uma instituição de caráter cooperativo regional, pautada nos vieses político, econômico, de infraestrutura, social e de defesa, sendo as decisões tomadas por consenso e implementadas de forma gradual.

Contudo, tal conjuntura passou a ser modificada a partir da ascensão de governos de centro-direita na região sul-americana e do término do ciclo das commodities. As mudanças políticas na Argentina, com a eleição de Mauricio Macri em 2015, e no Brasil, com o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, levaram ao poder governos de centro-direita, conservadores, liberais e ideologizados nos dois países líderes dos processos cooperativos regionais. Nota-se, assim, o “início do fim do ciclo pós-hegemônico” (BRICEÑO-RUIZ, 2020). Distintamente ao movimento anterior, ocorre uma aproximação dos países aos Estados Unidos de Donald Trump, sendo o caso mais expressivo o do Brasil de Jair Bolsonaro, que abandonou o discurso autonomista, e adotou uma visão baseada em “narrativas religiosas e/ou mitológicas” (SANAHUJA; BURIAN, 2020).

Representativamente a esta situação sul-americana, em 20 de abril de 2018, houve a solicitação de suspensão temporária de participação nas atividades da UNASUL por parte de Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai e Peru. A justificativa se baseou na ausência de consensos e resultados concretos na organização. Em 2019, Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai e Peru anunciaram suas saídas oficiais da União. No mesmo ano, houve a criação do Foro para o Progresso e Integração da América do Sul (PROSUL), como uma resposta da direita sul-americana frente a uma UNASUL enquadrada como ideológica e bolivariana.

Assim, observa-se a presença mais evidente dos Estados Unidos atrelada a uma influência nas políticas nacionais dos países sul-americanos. Argentina e Brasil passaram a intensificar seus laços com a superpotência, promovendo acordos na área de defesa, demonstrando uma maior adoção das perspectivas estadunidenses, especialmente quanto ao emprego das Forças Armadas em assuntos de segurança pública, o reconhecimento da ameaça do narcoterror nas fronteiras, bem como um alinhamento político-econômico. O âmbito regional projeta esse novo posicionamento dos governos e da diplomacia presidencial. Há uma transformação da abordagem de autonomia regional e estímulo quanto à cooperação sul-americana, a qual entrou em um processo de estagnação, com perda acentuada da vontade política das lideranças dos países.

Vale ressaltar que o governo Bolsonaro, iniciado em 2019, marca-se por uma associação estreita aos militares brasileiros, autodeclarando-se  como “um governo todo militarizado”, nas palavras do próprio presidente. Observa-se o dobro de pessoal militar presente em Ministérios e altos cargos públicos, dentre eles o Ministério da Defesa, em comparação a governos anteriores. Tais níveis são inéditos no período democrático brasileiro. (VERDES-MONTENEGRO; SOUZA, 2021).

A pandemia de COVID-19 insere-se como um agravamento da já existente crise do regionalismo. A utilização de discursos classificando a pandemia como um risco ou ameaça à segurança nacional converte-se em políticas e estratégias de segurança na maioria dos países. Observa-se um expressivo esquecimento da cooperação regional e internacional, associado à debilidade das instituições regionais, e à priorização da soberania e autonomia nacional. (BOSCHIERO, 2020).

No Brasil, o presidente Bolsonaro apresentou ceticismo quanto à pandemia, discordando de consensos científicos, minimizando seus impactos e mortes e fazendo referência à COVID-19 como uma “gripezinha” (VERDES-MONTENEGRO; SOUZA, 2021). O governo brasileiro ainda se destacou por sua ausência de iniciativa e liderança regional. Em reunião do PROSUL sobre a temática da pandemia, em 2020, Bolsonaro foi o único governante dos países membros a não participar do encontro (JUNQUEIRA; NEVES; SOUZA, 2020). Ademais, o Brasil bolsonarista consolidou seu “abandono” a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e estimulou discordâncias quanto à relevância do MERCOSUL, utilizando-se de “ameaças” de saída da organização e confrontos com o atual presidente argentino, Alberto Fernández, no referente à gestão da pandemia. Paralelamente, seguindo seu alinhamento estadunidense, promoveu que a OEA retornasse como uma instituição ativa na região latina. (FRENKEL, 2021).

Desta forma, na América do Sul do período de 2015 a 2022 houve o agravamento da crise do regionalismo, da cooperação e da busca por uma região autônoma e independente frente à     s potências mundiais. Os governos de centro-direita, com destaque ao Brasil de Bolsonaro, visaram o alinhamento aos Estados Unidos e a desintegração sul-americana. O Brasil, conhecido amplamente como o líder e mediador regional, se converteu em um país ausente e indiferente aos seus vizinhos e às suas iniciativas cooperativas institucionalizadas.

 

* Tamires Aparecida Ferreira Souza é doutora em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) e pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

Imagem: América do Sul. Por: delfi de la Rua/ Unsplash.

 

Referências Bibliográficas

BRICEÑO-RUIZ2, J. Da Crise da Pós-Hegemonia ao Impacto Da Covid-19. O Impasse do Regionalismo Latino-Americano. Rev. Cadernos de Campo, n. 29, p. 21-39, jul./dez. 2020.

BOSCHIERO, E. Riesgos globales y derechos humanos: hacia sociedades más resilientes, igualitarias y sostenibles In: Mesa, M. (coord.) Riesgos globales y multilateralismo: el impacto de la COVID-19 – Anuario 2019-2020. Madrid: CEIPAZ, 2020.

FRENKEL, D. Jair Bolsonaro e a desintegração da América do Sul: um parêntese? NUSO,  nº 2021, ago.-set. 2021.

JUNQUEIRA, C.; NEVES, B.; SOUZA, L. Regionalismo Sul-Americano nos anos 2020: O que esperar em meio às Instabilidades Políticas? Revista tempo do mundo, n. 23, ago. 2020.

RIGGIROZZI, P.; TUSSIE, D. The Rise of Post-Hegemonic Regionalism In Latin America. In: RIGGIROZZI, P.; TUSSIE, D. The Rise of Post-hegemonic Regionalism: The Case of Latin America. New York: Springer, 2012.

SANAHUJA, J. Del “regionalismo abierto” al “regionalismo post-liberal”. Crisis y cambio en la integración regional en América Latina. In: ALFONSO, L.; PEÑA, L; VAZQUEZ, M. (org) Anuario de la Integración Regional de América Latina y el Gran Caribe. Buenos Aires: CRIES, 2009. p.11-54.

SANAHUJA, J.; BURIAN, C. Las derechas neopatriotas en América Latina: contestación al orden liberal internacional. Revista CIDOB d’Afers Internacionals, n. 126, p. 41-63, 2020.

VERDES-MONTENEGRO, F.; SOUZA, T. ¿Misión cumplida? La militarización de la gestión sanitaria frente a la COVID-19 en Brasil. Análisis Carolina, v.30/2021, p.01 – 22, 2021.

Barganhas Militarizadas Interestatais na America Latina: uma região de paz violenta?

Iury França*

 

O presente trabalho objetiva evidenciar a presença de episódios de violência entre Estados latino-americanos, sob a forma de disputas interestatais militarizadas (MIDs). Conforme Gochman e Maoz (1984), MIDs são um “conjunto de incidentes envolvendo ameaça, exibição ou uso da força sancionada e dirigida pelo governo entre dois ou mais Estados”. Os eventos são separados por um intervalo temporal curto. Bremer (1993) define MIDs como situações em que Estados se ameaçam ou usam a força um contra o outro, na condição de até 1000 mortes. Uma vez que um conflito se torna militarizado, às vezes a ação inicial é seguida por contra-ações, numa “espiral ascendente de violência”. A escalada do conflito pode evoluir até ultrapassar o limiar das MIDs, tornando-se uma guerra entre Estados. Na mesma linha, Bremer, Jones, Singer (1996), afirmam que MIDs são “ações militarizadas envolvendo ameaça, emprego ou uso explícito da força por um membro do sistema internacional contra outro”.

