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Arrumando a casa

Ana Penido*

Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.

 

Existiam dois grandes problemas nas salas do Planalto. O primeiro, Ernesto Araújo. Sem nenhuma sustentação política, exceto o olavismo. Para setores importantes na base do governo, como as forças armadas e o agronegócio, o ex-ministro já poderia ter caído faz tempo.

O outro grande problema na sala não incomodava tanto o presidente, mas incomodava muito as forças armadas, e passou a perturbar também a turma da Faria Lima – o general Pazuello. Isso sem mencionar a insatisfação popular com a falta de vacinas, a fome, e as mortes se avolumando.

Fora da sala, ressurgiu um elefante: o STF julgou Lula inocente. O ódio ao Lula unifica de A a Z, e reaviva a natural aliança entre militares e Moro.

Bolsonaro reacomodou interesses, dando uma arrumada na casa, e militares iniciaram uma “Operação Limpa Lambança”. Voltarei a isso. Por enquanto, vejamos quais posições Bolsonarou ganhou:

  • Atender ao Centrão: será viabilizado através dos ministérios da Saúde e de Governo, e, principalmente, através da enorme margem para ementas parlamentares que ficou no orçamento aprovado. São concessões, mas a chave das nomeações fica na Casa Civil, na qual Bolsonaro manteve seu fiel general Ramos (que internamente, é mau visto). O Centrão não ganhará espaço no MD, na AGU e nem no Itamaraty. Atendeu parcialmente.
  • Atender a “Famiglia”: controlará o Ministério da Justiça (e as interlocuções com as Polícias Militares). Enquanto salvam o pescoço de quem gostam, seguirá o uso da Lei de Segurança Nacional, acelerará o PL contraterrorismo e ainda mantém a polêmica sobre a interpretação do artigo 142 viva.
  • Atender às Forças Armadas Brasileiras (ffaa) e entregar Pazuello: justiça seja feita, Bolsonaro tentou propor quarta estrela, ministério, alocação em outras pastas ou outras saídas honrosas para o colega, mas nada colou. Então, Bolsonaro resolveu mexer nas pastas de “dentro de casa”. No plano macro, dos diversos segmentos que sustentam o governo, o local onde é mais fácil para o presidente movimentar uma peça é o Ministério da Defesa, porque seria substituir alguém de um segmento por outro do mesmo segmento na base de composição política do governo (mesmo jogo no Itamaraty).
  • Atender ao seu núcleo político nas ffaa: Braga Netto, desde a intervenção militar no RJ, tem a ficha dos envolvimentos políticos das milícias. Pensa num rabo preso… Ramos, seu braço direito, segue no controle das nomeações e do governo. Chama a atenção que mudanças no GSI não foram sequer cogitadas (e que, enquanto o circo pegava fogo, o general Heleno estava com o desembargador Thompson Flores).
  • Atender os neofascistas: aqui, na realidade, ele só deu uma agitada por causa do 31 de março. Com militares ou sem militares, a turma adora a data, e Bolsonaro mostrou TIMING POLÍTICO. Além disso, eles vinham perdendo espaço no governo, e estavam insatisfeitos.

ISSO NÃO É UM GOLPE. Bolsonaro não tem apoio internacional para isso, não há grave situação de desestabilização interna (mesmo com mais de 317 mil mortos e o preço da cesta básica), não tem apoio da camada de cima (mesmo com a cartinha da Faria Lima, os estudos de cadeias de valor na área de energia e agronegócio, por exemplo, não apontam para perdas), e não tem da imprensa.

Como apontamos desde o início do governo, as ffaa estão contentes por voltar ao poder através de eleições. Mesmo em 1964 cuidaram de construir uma fachada normativa democrática. AS FFAA NÃO SERÃO AS PROTAGONISTAS DE UM AUTOGOLPE NO BRASIL, O QUE NÃO QUER DIZER QUE ELAS SEJAM MAIS DEMOCRÁTICAS QUE BOLSONARO.

Um cenário mais provável de golpe é, caso seja necessário e em outro momento, algo como a via Boliviana, com as polícias militares (PM) fazendo o trabalho sujo público e depois as ffaa vindo salvar a nação e arrumar a casa.