Foi depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que pesquisas quantitativas sobre conflitos internacionais começaram a ser desenvolvidas e armazenadas em banco de dados (FREEDMAN, 2017). Métodos quantitativos poderiam gerar um novo campo de pesquisa para a paz. Segundo Freedman, para se ter acesso a fundos para pesquisa, os cientistas sociais pensaram em demonstrar que era possível prover pesquisas semelhantes à objetividade das ciências naturais, com a finalidade de desenvolver leis. Se leis pudessem ser criadas, o futuro da guerra poderia ser controlado (VASQUEZ, 2012 apud FREEDMAN, 2017) Nessa linha, policymakers [formuladores de políticas] poderiam reconhecer sintomas, fazer diagnósticos e identificar como tratar situações na iminência de desastres. Contudo, era necessário observar a importância do assunto em questão na geração da guerra, como observou John Vasquez (2012). Segundo ele, fatores como formação de alianças e expansão do aparato militar poderiam reforçar chances de conflito, além de que rivais teriam mais chance de ir à guerra que outros Estados.

Neste texto, trabalha-se com metodologia descritiva, via banco de dados disponibilizado pelo projeto Correlates of War (COW). O banco de dados é embasado no conceito de MID e seus graus. A escolha de parte do banco (MID_A 4.0) contempla o objetivo da pesquisa, uma vez que aborda aspectos como fatalidade, grau de intensidade e modo de resolução. O diferencial para o MID_B se dá na interpretação de um dos Estados (ou os dois) apresentar aspectos de revisionismo, seja territorial ou político. Para os fins deste trabalho, filtramos as descrições ao banco MID_A. Auxiliam no entendimento da violência na América Latina (AL): Bremer (1993), Freedman (2017); Gochman e Maoz (1984); Bremer, Jones e Singer (1996); D’Orazio et al. (2020); e Mares (2001; 2012).

Importante notar que, para Freedman (2017), os Estados são self-contained units [unidades autônomas]. O sistema internacional cria suas próprias motivações para a guerra. Com isso, mesmo após o fim da Guerra Fria, o autor entende que a perspectiva realista via a continuidade dos níveis de violência observados anteriormente. Nessa linha, David Mares (2001), ao se voltar para a América Latina, define que as primeiras e principais preocupações de segurança nesses países surgem de dois fatores: autopercepção e competição política. As externalidades de segurança se desenvolvem a partir de três arenas: internacional, regional e doméstica. Na arena internacional, os interesses dos EUA produzem externalidades de segurança para toda a AL. No nível regional, o foco é no nation-building [construção da nação] depois da independência. A prevalência de disputas de fronteiras na AL significa que o método de resolução (pacífico ou militar) tem uma significância maior. Na arena doméstica, quando o status quo é ameaçado na AL, as elites e os EUA se preocupam.

A existência do país em si não é um problema (MARES, 2001). As questões referentes à defesa surgem das características internas da região: fronteiras disputadas, desenvolvimento econômico desigual e disparidades de distribuição de poder. Nessa dinâmica, desde 1816, ocorreram 17 guerras na América Latina. Essas guerras também tiveram impacto na distribuição regional de poder. Em termos de MIDs, entre 1816 e 1976, houve 21 disputas entre países não-potência, ou 1/3 dos países da América Latina (GOCHMAN; MAOZ, 1984). Em complemento, Mares (2012) advoga que o contexto de segurança da América Latina tem sido essencialmente competitivo, no qual a dissuasão e a negociação militarizada predominavam entre os países.

A arquitetura de segurança da América Latina é única entre os países em desenvolvimento, tanto em sua extensão, quanto em sua amplitude. Segundo Mares (2012), o sistema de segurança coletiva provê segurança para cada país numa comunidade. Os esforços para deslegitimar o uso da força na América Latina incluem integração política, divisão de Estados, tentativas de acordo e controle de armas. Entretanto, os maiores esforços foram direcionados à prevenção da guerra, e não à questão de pequenos conflitos. Ações militares são resultado de uma interação que, em uma dada situação, um ator faz o cálculo custo/benefício, avaliando o uso da força militar como vantajoso em suas relações com um rival (MARES, 2012). O histórico não-pacífico da região e o cálculo de custo/benefício já tornaria a América Latina bastante instável. Junta-se a isso os esforços de segurança não-preventiva da América Latina e temos com mais clareza a questão do aparente descompromisso em lidar com a paz violenta. Mares (2012) cita a lentidão das nações latino-americanas em exigir das partes conflitantes o retorno ao status quo, pois favorece a ocorrência de ganhos em comportamentos beligerantes sem prestar esclarecimentos internacionais sobre incidentes.

O período documentado pelo Correlates of War abrange todo o contexto após as guerras napoleônicas de 1816. O projeto relata situações de MID, com os mais diferentes desfechos, incluindo guerra. Nesta seção, à exceção de guerra, evidencia-se objetivamente as 19 ocorrências de violência interestatal na América Latina entre 2000 e 2010. São informados resultado; resolução; número de fatalidades; ação mais expressiva; nível de hostilidade; reciprocidade na ação e se no ano de 2010 a disputa ainda ocorria.

Fonte: D’orazio et al (2020). Disponível em: https://academic.oup.com/isq/article-abstract/64/2/469/5531765.

O banco de dados pontua objetivamente a paz violenta na América Latina. Mesmo sem ocorrência de baixas, houve exibição de força e violações de fronteira em algumas disputas, e em todas constou nível de hostilidade 3 ou 4; sendo o nível 5 o correspondente à guerra. Posto isso, todas as situações verificadas apresentam grau de disputa intenso, com uso da força ou, no mínimo, exibição dela. Foi constatada maior frequência de incidentes entre Equador, Venezuela e Colômbia, envolvendo violação de fronteira com exibição de força.

A literatura argumenta que a região ainda não conheceu paz, apenas paz violenta. A ausência de constrangimento internacional facilita o cálculo de custo/benefício que os líderes latino-americanos fazem antes de recorrer a MIDs. Cada país define suas prioridades de defesa e seus entendimentos de ameaça e se sente mais livre para agir. Entende-se, dessa forma, que a América Latina ainda não é uma comunidade de segurança pacífica. Suas relações continuam frequentemente afetadas pela utilização de recursos militares em negociações entre os Estados.

 

* Iury França é mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Federal da Paraíba. É bacharel em Relações Internacionais pela mesma instituição. Desde 2017 é membro do Grupo de Estudos em Estudos Estratégicos e Segurança Internacional (GEESI – UFPB) e desde 2021 é membro do Programa de Cooperação Acadêmica em Defesa Nacional (ASTROS) do Ministério da Defesa do Brasil.

Imagem: América do Sul. Por: Pixabay.

Referências

CORRELATES OF WAR PROJECT. Militarized Interstate Disputes (v 5.0). Disponível em: https://correlatesofwar.org/data-sets/MIDs.

FREEDMAN, Lawrence. The future of war: a history. Public Affairs, 2017.

JONES, Daniel M.; BREMER, Stuart A.; SINGER, J. David. Militarized interstate disputes, 1816–1992: Rationale, coding rules, and empirical patterns. Conflict Management and Peace Science, v. 15, n. 2, p. 163-213, 1996.

MARES, David R. Latin America and the illusion of peace. Routledge, 2012.

_______. Violent peace. In: Violent Peace. Columbia University Press, 2001.

MITCHELL, Sara McLaughlin; VASQUEZ, John A. (Ed.). What do we know about war? Rowman & Littlefield, 2021.

PALMER, Glenn et al. Updating the militarized interstate dispute data: A response to Gibler, Miller, and Little. International Studies Quarterly, v. 64, n. 2, p. 469-475, 2020.

A atuação da ONU no conflito entre Rússia e Ucrânia

Kimberly Alves Digolin*

 

No dia 24 de fevereiro de 2022, um vídeo do presidente Vladimir Putin anunciou que a Rússia conduziria uma “operação militar especial” na região leste da Ucrânia, dando início a um conflito que já resultou em mais de 5,5 milhões de refugiados. Não bastasse a magnitude do ato em si, é importante também ressaltar os detalhes que envolveram esse anúncio. No momento em que a gravação de Putin era divulgada, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) – do qual a Rússia é membro permanente – reunia-se justamente com o propósito de buscar uma solução diplomática para as tensões bilaterais. Em outras palavras, o anúncio de Putin desferiu um golpe duplo: por um lado, à soberania da Ucrânia; por outro, à credibilidade da Organização das Nações Unidas (ONU). Esse cenário nos leva à questão norteadora do presente texto: quais as limitações da atuação da ONU no conflito russo-ucraniano?