Daí a importância da carta dos governadores relatando incitação para motins, o desenrolar positivo das crises da PM na Bahia e da Guarda Municipal em Juiz de Fora, e as informações da inteligência da PM de SP que implicaram em uma mudança de residência do governador Doria.

Sem números exatos, são 411 mil PMs, 431 mil vigilantes armados, e as Guardas Municipais que, em 19 das 26 cidades onde existem, portam armas de fogo. Além disso, mesmo contra pareceres do Exército, as regras de comercialização de armas e munições vêm sendo flexibilizadas pelo presidente.

Essa é a variável principal que torna as eleições de 2022 distintas das anteriores.

“Operação Limpa Lambança”

Nos últimos tempos, as insatisfações militares vêm sendo depositadas no STF. Com a absolvição do Lula, a caserna em geral ficou indignada. Não estão insatisfeitos com Bolsonaro. As nomeações em pastas seguem, e as conquistas pra carreira também, única com aumento salarial em 2021.

Mas as ffaa estavam insatisfeitas com a exposição das suas entranhas que o Pesadelo na ativa e no Ministério da Saúde provocava. Tentaram fazer com que ele fosse pra reserva usando da sua coerção social, mas não funcionou, e Pazuello seguiu na ativa (graças à nossa legislação absurda, ele podia tomar essa decisão individualmente se quisesse). Bolsonaro gostava da fidelidade do seu general Ministro da Saúde, mas cedeu para que ele saísse. Entretanto, o que fazer com esse ENORME BODE QUE CONTINUOU NA SALA?

No final das contas, o bode virou boi de piranha, e enquanto isso, as ffaa ganham tempo para rearrumar a casa. O TIMING DAS MUDANÇAS PRAS FFAA também não é ruim.

De toda maneira, algumas cadeiras girariam com as promoções dos novos 4 estrelas em 31 de março e alguns comandantes completando dois anos nas tarefas, indo pra rotação. Essas provavelmente eram pautas sendo tratadas com o presidente, o ministro e as ffaa na última quarta, e entre o ministro e os comandantes na sexta.

Por que sobrou pro general Fernando Azevedo? O que mudou de sexta pra segunda? Vejamos:

  1. Interessa aos militares participar das boquinhas mil do governo, mas não interessa participar de intervenção para controlar motins policiais;
  2. Bolsonaro sentiu que as FFAA tentam novamente (dizemos novamente pois é presente em todas as declarações desde 2018 o mantra das instituições de Estado) o descolamento retórico (lockdowm interno, poucas mortes, Pujol caladinho diante do 31.03 e do Lula livre) e cobrou a fatura. Se querem ganhar tanto no governo, que fiquem com o ônus também, ainda mais em um momento de isolamento;
  3. Pelos dados disponíveis, Bolsonaro pediu o cargo. A nota em tom moderado mostra que Azevedo sabe que o governo “pode ser uma bosta, mas é deles”.

Um palpite: decretar estado de sítio não cola. Um autogolpe com as ffaa na cabeça também não. Uma alternativa soft ao estado de defesa, estado de sítio, intervenção federal e estado de calamidade pública parece estar sendo construída.

O deputado major Victor Hugo propôs na última quinta-feira (25) um PL para regulamentar o que seria decretar Mobilização Nacional. A iniciativa partiria do presidente, subsidiado por um comitê de 10 pessoas, que pela atual composição ministerial, contaria com 4 membros das ffaa e 1 delegado da PF.

A crise sanitária é, nesse sentido, uma oportunidade. Diferente do estado de sítio, o decreto de mobilização não precisaria ser aprovado pelo Congresso. No dia 11 de março, o Ministério da Defesa aprovou seu novo Manual de Planejamento para Mobilização Militar.

O Partido Militar segue hegemônico no governo, mesmo com as mudanças. Bolsonaro tem o apoio militar, aliás, o único partido que sustenta o seu governo. Mas acuado por outros setores, Bolsonaro poderia até pressionar por comprovações de fidelidade, declarações públicas.

As forças seguiriam o mantra retórico desde o início do governo. “Somos instituições de Estado”, mesmo comprometidos até o último fio de cabelo com o governo. Mas daí a uma ruptura entre fardados e governo, falta muito.

Pra entrar Braga Netto, seria provável que Pujol saísse, não é uma regra, ou tradição, mas existem egos e ele é mais antigo (a tradição deveria ser um ministro civil, mas aí nem vale a discussão nesse momento). Daí Bolsonaro matar dois coelhos com uma machadada.

Mas a saída dos demais comandantes em solidariedade é inédita desde o fim do regime dos generais e denota crise.

Braga Netto entra fragilizado, mas a escolha do seu nome aponta que Bolsonaro estica a corda, mas nem tanto, ou teria nomeado um ministro civil. A tendência seria a retomada da normalidade, e para isso, a escolha dos novos comandantes deveria recair sobre os mais antigos de cada força, mas a crise ainda é presente, e de desenlace incerto. Quanto se trata de Bolsonaro, o método é o caos.

Perguntas incômodas que a imprensar deveria fazer

  1. Se Pazuello incomodava tanto, por que Pujol não o convocou de volta? Por que permanecem militares no Ministério da Saúde? E no restante do governo, particularmente os da ativa?
  2. Se são técnicos, por que não adotaram para o governo as recomendações do documento do CEEx? Quem mandou tirar o documento do ar? Foram feitos novos documentos? O Exército adotou internamente as recomendações do documento, se configurando como uma ‘nação dentro da nação’? Isso não configura insubordinação ao presidente?
  3. Os militares cederam espaço para o centrão no governo? Além das cabeças dos ministérios e autarquias, como estão os corpos? Foi feito algum levantamento posterior ao do TCU, que já completa quase um ano?
  4. Quais as informações sobre as milícias cariocas que Braga Netto levantou enquanto interventor federal? Elas envolvem em alguma medida o presidente ou seus familiares?
  5. Como a troca do ministro da Defesa se articula com a troca no ministério da Justiça e Segurança Pública?
  6. Quais são os novos 4 estrelas das forças armadas? O que foi publicado no último mês no Diário Oficial da União? Que tal usar menos informantes em off, e noticiar mais o que de fato as Instituições estão fazendo?
  7. As manifestações favoráveis a um golpe militar ou ameaçando outros poderes feitas por militares da ativa em redes sociais tiveram algum objetivo? Houve alguma punição, mesmo que apenas internamente? E nas polícias? E as manifestações de rua, inclusive na porta de quartéis desde 2020, pedindo por golpe militar, tiveram algum desenlace, inclusive judicial?
  8. O que será feito diante da carta dos 16 governadores denunciando incitação à motins nos seus estados?
  9. No último mês, setores militares receberam menos incentivos do presidente? Houve mudança no salário, orçamento, regalias, nomeações ou outras questões que pudessem levar a uma insatisfação na caserna com o presidente?
  10. Nossa legislação protege a democracia brasileira da intromissão política das FFAA? Ela protege as próprias FFAA? O que acontece se um comandante não autorizar a ida de um subordinado para o governo? Isso já ocorreu?
  11. Pazuello pode ter se tornado o boi de piranha público, mas o que fazer com o enorme bode que continua na ativa e na sala do Alto Comando do Exército? De quem foi a ideia de promover o Pazuello, um Intendente, a 4 estrelas? Quem vetou?
  12. Qual a base de sustentação do presidente? Quem hegemoniza essa base de sustentação? As trocas ministeriais mudam essa situação ou apenas agitam a superfície?
  13. Quem serão os novos nomeados para o comando e para o Ministério?
  14. Para a demissão do ministro da defesa, qual foi a gota d’água? Pediu a cabeça de algum subordinado? Não topou um endurecimento? Não topou dar alguma declaração? Como quem tem a resposta pra essa pergunta é apenas o ex-ministro e o presidente, não vale a pena investir muito nela. As declarações de outros atores são especulações ou interpretações.
  15. Qual papel os militares devem ter no regime democrático brasileiro? Em que medida a atual situação do país é tributária dos 21 anos de ditadura? Outra condução da pauta sobre a Memória, Verdade e Justiça teria alterado esse cenário?

Síntese

A politização das ffaa é ruim para a política e para elas mesmas. Elas se mostram politizadas quando tuítam, quando compõem o governo, e quando saem dele, de forma discreta (Azevedo) ou estridente (Santos Cruz).