Criada ao fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, o principal objetivo da ONU é garantir a manutenção da paz e da segurança internacional. Para isso, entre outros órgãos e departamentos subsidiários, a estrutura da organização inclui: um órgão deliberativo composto por todos os Estados membros, intitulado Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU); o Conselho de Segurança, único órgão com poder decisório formado por cinco membros permanentes com poder de veto, e dez membros não-permanentes com mandatos bianuais[1]; a Corte Internacional de Justiça (CIJ), principal órgão judiciário da Organização composto por quinze juízes; e o Secretariado, que presta serviço aos demais órgãos das Nações Unidas, administrando as políticas e os programas elaborados.

Trata-se, portanto, de uma organização intergovenamental de adesão voluntária que “representa o ápice do processo de institucionalização dos mecanismos de [cooperação e] estabilização do sistema internacional” (HERZ; HOFFMAN, 2004, p. 29), uma vez que possui 193 Estados membros e que está no centro dos debates internacionais sobre temas como proliferação nuclear, direitos humanos, desenvolvimento sustentável, entre outros. Porém, a despeito dessa estrutura tão consolidada e de sua legitimidade perante a sociedade internacional, o conflito entre Rússia e Ucrânia deixou à mostra diversas limitações.

Após a invasão russa da Ucrânia, a primeira ação da ONU foi convocar uma reunião emergencial do Conselho de Segurança no dia 25 de fevereiro para debater a questão. Contudo, o rascunho de resolução condenando a invasão da Ucrânia foi vetado pela Rússia, contando com abstenções de China, Emirados Árabes Unidos e Índia. Em seguida, utilizando um recurso intitulado “Uniting for Peace[2] (“Unindo-se pela Paz”, em tradução livre), o Conselho de Segurança convocou uma reunião extraordinária da Assembleia Geral das Nações Unidas para debater o conflito, a qual, no dia 2 de março, aprovou uma resolução conjunta condenando a investida russa com 141 votos a favor, 5 contra e 35 abstenções.

No âmbito da Corte Internacional de Justiça, foi divulgado no dia 16 de março o resultado da investigação sobre os possíveis crimes de guerra no conflito entre Rússia e Ucrânia. Ao apontar que não haveria provas de que a Ucrânia tivesse cometido ou planejado ataques que pudessem ser considerados crimes contra a humanidade, como argumentou a Rússia para legitimar a invasão, o parecer incluiu a decisão que o governo russo deveria suspender imediatamente suas ações militares em território ucraniano. O documento teve 13 votos favoráveis e 2 contrários, da Rússia e da China.

Uma nova resolução foi adotada pela AGNU no dia 24 de março, culpando a Rússia pela crise humanitária em curso. O documento foi elaborado pela Ucrânia e seus aliados e recebeu 140 votos a favor, 5 votos contra e 38 abstenções. Duas semanas depois, a partir de uma proposta estadunidense votada durante reunião da AGNU no dia 7 de abril, a Rússia foi expulsa do Conselho de Direitos Humanos da ONU[3] com 93 votos a favor, 24 contra e 58 abstenções. O único antecedente de um país expulso de algum Conselho da ONU ocorreu em 2011, envolvendo a Líbia. Além disso, destacam-se as viagens do secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, para Kiev e para Moscou – onde debateu propostas para a evacuação segura de civis e a entrega de ajuda humanitária.

Essa breve linha do tempo com as ações adotadas demonstra duas principais limitações em torno da atuação da ONU. A primeira diz respeito aos entraves que a Organização encontra ao se deparar com conflitos que envolvem as grandes potências com assento permanente no CSNU. E a segunda limitação, que está intrinsecamente associada à primeira, diz respeito à forma como interesses individuais de alguns Estados membros acabam por dificultar a atuação da Organização, tornando-a parcial e controversa. Em outras palavras, se o século XXI foi marcado por diversos conflitos – tão ou ainda mais violentos –, por que eles não foram alvo de tamanha mobilização onusiana como o caso da Ucrânia?

Ao ser criada com o objetivo de evitar uma nova guerra de grandes escalas, a estrutura da ONU foi moldada em torno do princípio de segurança coletiva e contenção mútua. Para isso, as grandes potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial e, portanto, com capacidade para iniciar novos conflitos de escala global foram alocadas em um órgão decisório com poder de veto, de modo que fossem capazes de impedir uma eventual tentativa de desestabilização da ordem internacional. Entretanto, é essa mesma estrutura que dificulta o debate coletivo em temas que envolvem de modo mais direto os interesses desses cinco países.

Para exemplificar esse argumento, basta resgatarmos o veto da Rússia na primeira reunião extraordinária do CSNU que debateu a invasão da Ucrânia, seu não-comparecimento à audiência da CIJ ou mesmo a ameaça que Moscou realizou ao afirmar que os países que votassem a favor de sua expulsão do Conselho de Direitos Humanos da ONU sofreriam retaliações – o que, inclusive, pode nos ajudar a compreender o alto número de abstenções em torno dessa votação na AGNU. Em contraponto, situar o conflito russo-ucraniano em um quadro mais amplo de disputa hegemônica nos ajuda a compreender de modo mais contundente os interesses estadunidenses e, por consequência, dos países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

Essas limitações suscitam críticas em torno da eficácia da ONU em garantir a manutenção da paz e da segurança internacional. Entre elas, podemos apontar que a própria estrutura da Organização representa uma cristalização da divisão de poder internacional, reforçando seu caráter excludente. A falta de representatividade no CSNU é alvo de contestações e envolve demandas frequentes por uma reforma que inclua membros permanentes da América Latina e da África, por exemplo. Além disso, a padronização de condutas a serem adotadas pelos países é associada a uma espécie de “ocidentalização da política internacional”, a qual mobiliza os mecanismos da ONU em casos que interessam aos Estados ocidentais – especialmente Estados Unidos e países da Europa –, mas dificulta o acionamento desses mesmos mecanismos nos casos em que a narrativa de violação aos direitos humanos vai contra os interesses dessas potências.

Nesse sentido, o aparato da ONU “pode ser interpretado tanto como uma ferramenta para a construção de uma sociedade mundial mais justa, quanto como um instrumento que legitima e justifica as assimetrias do sistema internacional” (REIS, 2006, p. 41). Como exemplo dessa instrumentalização dos mecanismos por parte das grandes potências, podemos citar as violações aos direitos humanos perpetradas pela Arábia Saudita – parceiro dos Estados Unidos –, mas que não foram objeto de tanta atenção internacional ou mesmo de resoluções mais taxativas condenando as ações do governo saudita.

No entanto, embora as críticas sejam legítimas e necessárias, é importante não perder de vista o papel fundamental que a ONU desempenha. Partindo do pressuposto de que a política internacional não é feita apenas pelas capacidades materiais, mas também de normas, ideias e simbolismos, a existência de organizações internacionais como a ONU representa uma série de importantes constrangimentos para os Estados que planejam se utilizar da violência para alcançar seus interesses. Embora muitas das resoluções e decisões adotadas no âmbito onusiano não subtraiam a soberania dos países, ou seja, não sejam obrigatórias, elas desempenham um importante papel nas relações internacionais, pois seu desrespeito pode gerar sanções dos mais diversos tipos. Lopes (2007) define essa autoridade da ONU como a capacidade que o aparato administrativo possui para inspirar confiança em indivíduos e Estados-membros por meio de suas ideias e ações, fazendo com que ocorra adesão às normas diretivas da Organização.

Lopes também argumenta que a autoridade da ONU não poderia ser refutada pela ocorrência de novos conflitos, mas que deveria, em realidade, ser reafirmada pelo fato de a Organização ter conseguido evitar até o presente momento uma Terceira Guerra Mundial. Ao resgatar o preâmbulo da Carta de São Francisco – que se inicia com a célebre expressão “Nós, os povos das Nações Unidas” – o autor argumenta que a proposta de manutenção da paz ali expressa “significava impedir a ocorrência de uma terceira guerra em que estivessem envolvidas as grandes potências mundiais – e não, como algumas análises querem fazer crer, impedir qualquer novo confronto internacional” (LOPES, 2007, p. 50). Embora seja importante pontuar que o atual cenário de invasão da Ucrânia se mostra particularmente desafiador para a ONU, uma vez que o próprio ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, afirmou que existe um sério risco de ocorrer uma Terceira Guerra Mundial caso os países membros da OTAN continuem oferecendo armamentos para a Ucrânia.