Agora é o exemplo perfeito: se saem, foi por insubordinação. Se ficam, são golpistas. A politização expõe as ffaa

A tragédia social em que vivemos é também responsabilidade das ffaa: cloroquina, privilégios diante dos demais trabalhadores brasileiros, desnacionalização na infraestrutura, ministro da ciência que destrói universidades, Almirante que permite apagão, etc, etc…

Com o Bode isso era mais nítido. Transformar ele em boi de piranha não resolve o problema. Se, de fato, as ffaa querem limpar a sua barra, têm que desembarcar em peso do governo, aos milhares, assim como o ocuparam.

Não acho que isso vá ocorrer. Terão que ser tirados, com eleições e medidas legislativas.

Bolsonaro manterá sempre a ameaça de golpe/endurecimento. Ter medo disso não adianta. Há que se antecipar cenários, travar a batalha das ideias e, essencialmente, dialogar com a população sobre as razões da tragédia em que nos encontramos.

NOSSOS MORTOS, DE ONTEM E DE HOJE, NENHUM MINUTO DE SILÊNCIO, MAS TODA UMA VIDA DE LUTA.

* Ana Penido é pesquisadora do Grupo de Estudo em Defesa e Segurança (GEDES – UNESP) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Imagem: Novos comandantes das forças armadas. Por: Marcos Corrêa/ Flickr/ Palácio do Planalto.

As escolas cívico-militares

Ana Penido e Suzeley Kalil Mathias*

Texto publicado originalmente do blog A terra é redonda

 

O objetivo deste texto é tecer algumas considerações sobre o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM), instituído pelo Decreto 10.004, de 04 de setembro de 2019. O PECIM constitui a materialização das promessas de campanha de Bolsonaro, cujo sucinto Programa (um power point, na verdade) indicava de maneira vaga que a educação precisava de “novos conteúdos e métodos, sem doutrinação e sexualização precoces”, objetivando reverter os “péssimos resultados” diante dos “investimentos adequados”.

Para lograr este objetivo, dividimos o texto em curtos tópicos, dedicados a cada uma das ‘promessas’ contidas no PECIM, além dessa introdução, na qual se localiza o tema e sua problemática, e as considerações finais, quando resumimos nossas impressões. As fontes do trabalho são fundamentalmente a legislação disponível e material jornalístico, confrontados com algumas parcas análises sobre o processo de militarização do ensino brasileiro,[i] aqui representado pelo PECIM.

A educação no Brasil é regulada pela Constituição Federal e pela Lei 9394/1996, a chamada Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). A Constituição indica a educação como direito de todos e dever do Estado (art. 205), determinando, entre outros quesitos “gestão democrática do ensino público, na forma da lei” (Art. 206-VI). Sobre este aspecto, a LDB estabelece que:

Art. 14. Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios:

I – participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;

II – participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.

Grifamos ‘sistemas de ensino’ para determinar do que estamos falando. São regulados pela LDB (Art. 8), três sistemas de ensino: o sistema federal, os sistemas dos Estados e do Distrito Federal e os sistemas municipais. Além desses, e que todos nós conhecemos, se somam outros três sistemas expressamente excluídos da alçada da LDB (Art. 83), o da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, cada um com sua própria lei de ensino. Uma rápida consulta às respectivas leis, mostra que nenhum dos sistemas de ensino militar menciona “gestão democrática”. A isso voltaremos.

Ter seu próprio sistema de ensino foi uma prerrogativa que os militares garantiram para si mesmos ainda durante o Congresso Constituinte de 1988, reflexo de tantos anos de poder das corporações. As escolas militares têm outros métodos de ensino, outro material pedagógico, outro currículo, etc. E, principalmente, têm um objetivo diferente da emancipação através do conhecimento: seu objetivo é a disciplina necessária à guerra, que pode ser resumida pela doutrina dos três Ds: “não duvidar, não divergir, não discutir” (Rattembach, 1972). Em outras palavras, se o trabalho pedagógico exige disciplina, esta é um meio “consciente e interativo” na educação civil, enquanto que nas escolas militares a disciplina funciona como “um fim em si mesmo” (Alves; Toschi, 2019, p. 640).

Deve-se ter em conta também que o projeto de militarizar o ensino no Brasil não é novo. Pelo contrário, vários especialistas mostram que pelo menos desde a proclamação da República, as forças armadas fornecem projetos tanto de conteúdo (a introdução de disciplinas como educação física é o exemplo mais conhecido) e método (Ribeiro; Rubini, 2019), quanto de modelos administrativos (Mathias, 2003). Acrescente-se que o neoliberalismo e o conservadorismo em ascensão no mundo e especialmente no Brasil, combinado com o aumento da violência e da criminalidade é terreno fertilizado para o avanço de respostas mecânicas das autoridades (Martins, 2019), como o é a militarização das escolas.

Ditas essas breves palavras sobre as escolas para militares, encaminhamo-nos para o objeto desse curto artigo: o projeto das escolas cívico-militares. Como informado, por meio do decreto no 10.004, instituiu-se o Programa Nacional das Escolas Cívico-militares (PECIM). Embora o documento afirme que a adesão dos entes federativos ao PECIM seja voluntário, já no discurso de lançamento do projeto, Bolsonaro afirmou que é preciso impor a militarização às comunidades, pois pais que não aceitam a militarização seriam ‘irresponsáveis’, não sabem o que é melhor para seus filhos.[ii]

Outro elemento que cabe destacar deste mesmo discurso é sobre a novidade do PECIM, alardeada pelo MEC e pela propaganda oficial, mas ausente da fala presidencial que, ao contrário, mostra que o PECIM está lastreado nos projetos de ‘militarização’ das escolas públicas promovidas nos diferentes entes federativos por projetos de parceria com as secretarias de segurança pública, com o emprego das polícias militares e corpos de bombeiros. Assim, a única novidade do PECIM, como admite Bolsonaro, porque exalta as escolas sob gestão das PMs, é a inclusão de membros reformados das forças armadas para aturem nas escolas.

A primeira escola civil militarizada (gestão da PMGO) foi inaugurada em 1998 – apenas dois anos depois da LDB –, em Goiânia (GO), espalhando-se por 22 estados brasileiros de modo acelerado, chegando a 120 escolas em 2018, 55 das quais em Goiás. Com vinte anos de experiência, houve tempo mais que suficiente para que tais escolas mostrassem se e quanto são melhores que escolas públicas civis. No entanto, o que especialistas têm indicado é que as escolas civis militarizadas cumprem suas promessas apenas na aparência, repetindo experiências do passado (Ribeiro, Rubini, 2019, 762), além de confrontarem preceitos legais, inclusive constitucionais (Martins, 2019, 697). Conforme aponta a experiência do Amapá, “(…) a novidade do modelo aqui analisado só se sustenta do ponto de vista do arranjo institucional que transferiu a gestão da escola pública civil para [policiais] militares, constituindo-se assim, um modelo híbrido. Do ponto de vista da Pedagogia não há qualquer novidade (…) (Ribeiro; Rubini, 2019, p. 763). Nosso objetivo aqui não é estudar tais experiências estaduais. No entanto, com o fito de apresentar melhor o próprio PECIM, utilizaremos as avaliações disponíveis sobre as experiências das escolas civis militarizadas.

Segundo o portal do MEC, 15 estados e o Distrito Federal, e 600 prefeituras manifestaram interesse em participar do PECIM. Analisadas as demandas, foram escolhidas 54 para a chamada “edição piloto”. Dessas escolas, metade delas terão participação de membros das forças armadas, concentradas em 12 estados (Acre, Amapá, Ceará, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraná, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina e Tocantins); nas outras 27, serão as corporações policiais (PM e Bombeiros) que cederão seus soldados e o governo federal repassará os recursos.[iii]Pode-se notar, portanto, que diferentemente do prometido, é bem pouco distinta a ‘nova’ escola cívico-militar daquelas implementadas por iniciativa dos próprios governos estaduais.