Por fim, para além da pressão política, a ONU também desempenha um papel fundamental no apoio às vítimas, na investigação de eventuais violações e mesmo em eventuais mediações de cessar-fogo ou resolução do conflito. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), por exemplo, tem como principal função prestar assistência aos refugiados e pessoas que foram obrigadas a deixar suas cidades por conta de guerras, conflitos ou perseguições. A ajuda aos civis vítimas do conflito entre Rússia e Ucrânia passa em grande parte por essa estrutura, tanto no que se refere às normas legais que orientam as ações dos Estados no acolhimento dessas pessoas, quanto na coleta de dados e na rede de apoio propriamente dita. Em suma, embora o figurino demande atenção, o papel da ONU segue necessário na complexa peça de teatro da política internacional.

* Kimberly Alves Digolin é professora de Relações Internacionais na Universidade Paulista (UNIP), mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), especialista em Docência para o Ensino Superior, e pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

Imagem: Volodymyr Zelensky em reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Por: Manhhai/ Flickr CC.

[1] Os membros permanentes do CSNU são: China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia. Os atuais membros não-permanentes são: Albânia, Brasil, Gabão, Gana, Emirados Árabes Unidos, Índia, Irlanda, Quênia, México e Noruega.

[2] Convocar reuniões extraordinárias da AGNU foi um recurso muito utilizado durante a Guerra Fria, por conta da “política de travamento” que caracterizou o CSNU em meio às tensões entre Estados Unidos e a antiga União Soviética. Além disso, também foi utilizado em algumas ocasiões para debater o conflito entre Israel e Palestina.

[3] É importante destacar que, no dia 4 de março, foi criada uma comissão internacional independente de inquérito no âmbito do CDH da ONU para verificar violações aos direitos humanos durante o conflito entre Rússia e Ucrânia.

Tensão na fronteira ucraniana: reflexos de um mundo em mudança

                                                                        Getúlio Alves de Almeida Neto*

 

O ano de 2021 marcou os 30 anos da dissolução da União Soviética. No início do mês de dezembro deste mesmo ano, tropas russas – em números estimados em até 175 mil, segundo os serviços de inteligência do governo dos Estados Unidos – foram posicionadas próximas às fronteiras com a Ucrânia. A situação provocou o aumento da tensão das relações russo-estadunidenses e pode ser apontada como reflexo de um processo que evidencia a questão ainda a ser resolvida sobre as configurações de forças e a arquitetura de segurança no continente europeu, sobretudo no que tange ao chamado espaço pós-soviético, e são motivos de apreensão aos olhos da comunidade internacional em relação à iminência de um conflito em maiores escalas.

Apesar de intensificada ao longo da última década, a latência destas tensões pode ser traçada desde a queda do bloco comunista em 1991. Nesse sentido, os acontecimentos e desdobramentos observados neste período trazem à tona alguns pontos que merecem atenção especial. Em primeiro lugar, torna-se claro que, mesmo passados 30 anos, a formação dos novos Estados pós-soviéticos ainda traz questionamentos sobre a identidade destes e o papel da Rússia neste novo contexto geopolítico. Em segundo lugar, mostram a evolução da capacidade militar russa e a disposição do Kremlin em fazer uso de suas forças armadas – direta ou indiretamente – no processo de barganha e reivindicação de seus interesses. Como terceiro ponto, destaca-se a tendência de reconfiguração de forças no tabuleiro internacional a partir da ascensão da China ao posto de principal concorrente dos Estados Unidos e do renascimento militar russo. Em razão destes dois elementos, os cálculos estratégicos  dos atores envolvidos passam a ser feitos a partir da percepção do fim da hegemonia estadunidense estabelecida no pós-Guerra Fria. Por fim, este cenário evidencia o papel crucial da geopolítica para análise da política externa russa e de sua relação com os Estados Unidos e a OTAN. Na origem das tensões atualmente em curso na Ucrânia encontra-se um fenômeno geopolítico percebido pela Rússia como lesivo a sua segurança nacional: a crescente expansão da OTAN, uma aliança militar forjada para combater a União Soviética, em direção às fronteiras russas.

A crise em torno da Ucrânia se iniciou após o posicionamento de tropas russas munidas de artilharia, veículos blindados de combate e tanques ao redor de praticamente toda a fronteira com a Ucrânia. Conforme pode ser visto por imagens de satélites, Kiev se vê cercada ao norte, leste e sul por forças russas. O medo gerado pela aproximação de soldados à fronteira ucraniana se deve ao histórico recente de anexação da Crimeia (2014) e apoio militar – ainda que negado oficialmente pelo Kremlin – às forças separatistas na região do Donbass, nas autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk. Todos estes elementos fazem com que Ucrânia, Europa e Estados Unidos passem a projetar a possibilidade de invasão militar russa em solo ucraniano. Vale ressaltar, no entanto, que, em abril de 2021, episódio semelhante já havia acontecido. Na ocasião, o governo russo alegou se tratar de uma ação defensiva em resposta aos exercícios militares da OTAN na Europa e como medidas preemptivas para impedir o governo ucraniano de lançar uma ofensiva na região de Donbass (BIELIESKOV, 2021).

Com o objetivo de resolver o impasse, uma sequência de conversas entre líderes da Rússia, EUA e OTAN têm acontecido. Nas negociações, o Kremlin lançou uma gama de reivindicações que incluem, principalmente: 1) o compromisso da OTAN em nunca incorporar a Ucrânia à aliança militar ocidental; 2) eliminar a alocação de armas e tropas da OTAN em países que aderiram à aliança após 1997[1]; 3) banimento de mísseis balísticos de alcance intermediário da OTAN instalados na Europa; 4) garantir a autonomia através da região de Donbass através da federalização da Ucrânia conforme os acordos de Minsk de 2015 (MEYNES, 2022).

Desse modo, o Kremlin tem elevado suas apostas sobre a reposta da OTAN a uma eventual invasão russa em território ucraniano, com o objetivo de coagir seus membros a uma nova rodada de negociações que estabeleça garantias à segurança russa e que formalmente estabeleça o fim da expansão militar ocidental próximo à fronteira russa. Segundo Pifer (2021), Putin sabe que as demandas feitas seriam consideradas desproporcionais pelo governo Biden e pelos outros líderes da OTAN, que tais termos não seriam aceitos e que sua rejeição poderia servir como um pretexto para a incursão russa. Pode-se conjecturar, também, a hipótese de que Vladimir Putin estaria testando os limites de concessões e a forma de negociação do governo estadunidense sob comando de Biden.

Nesse sentido, pode-se argumentar que um objetivo do governo russo foi atingido, ao menos por ora: gerar tensão para chamar atenção das potências ocidentais e garantir um lugar à mesa de negociação, estabelecendo seus próprios termos e interesses. Entre esses interesses, destaca-se o objetivo de reformular a configuração de forças estabelecidas no pós-Guerra Fria, no qual o avanço da OTAN ao Leste Europeu e a adesão de ex-repúblicas bálticas soviéticas, além da sinalização da possível adesão de Geórgia e Ucrânia, foram percebidas por Moscou como política agressiva do bloco ocidental capitaneado por Washington e ameaça à segurança doméstica russa. Com isso em mente, a postura atual russa em relação à Ucrânia deve ser entendida como uma estratégia de brinkmanship, que consiste na elevação da tensão e ameaça de um conflito iminente em busca de obter ganhos em relação à contraparte, como visto na Crise dos Mísseis de Cuba, em 1962. De fato, um episódio que ressoou as tensões vividas no auge da Guerra Fira, o vice-chanceler da Rússia, Sergei Ryabkov cogitou a possibilidade de envio de recursos militares russos à Cuba e Venezuela.

A Rússia parece, a princípio, ter vantagem quanto aos desdobramentos da crise ucraniana. Enquanto suas tropas não ultrapassarem a fronteira, o país não poderá ser acusado de agressão e, nesse meio tempo, continuará a pressionar o Ocidente a negociar em termos favoráveis a Moscou. Como consequência, o dilema de como agir em relação a este imbróglio fica, em sua maior parte, nas mãos da Administração Biden. No cenário em que os Estados Unidos concordem com as demandas de Moscou, a imagem de Washington a nível internacional demonstraria um sinal de fraqueza e mais um indício de que a hegemonia exercida pelo país desde o fim da Guerra Fria está se deteriorando, uma vez que a despeito do imenso poderio militar e econômico, não é mais capaz de fazer prevalecer seus interesses políticos ao redor do globo.