Considerando, portanto, esta introdução ao tema, elencamos algumas outras questões – o que chamamos antes ‘promessas’ – que imputamos muito importantes na concepção e implantação do PECIM:

O PECIM parte de um diagnostico equivocado da realidade

Desde antes de chegar à Presidência da República, Bolsonaro e sua equipe afirmavam, relativamente à educação, que o principal problema era a “doutrinação nas escolas”, que afastariam o estudante do civismo necessário à cidadania – daí o grande apoio que grupos como o “Escola sem Partido” deram à campanha do capitão. A falta de civismo alimentava ainda mais a violência do entorno, especialmente nas escolas da periferia, expostas ao tráfico de drogas, gerando indisciplina e trazendo o crime para o interior das escolas. A falta de segurança, portanto, é apresentada como a grande justificativa para a criação das Escolas Cívico Militares (ECIM). Embora muito explorada pela mídia, os poucos estudos existentes não revelam uma relação causal entre militarização da escola e redução da violência. Por exemplo, para Alves e Toschi (2019, p. 642),

[A]pesar de Goiás estar no topo do processo de militarização das escolas públicas, possuindo, em abril de 2019, 54 escolas sob a responsabilidade da Polícia Militar (PM), com 61 mil alunos (…) lamentavelmente, o estado ainda figura nas páginas policiais como um estado com altos índices de violência, amargando dois assassinatos de coordenadores de escolas estaduais no curto espaço de quatro meses (abril e agosto de 2019) (…)

Pode-se dizer que a promessa da escola militar não é reduzir a violência na comunidade na qual a escola se encontra, mas permitir um ambiente escolar alheio à violência juvenil, organizando-o de forma a construir um futuro cidadão ‘de bem’. Todavia, se a imposição da ordem acontece apenas no interior das escolas, o que ela faz é escamotear e até alimentar maior violência contra os próprios estudantes, que precisam viver em dois mundos repressivos sem poder expressar-se. Isso, no melhor dos casos, criará um cidadão ordeiro, mas também desajustado.

O PECIM é enganoso especialmente com os professores

Quando professores ouvem falar em escolas cívico-militares, de imediato os profissionais da educação, em especial as professoras do ensino fundamental, pensam em seus pares dos colégios militares. Naquele ambiente, a remuneração é mais alta e é paga em dia, os profissionais têm um plano de carreira e condições de trabalho melhores, não precisando dobrar ou às vezes triplicar a jornada de trabalho para obter uma renda mensal digna. Diante desse cenário material para o exercício docente, sabemos que alguns professores até relevariam os constantes relatos de assédio moral e censura dos profissionais concursados nas escolas militares, em busca de melhorias na remuneração. Entretanto, o PECIM não altera nenhuma das características materiais da profissão e, como informa o MEC, sequer a verba reservada para o projeto – R$ 54 milhões – será aplicada para melhorar materialmente a realidade escolar, pois a maior parte desse montante irá para o pagamento do pessoal militar que atuará nas escolas.[iv]

Outra crença alimentada entre os professores é que as ECIM serão muito mais seguras, inclusive no seu entorno, pela presença dos policiais, bombeiros e militares que ali atuarão. Mais uma vez, é um engano. Conforme estabelece o próprio decreto, os militares atuarão na gestão administrativa, didático-pedagógica e educacional, e não na segurança da escola. Ademais, como mencionamos acima, militarizar as escolas não leva necessariamente à redução da violência em seu entorno.

O PECIM ilude a comunidade, especialmente a família

É conhecida a crescente dificuldade de envolvimento da comunidade escolar na rotina da escola, e que essa é uma questão que não se resolve apenas culpando uma pretensa “falta de vontade” de uns ou de outros. O projeto ilude a família ao oferecer a ideia de que questões muito complexas do ambiente escolar serão resolvidas por meio da militarização.

Dois exemplos devem bastar para mostrar este engodo. O primeiro deles, a temática das drogas. Para muitos pais, preocupados, a escola militarizada será capaz de “salvar o filho do mundo das drogas”. No entanto, um corte de cabelo curto e a proibição de usar brinco não farão isso, daí o engodo. São necessárias políticas públicas de saúde, educação, e trabalho que permitam ao jovem uma compreensão crítica sobre a própria realidade que o cerca, permitindo que ele tome decisões informadas inclusive sobre drogas, que é um tema de saúde a ser tratado no ambiente escolar, e não de segurança pública. Outro exemplo é a questão LGBT. Para muitos militares, a orientação sexual e o feminismo destroem as famílias, e ambos são culpados pelo esfacelamento moral da sociedade. Será mesmo? Impedir que as/os jovens expressem a sua sexualidade só faz com que eles a pratiquem de forma desinformada ou escondida, o que os expõe a toda natureza de vulnerabilidades, particularmente psicológicas e sexuais.