No cenário em que os Estados Unidos iniciem o conflito, Putin terá ainda mais argumentos para justificar a intervenção militar na Ucrânia e aumentar sua retórica de expansionismo militar ocidental como ameaça à segurança russa. Caso a Rússia eventualmente tome o primeiro passo e invada a Ucrânia, Biden terá que lidar com o dilema de não reagir com o uso de força militar, como já ocorreu no caso da Crimeia e, novamente, demonstrar fraqueza política, ou também enviar tropas à Ucrânia. Se este último cenário acontecer, haveria uma linha tênue entre evitar a escalada dos conflitos e se ver em meio a uma guerra indesejada, logo após a retirada humilhante das tropas do Afeganistão.

A retaliação não-bélica mais provável seria, portanto, a aplicação de sanções à Rússia. Contudo, Moscou tem demonstrado, desde a anexação da Crimeia, que está disposta a sofrer os custos econômicos em detrimento de seus interesses estratégico-securitários e garantir a primazia de sua influência política e militar sobre as ex-repúblicas soviéticas, sobretudo no caso da Ucrânia, cujos laços históricos e culturais trazem um elemento de ainda mais complexidade. Como bem define Bordachev (2021, p. 13, tradução nossa) “a política externa russa não é focada em considerações materiais: as questões de segurança, prestígio e étnicas prevalecem sobre os ganhos e benefícios.”

Não obstante, é preciso dizer que a eclosão de um conflito tampouco é de interesse entre os russos. Como mostra Kolesnikov (2021), a população não é favorável a um conflito com a Ucrânia, sobretudo em razão dos laços históricos entre os dois povos. Além disso, o apoio político a Vladimir Putin, a nível doméstico, vem se deteriorando em decorrência dos anos de estagnação econômica e da pandemia de Covid-19. A possibilidade de uma repressão violenta a eventuais protestos contra o governo russo ecoaria os acontecimentos em Belarus e Cazaquistão[2] e seria mais um elemento prejudicial à figura do presidente, doméstica e internacionalmente.

Por fim, cabe destacar que a atual situação envolvendo a possibilidade de um conflito na Ucrânia se desenvolve a partir de um cauteloso cálculo estratégico das potências envolvidas. Ainda que o autor desta análise acredite ser improvável a eclosão de um conflito, ao menos em curto e médio prazo, os desdobramentos das negociações e o desencadeamento de hostilidades em razão de possíveis falhas de comunicação entre as partes dotam o futuro das relações russo-estadunidenses em relação ao contexto pós-soviético de uma grande carga de imprevisibilidade.

[1] A expansão da OTAN a partir de 1997 deu-se em quatro rodadas de adesão de novos membros: Hungria, Polônia e Tchéquia (1999); Estônia, Letônia, Lituânia, Eslováquia, Eslovênia, Romênia e Bulgária (2004); Albânia e Croácia (2009); Montenegro (2017) e Macedônia do Norte (2020).

[2] No caso de Belarus, os protestos eclodiram em 2020, após o anúncio da reeleição de Lukashenko, a sexta seguida desde a independência do país da União Soviética, apesar das pesquisas eleitorais apontarem para a derrota do governante. No Cazaquistão, as revoltas começaram no início de 2022 em resposta ao aumento do preço dos combustíveis. Em comum, os dois casos se dão em ex-repúblicas soviéticas marcadas pela centralização de poder e autoritarismo de seus governos, que contam com o apoio de Vladimir Putin para a manutenção de seus mandatos. Na crise cazaque, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) – aliança militar composta por Armênia, Belarus, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia e Tadjiquistão – foi acionada pela primeira vez desde sua criação, em 1992, a pedido do governo cazaque. A Rússia contribuiu com, ao menos, 2 mil soldados.

 

*Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Defendeu a Dissertação de Mestrado sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br

Imagem: Foto de Kiev por Pixabay.

REFERÊNCIAS

BIELIESKOV, Mykola. The Russian and Ukrainian Spring 2021 War Scare. Center for Strategic and International Studies. Disponível em: csis.org/analysis/russian-and-ukrainian-spring-2021-war-scare. Acesso em: 18 jan. 2022.

BORDACHEV, Timofei. Space Without Borders: Russia and Its Neighbours. Valdai Discussion Club. December 20, 2021. Disponível em: https://valdaiclub.com/a/reports/space-without-borders-russia-and-its-neighbours/. Acesso em: 18 jan. 2022.

EM RESPOSTA à OTAN, Rússia não descarta enviar militares para Cuba e Venezuela. O Povo. 13 jan. 2022. Disponível em: https://www.opovo.com.br/noticias/mundo/2022/01/13/em-resposta-a-otan-russia-nao-descarta-enviar-militares-para-cuba-e-venezuela.html. Acesso em 21 jan. 2021.

GONCHARENKO, Roman. O que está por trás da crise do Cazaquistão. Deutsche Welle. 06 jan. 2022. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/o-que-est%C3%A1-por-tr%C3%A1s-da-crise-no-cazaquist%C3%A3o/a-60349114. Acesso em: 21 jan. 2022.

HÖPPNER, Stephanie. Entenda os protestos em Belarus. Deutsche Welle. 20 ago. 2020. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/entenda-os-protestos-em-belarus/a-54636597. Acesso em: 21 jan. 2022.

KOLESNIKOV, Andrei. How do Russians Feel About War With Ukraine? Carnegie Moscow Center. 16 dez. 2021. Disponível em: https://carnegiemoscow.org/commentary/86013. Acesso em: 18 jan. 2022.

MAYNES, Charles. 4 things Russia wants right now. NPR. January 13, 2022. Disponível em: https://www.npr.org/2022/01/12/1072413634/russia-nato-ukraine. Acesso em: 18 jan. 2022.

PIFER, Steven. Russia’s draft agreements with NATO and the United States: Intended for rejection? Brookings. December 21. 2021. Disponível em: https://www.brookings.edu/blog/order-from-chaos/2021/12/21/russias-draft-agreements-with-nato-and-the-united-states-intended-for-rejection/. Acesso em: 18 jan. 2022.

SCHWIRTZ, Michael; REINHARD, Scott. How Russia’s Military Is Positioned to Threaten Ukraine. The New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/interactive/2022/01/07/world/europe/ukraine-maps.html.  Acesso em: 18 jan. 2022.

SONNE, Paul; HARRIS, Shane. Russia planning massive military offensive against Ukraine involving 175,000 troops, U.S. intelligence warns. The Washington Post. December 3, 2021. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/national-security/russia-ukraine-invasion/2021/12/03/98a3760e-546b-11ec-8769-2f4ecdf7a2ad_story.html. Acesso em: 18 jan. 2022.

O AUKUS e o pivô do Reino Unido para o Indo-Pacífico

João Vitor Tossini*

Em 15 de setembro de 2021, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou em conjunto com os primeiros-ministros do Reino Unido, Boris Johnson, e da Austrália, Scott Morrison, o estabelecimento de uma parceria de segurança envolvendo os três países. Intitulado de AUKUS (acrônimo do nome dos três membros em inglês), a parceria simboliza a crescente disposição de seus governos em estabelecer iniciativas que permitam o fortalecimento de suas posições estratégicas no Indo-Pacífico (AUSTRALIA, 2021). No caso britânico, o AUKUS pode ser compreendido por meio da política da “Grã-Bretanha Global” (Global Britain), lançada em 2016, que busca consolidar o Reino Unido como a principal potência militar na Europa, fortalecer laços diplomáticos e econômicos com antigos parceiros para além da União Europeia e, desde março de 2021, restabelecer o país como a principal potência europeia no Indo-Pacífico (UNITED KINGDOM, 2021).

Ademais, de forma similar ao que se entende como uma escolha estratégica da Austrália pelos Estados Unidos no lugar de outra posição na competição com a China (MAO, 2021), os termos e as consequências do AUKUS indicaram a preferência da Austrália pela parceria estratégica com o Reino Unido ao invés da União Europeia, mais especificamente, a França. Logo, indica-se que a posição britânica na iniciativa representa o avanço da agenda da Grã-Bretanha Global no Indo-Pacífico, região em que, desde meados dos anos 1990, a França ocupou por meio de seus territórios e departamentos ultramarinos uma posição relativa mais robusta do que Londres no âmbito geoestratégico. Assim, no caso do Reino Unido, o AUKUS está inserido em uma política de retorno do enfoque britânico a regiões fora do eixo euro-atlântico, simbolizando modificações em relação à política estratégica desse país que esteve marcada pela ênfase na Europa durante parte significativa da Guerra Fria.

Grã-Bretanha Global e o AUKUS

A política da Grã-Bretanha Global, lançada pelo Governo Theresa May (2016-2019) após a decisão pela saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit), nomeou uma tendência britânica iniciada no pós-Guerra Fria de crescente engajamento internacional com maior ênfase na projeção de poder militar e político do país fora do cenário europeu (HYDE-PRICE, 2007; UNITED KINGDOM, 1998; 2015; 2021). Nos governos John Major (1990-1997) e, especialmente, Tony Blair (1997-2007), o Reino Unido retomou um posicionamento internacional intervencionista que levou a participação britânica em uma série de conflitos militares nos Balcãs, em Serra Leoa, Afeganistão e Iraque (LUNN; MILLER; SMITH, 2008).

Os sucessores de Blair mantiveram parte das operações iniciadas em seu governo, além de participarem de outras na Líbia e na Síria. Gradativamente, o governo em Londres retomava um enfoque em capacidades expedicionárias e reduziam a prioridade de compromissos militares no continente europeu, alterando a prática vigente na Guerra Fria que era centrada na defesa terrestre convencional da Alemanha Ocidental e outros aliados continentais contra uma ofensiva soviética (HYDE-PRICE, 2007). Em 2020, a conclusão de um plano de 2010 de retirada da maioria das forças militares do Reino Unido da Alemanha apresenta-se como outro evento simbólico dessa reorientação estratégica britânica.

Dessa forma, o voto da maioria dos britânicos pelo Brexit em 2016 ocorreu em meio ao crescente enfoque estratégico de Londres em regiões ultramarinas. No início de 2021, o governo britânico passou a incluir formalmente o Indo-Pacífico como uma de suas áreas prioritárias de atuação (UNITED KINGDOM, 2021), além da tradicional presença e intervenções dos anos anteriores no Oriente Médio e na África. Denominada de “tilt” ou pivô para o Indo-Pacífico, a “nova” prioridade estratégica do Reino Unido pode ser considerada como uma pontuação dos objetivos presentes na política da “Grã-Bretanha Global”. Ademais, a crescente expansão da atuação diplomática e militar do Reino Unido pode ser relacionada à percepção da ascensão da China no Indo-Pacífico e ao crescente peso econômico da região no sistema internacional, especialmente no quesito de busca de novos mercados que substituem parcialmente a União Europeia no comércio britânico (HARPER, 2020). Em suma, o Reino Unido deseja restabelecer sua posição como a principal potência europeia nessa região, que foi eclipsada pela França desde o fim de sua presença militar e controle de Hong Kong em 1997, ao passo que busca equilibrar a oposição ao crescimento chinês e desfrutar do crescimento econômico regional (UNITED KINGDOM, 2021).

O AUKUS envolve três Estados com relativa proximidade no campo de defesa e segurança. Os Estados Unidos, a Austrália e a Nova Zelândia constituem o Tratado ANZUS, aliança de defesa e cooperação militar formada em 1951. Apesar de a Nova Zelândia não aderir totalmente ao ANZUS devido a sua política de proibição de armas nucleares em seu território, o Tratado apresenta-se como uma das bases da cooperação bilateral em defesa dos Estados Unidos com a Austrália (MCCLURE, 2021). Desde 1971, o Reino Unido possui um acordo similar com Austrália, Nova Zelândia, Singapura e Malásia, intitulado “Cinco Acordos de Força de Defesa” (Five Power Defence Arrangements). Além disso, o Reino Unido, a Austrália e os Estados Unidos – em conjunto com o Canadá e a Nova Zelândia –, constituem os “Cinco Olhos” (Five Eyes), um sistema de cooperação em questões de inteligência e comunicações estabelecido entre Londres e Washington durante a Segunda Guerra Mundial.

Com isso torna-se possível compreender a relevância dos termos do AUKUS. A iniciativa possui como aspecto central a criação de uma “parceria trilateral de segurança”, em conjunto com a cooperação no quesito de inteligência e comunicações dos Cinco Olhos, que envolva os três países, possibilitando um novo meio de diálogo estratégico. Adicionalmente, o AUKUS possui como objetivo maximizar a cooperação e a interoperabilidade entre as forças armadas de seus membros, além de incrementar a “integração” de suas capacidades tecnológicas e industriais de defesa. Consequentemente, o AUKUS pode reafirmar a preponderância de artigos da indústria bélica do Reino Unido e, especialmente, dos Estados Unidos na composição das capacidades militares da Austrália, consolidando esse crescente mercado como compradores do complexo industrial norte-americano e britânico (GILL, 2021).

Assim, o primeiro projeto significativo do AUKUS incluiu a venda de artigos militares para os australianos. A parceria estabeleceu um acordo que visa à venda de submarinos de propulsão nuclear aos australianos, sendo a tecnologia de propulsão nuclear fornecida por parte dos Estados Unidos e do Reino Unido (AUSTRALIA, 2021). Além dos questionamentos sobre o aspecto da proliferação nuclear, ainda que a iniciativa não envolva a transferência de armamentos nucleares, o AUKUS resultou no cancelamento da compra australiana de 12 submarinos convencionais franceses, que totalizaria aproximadamente 66 bilhões de dólares (JONES, 2021). Em contraste, além dos submarinos nucleares, em 2018, o Reino Unido assegurou a venda da próxima geração de fragatas da Marinha Real Australiana, vencendo competidores europeus, enquanto que as aquisições australianas de outros artigos militares dos Estados Unidos contribuíram para elevar o país para a segunda posição entre os importadores de produtos militares (GILL, 2021).

Concernente à decisão australiana de cancelar a compra dos submarinos franceses, ainda que os dois países mantenham cooperação em assuntos de defesa e segurança na região do Pacífico, o AUKUS exclui a França dos projetos de aquisição da Marinha Real Australiana para os anos 2020. A decisão posterior da União Europeia em postergar as negociações de um Acordo de Livre-Comércio com a Austrália, apresenta-se como uma resposta conjunta do bloco em apoio ao governo francês. Contudo, o impacto dessa decisão foi previamente amenizado pela Austrália com o avanço das negociações de livre-comércio com o Reino Unido em julho de 2021. Tendo que, em 2019, o comércio total australiano com o Reino Unido (30 bilhões de dólares) representava quase 40% das trocas com a União Europeia (78 bilhões de dólares), o avanço das negociações com os britânicos apresenta-se como significativa, compensando parcialmente os atritos comerciais com o bloco europeu. Nesse sentido, a aproximação estratégica australiana com o Reino Unido possui reverberações adversas para o papel da França e de outros membros da União Europeia em aspectos militares e comerciais no Indo-Pacífico.

Dessa forma, a iniciativa trilateral envolvendo o Reino Unido, os Estados Unidos e a Austrália encontra-se em um contexto de convergência da ampliação da zona de atuação estratégica de Londres (UNITED KINGDOM, 2021) com os anseios da Austrália por capacidades militares robustas (AUSTRALIA, 2020) e com o “pivô para a Ásia” dos Estados Unidos. Em adição, o caso do AUKUS representou uma convergência de interesses estratégicos de Londres na região. A formação dessa parceria contribuiu para o avanço de dois objetivos da Grã-Bretanha Global.

No aspecto econômico, a AUKUS detém o potencial de fornecer um dos acordos mais substanciais ao setor industrial de defesa do Reino Unido em anos, ao passo que, estrategicamente, fornece a um aliado próximo os meios militares para contribuir na contenção da ascensão militar chinesa na região. Além disso, os poucos detalhes da transferência de tecnologia nuclear indicam que Londres e Washington planejam capacitar a Austrália para a manutenção dos reatores nucleares, enquanto o funcionamento da tecnologia e dos sistemas de propulsão nuclear serão retidos pelos dois países. Logo, a Austrália passará a deter uma dependência dos demais membros do AUKUS para a continuidade da operação dessa tecnologia (GILL, 2021), contribuindo para a persistência do alinhamento estratégico australiano com os Estados Unidos e o Reino Unido em detrimento de outras parcerias.

 

* João Vitor Tossini é doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

Imagem:UK Carrier. Por: U.S. Indo-Pacific Command.

 

 

Referências Bibliográficas:

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AUSTRALIA. Prime Minister Office. Joint Leaders Statement on AUKUS. Media Statement. 16 set 2021. Disponível em https://www.pm.gov.au/media/joint-leaders-statement-aukus Acesso em 01 out. 2021.

GILL, Bates. AUKUS is a Big Deal, but Needs to be Put in Perspective. Royal United Services Institute (RUSI). 20 September 2021. Disponível em: https://rusi.org/explore-our-research/publications/commentary/aukus-big-deal-needs-be-put-perspective Acesso em: 03 out. 2021.

HARPER, Stephen J. A Very British Tilt. Towards a new UK strategy in the Indo-Pacific Region. Policy Exchange. Report by Policy Exchange’s Indo-Pacific Commission, London, 2020.

HYDE-PRICE, Adrian. European Security in the Twenty-First Century: The Challenge of Multipolarity. London: Taylor & Francis Group, 2007.

JONES, Dustin. Why A Submarine Deal Has France At Odds With The U.S., U.K. And Australia. NPR News. September 19, 2021. Disponível em: https://www.npr.org/2021/09/19/1038746061/submarine-deal-us-uk-australia-france Acesso em 03 out. 2021.

LUNN, Jon; MILLER, Vaughne; SMITH, Ben. British foreign policy since 1997. Research Paper 08/56. House Commons Library. 23 June 2008.

MAO, Frances. Aukus: Australia’s big gamble on the US over China. Sydney, British Broadcast Corporation. 22 September. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-australia-58635393 Acesso em: 30 set. 2021.

MCCLURE, Tess. Aukus submarines banned from New Zealand as pact exposes divide with western allies. New Zealand, The Guardian, 16 set. 2021. Disponível em https://www.theguardian.com/world/2021/sep/16/aukus-submarines-banned-as-pact-exposes-divide-between-new-zealand-and-western-allies Acesso em 01 out. 2021.

UNITED KINGDOM. Integrated Review of Security, Defence, Development and Foreign Policy. CP 403. Presented to Parliament by the Prime Minister by Command of Her Majesty. 16 March 2021.

 

Represa da Renascença reacende tensões geopolíticas entre Egito, Sudão e Etiópia

Lucas Oliveira Ramos*

Muitas das tensões geopolíticas no Chifre da África são decorrentes da luta colonial e histórica dessa sub-região que envolveu  França, Itália, Reino Unido e  Etiópia (nação que resistiu à jornada colonial europeia dos séculos passados). Hoje, a herança dessa luta pode ser lida através das disputas territoriais, as indefinições acerca da posse e do uso dos recursos hídricos advindos do Rio Nilo e a crescente onda de migração e refúgio, corolário dos conflitos civis e interestatais que esses países sofreram em seu passado recente.

Recentemente, atritos nas relações de Etiópia, Sudão e Egito voltaram ao centro das atenções devido ao acirramento das negociações da construção da barragem no Rio Nilo, projeto e sonho antigos dos governos etíopes. Dadas as instabilidades internas e rivalidades entre esses três países, a possibilidade da militarização dessa região é iminente e chama a atenção.

 

Uma breve retomada histórica das relações tríplice

No início de março de 2021, Sudão e Egito assinaram um pacto militar que visava a melhoria das relações entre os dois Estados através de um encaixe coeso no que tange às suas principais políticas de segurança nacional. Este acordo surge no contexto de negociações das barragens momentaneamente interrompidas da Represa do Renascimento (Grand Ethiopian Renaissance Dam — GERD) e a consequente disputa fronteiriça com Sudão e Etiópia. Historicamente, os três países disputam a posse e usufruto dos recursos hídricos do Nilo. Importante ressaltar que a Etiópia é um país montante (mais próximo da nascente) em relação ao Nilo e possui cerca de 85% da extensão do rio, ao passo que Sudão e Egito estão à jusante (mais próximos da foz).

Em 2011, Meles Zenawi, à época primeiro-ministro etíope, lançou os fundamentos da GERD. Desde então, reacenderam-se os problemas de cooperação fronteiriça sobre o domínio das águas daquela região, o que contribuiu para o pacto firmado em 2021 pelo Egito e o Sudão. Muito embora ambos os países afirmem que o motivo do pacto tem a ver com as semelhanças em relação aos desafios de segurança nacional e às grandes possibilidades de spillover das suas situações internas, é importante que esse pacto também seja interpretado dentro do contexto geopolítico ampliado.

A assinatura do acordo aconteceu após a visita do Ministro dos Negócios Estrangeiros sudanês, Mariam Al Mahdi, ao presidente egípcio Abdel Fattah El Sisi. Os chefes de pessoal das forças armadas de ambos os países, General Mohammed Farid Hegazy (Egito) e General Mohamed Othman Al Hussein (Sudão), assinaram o pacto na capital do Sudão, Cartum.

Em declaração, ambas as partes expressaram a sua gratidão pelo aumento das relações de segurança e cooperação entre os dois países. O General Hegazy declarou que “o Egito está pronto para atender o pedido do Sudão em todos os domínios, incluindo armamentos, formação conjunta, apoio técnico e fronteiras conjuntas de segurança”, aludindo à potencial ameaça iminente que paira sobre ambos os países. Esta declaração serve como uma garantia para os sudaneses, mas um aviso aos potenciais inimigos sobre a disponibilidade de recursos e a prontidão para utilizá-los.

À época em que a declaração foi redigida, a Etiópia ainda não havia respondido ao movimento estratégico de Egito e Sudão. Ainda assim, em março de 2021, o Sudão acusou a Etiópia de estar envolvida em disputas relacionadas com a fronteira. A disputa de um século sobre a região al-Fashqa — onde a região de Amhara, na Etiópia, se encontra com o estado sudanês de Gadarif — foi reacendida recentemente. Os tratados anglo-etíopes de 1902 e 1907 atribuíram a terra ao Sudão, mas os agricultores etíopes utilizaram as terras agrícolas ao longo dos anos. Em 2008, o antigo primeiro-ministro da Etiópia, Meles Zenawi, e o governo do Sudão celebraram um acordo bilateral relativo à disputa fronteiriça da al-Fashqa. A Etiópia reconheceria a área como parte do Sudão e, em troca, os agricultores etíopes seriam autorizados a continuar a lavrar as terras agricultáveis. 

Tanto o Sudão como a Etiópia acusaram-se mutuamente de usurpação. No início de 2021, o Sudão recuperou a zona al-Fashqa e acusou a Etiópia de sobrevoar aviões militares, emboscando soldados sudaneses e matando civis, incluindo cinco mulheres e crianças. A Etiópia alegou que os militares sudaneses tiraram proveito  de sua supervisão e  proteção de  fronteiras para invadir e pilhar propriedades, enquanto abordava o conflito do Tigray.

Cartum, por sua vez, alega que Adis Abeba vendeu armas a grupos rebeldes para permitir a desestabilização do país, um ato que os sudaneses entendem como uma tentativa de distração  das verdadeiras questões que afligem ambas as partes e a região, em geral. Estas acusações surgem na sequência da assinatura do pacto militar entre o Egito e o Sudão em março.

Interesses, segurança e a Represa da Renascença

A GERD tem sido um ponto de inflexão à cooperação na região. Na sequência da decisão unilateral da Etiópia de construir uma barragem de 6.450 megawatts no alto do Nilo Azul, o Sudão e o Egito contestaram a decisão invocando direitos “históricos” ou “coloniais” sobre a via navegável, tal como acordado pelo Tratado Anglo-Egípcio de 1929 e 1959.

Na sua busca por desenvolvimento e autonomia, a Etiópia considera a segurança energética como um fator importante e integral. À jusante, Egito e Sudão citaram o risco potencial para a sua segurança hídrica com implicações para a alimentação, o meio ambiente e a segurança humana, mais amplamente, nos seus territórios. Independentemente das suas preocupações, a Etiópia construiu a barragem e a segunda fase de abastecimento  está atualmente em curso. Esta tem sido a fonte do imbróglio entre os três países.

O Egito e o Sudão apelaram a um “acordo global” para assegurar que os seus interesses não sejam ameaçados após a conclusão da barragem. Em resposta, a Etiópia rejeitou o pedido de outro acordo e está prestes a iniciar a segunda fase da construção da barragem. O Egito e o Sudão responderam assinando o pacto militar para reforçar a inteligência e a partilha de recursos entre os dois Estados à jusante.

Ambiente político interno

A dinâmica política interna instável tanto na Etiópia como no Sudão é outro fator que contribui para a recente instabilidade. Após sua ascensão como primeiro-ministro da Etiópia, em 2018, Abiy Ahmed cultivou alianças com o descontente Partido Democrático Amhara (ADP), ao mesmo tempo em que deixou de lado a Frente de Libertação do Povo Tigre (TPLF), da qual Zenawi (o primeiro-ministro que cedeu a al-Fashqa aos sudaneses) era membro.

No Sudão, o governo de transição, um acordo de partilha do poder civil-militar foi recebido com desentendimentos e desconfianças. O Sudão tem de gerir conflitos no Porto do Sudão e na região de Darfur. Os conflitos internos resultam frequentemente em migração populacional para áreas menos conturbadas ou regiões vizinhas e crises de refugiados — complicando ainda mais o desacordo fronteiriço entre a Etiópia e o Sudão.

O papel dos atores externos

A administração Trump, juntamente com o Banco Mundial, liderou o processo de mediação entre os três países, desde novembro de 2019, até meados dos anos 2020. O fracasso dos esforços internacionais ocasionou a passagem do bastão ao então presidente da União Africana (UA), Cyril Ramaphosa. Em 2 de março de 2021, os ministros dos negócios estrangeiros egípcio e sudanês apelaram a uma expansão do quadro de mediação para incluir as Nações Unidas, os EUA, e a União Europeia. A Etiópia rejeitou este pedido, citando que tal gesto mina as “soluções africanas para os problemas africanos”, apresentado por Thabo Mbeki e a agenda pan-africana. Além disso, os esforços estabelecidos por Cyril Ramaphosa antes de ser sucedido por Félix Tshisekedi, da República Democrática do Congo, seriam comprometidos.

Para além das negociações regionais, também é necessário pontuar os alinhamentos internacionais que esses países possuem, uma vez que isso influi diretamente no processo negociador do imbróglio. Embora os EUA tenham uma boa relação com o governo egípcio em termos militares, a Etiópia desenvolveu uma das mais fortes relações econômicas com a China no continente. Embora as relações Egito-EUA sejam sublinhadas por tensões em torno de questões de direitos humanos, os primeiros vêem os EUA como um aliado influente, sobremaneira na ONU.

A Etiópia, antecipando as dinâmicas apresentadas, insiste que a UA seja o principal mediador dos processos de negociação. No esquema mais amplo da Agenda 2063 (programa de desenvolvimento econômico africano, lançado em 2015), a UA tem um papel mais importante a desempenhar na obtenção de um consenso sobre a GERD, no entanto, o ônus recai sobre o Egito para reavaliar a premissa sobre a qual reivindica “direitos adquiridos” aos recursos hídricos da Bacia do Nilo.

Por fim, é importante destacar a crescente presença do estado de Israel no Chifre. À medida em que os laços etíopes e israelenses se reforçam, o Egito tem se preocupado com as implicações dessa relação nas negociações das barragens. Dado o histórico de inimizade entre Egito e Israel, é importante mencionar, entretanto, que essas relações evoluíram positivamente, especialmente através das linhas de segurança nacional. Com ambos os países preocupados com a crescente influência do Irã na região árabe e o aumento da insurgência islâmica na Península do Sinai, no Egito, e no território palestino da Faixa de Gaza, a ameaça comum às suas agendas de segurança nacional resultou na cooperação e na coordenação da estratégia entre ambos. 

Por que essa questão é importante para a União Africana?

Subjacente ao estabelecimento e transição da Organização de Unidade Africana (OUA) para a União Africana esteve a busca de um desenvolvimento orientado para a África que seja anti-colonização, anti-imperialista e anti-imposição externa — uma agenda de desenvolvimento doméstico que vise à plena exploração do potencial da África como ator estratégico e global, englobando a fundação da instituição. Ao traçar a sua trajetória de desenvolvimento, vários tratados e agendas —  tais como o Plano de Ação de Lagos, o Tratado de Abuja, a Nova Parceria para o Desenvolvimento de África (Nepad) e a Agenda 2063 — foram ratificados por todos os países do continente africano.

Embora a vontade política e o empenho sejam fundamentais para a implementação bem-sucedida da agenda do desenvolvimento, a paz, a segurança e a estabilidade são de igual importância. Assim, é necessária uma ação da UA para escapar ao conflito interestatal na região, ao mesmo tempo que exorta diplomática e pacificamente todas as partes no sentido de uma (re)solução duradoura. Contudo, no caso de uma guerra em larga escala, é importante examinar os potenciais resultados.

Mais do que nunca, o presidente da UA precisa demonstrar liderança no Chifre de África. Uma equipe de mediadores africanos (com a participação periférica e apoio de parceiros internacionais estratégicos como os EUA, China, Rússia, e Nações Unidas) é imperativo e urgente para resistir à tempestade iminente na sub-região.

* Lucas Oliveira Ramos é doutorando no PPG RI San Tiago Dantas e pesquisador do Gedes.

Imagem Destacada: Blue Nile Falls. Por Guistino/Wikimedia Commons.

Imagem no corpo do texto: Grand-Ethiopian dam. Por Wikimedia Commons.

Curso de Extensão: “Temas Contemporâneos de Segurança Internacional: Ferramentas de Análise”

Durante o segundo semestre de 2017, foi realizado o curso de extensão “Temas Contemporâneos de Segurança Internacional: Ferramentas de Análise”. Promovido pelo Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES), com apoio do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI UNESP), o curso teve suas vagas esgotadas antes mesmo do prazo final de inscrições. Para o professor Dr. Samuel Soares, coordenador do curso, “isso demonstra a complexidade da segurança internacional contemporânea e a busca por maior embasamento analítico”.  O curso ainda abordou temas como política nuclear, terrorismo internacional, geopolítica e intervenções humanitárias. Por meio das apresentações, discussões e estudos de caso, os participantes terão contato com o referencial conceitual adequado para embasar análises sobre os conflitos internacionais, potenciais e manifestos. O objetivo do curso é que o participante adquira uma compreensão mais ampla sobre essa classe de fenômenos e possa relacioná-los ao contexto atual da política internacional.

 

Módulo 1 Geopolítica Contemporânea: Uma Introdução

 

Encontro 1: Introdução à Segurança Internacional

Conteúdo: Apresentação dos conceitos fundamentais

 

Encontro 2: Geopolítica Contemporânea: Interregno?

Conteúdo: O que é geopolítica? O pós-Guerra Fria e o Momento “Unipolar”; Análise Conjuntural Estados Unidos, Rússia e China

 

Módulo 2 Questões Contemporâneas da Segurança Internacional

 

Encontro 3: Política Nuclear

Conteúdo: o que são armamentos nucleares; não-proliferação; Irã; Coreia do Norte

 

Encontro 4: Conflitos Contemporâneos: Características e Abordagens

Conteúdo: Novas Guerras; Crianças Soldado; Empresas Militares Privadas; Impactos nos Civis; Nova Economia de Guerra

 

Encontro 5: Intervenções Militares e Humanitárias

Conteúdo: Evolução Histórica das Operações de Paz; Intervenção no Kosovo; Responsabilidade de Proteger; Intervenção na Líbia

 

Encontro 6: Segurança Internacional e Questões de Identidade

Conteúdo: Identidade cultural e civilizações; Globalização e Nacionalismo; Imigrações, Refugiados e Segurança Nacional; Europa e refugiados: o caso da Guerra na Síria

 

Encontro 7: Terrorismo

Conteúdo: Definição de Terrorismo; Estratégia e Tática Terrorista; Al-Qaeda; Israel

 

Encontro 8: Encerramento

Conteúdo: Análise Conjuntural