Cabe lembrar que, diferente das escolas em geral, os colégios militares têm um público mais homogêneo, vindo de famílias militares, o que também modifica a relação do pai do aluno (normalmente mãe) com a escola, diferente das escolas territorializadas, que funcionam nos diversos bairros da cidade. Estudos preliminares com as escolas civis militarizadas revelam que estas têm passado por um processo semelhante, se ‘elitizando’ (Ribeiro; Rubini, 2019, p. 753) porque, além de cobrarem mensalidades, reservam vagas para os filhos de policiais, bombeiros e professores de escolas semelhantes, o que reforça a ideia de homogeneidade.

Os colégios militares são os melhores, portanto, devem ser o exemplo

Eis outra falácia. Para quem frequenta o ambiente escolar, sabe que a grande questão que diferencia o ensino da escola pública em geral, do ensino nos institutos federais e escolas de aplicação é o investimento por aluno. O investimento por aluno dos colégios militares é quase três vezes maior que o do ensino público civil. Ainda assim, têm resultados inferiores aos institutos federais, que também recebem mais verbas. Em outros termos, se fosse para tomar alguma escola como exemplo, seriam os institutos federais. Segundo os dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), avaliando as áreas de Ciência, Leitura e Matemática, se considerássemos apenas os resultados da Rede Federal, o país ocuparia a 11a posição entre 70 países em Ciência, a 2a posição em Leitura, e superaria a média do Brasil em mais de 100 pontos.

Sobre investimentos, pesquisa realizada periodicamente pela OCDE que no ano de 2019 compilou dados de 36 países, mostra que o investimento em educação no Brasil é maior que a média do apurado (4,2% contra a média de 3,2%). Embora mencionando outra fonte, a ONU, o programa eleitoral do então candidato à presidência pelo PSL, confirma este dado. No entanto, esquece de ler o restante da pesquisa, pois esta contraria os dados: conforme indica a OCDE, o Brasil investe muito menos em educação por aluno, sendo 56% menor no ensino fundamental e aproximadamente 64% no ensino médio. A diferença é melhor visualizada na tabela abaixo:

Gasto por aluno por nível de ensino (em US$)[v]

Fonte: Confecção própria com base nos dados de G1, 10 de setembro de 2019.

Soma-se a isso que a experiência mais próxima ao projeto do atual governo, as escolas civis militarizadas, não apresentam maiores índices de aproveitamento nas avaliações, embora, como mencionamos, existam há mais de 20 anos. Pelo contrário, a própria ONU expressou preocupação com o avanço destas experiências no Brasil.[vi] Na verdade, o único exemplo fornecido pelas escolas civis militarizadas, e não apenas as públicas, é de ser um ótimo negócio. Tais escolas “(…) representam uma mescla de interesses públicos e privados, entre os interesses das secretarias de educação e de segurança pública que atuam sobre a escola pública.” (Alves; Toschi, 2019, p. 641).

O projeto desvia recursos da educação para o Ministério da Defesa

De fato, essa não é uma novidade. Tem sido comum, infelizmente, o desvio dos recursos destinados constitucionalmente para a educação. Nesse caso, ocorre o mesmo. Recursos do Ministério da Educação são descentralizados para o Ministério da Defesa para o pagamento dos militares da reserva contratados. O decreto deixa claro que os militares não são profissionais da educação. Eles mantêm seus vencimentos como militares da reserva e acrescentam a eles o adicional pelo PECIM. Em um país como o nosso, com os nossos atuais índices de desemprego, pensar a possibilidade de as pessoas acumularem salários é um absurdo. Além disso, é comum ter nos quadros escolares um alto número de profissionais contratados, e não concursados. O debate deveria ser como criar frentes emergenciais de emprego para quem não tem nenhum, ou como melhorar a carreira, com a consequente elevação salarial, dos profissionais da educação, já muito defasada em relação as demais.

Conforme divulgado pelo MEC, entre os critérios utilizados para excluir estados e municípios do processo de adesão ao PECIM estavam aqueles “(…) com número baixo ou sem militares da reserva residindo na cidade”.[vii] Ora, se a proposta do PECIM é melhorar a educação, especialmente nas violentas periferias, como explicar que esta ou aquela localidade, a despeito de responder positivamente a todos os critérios de adesão seja eliminada do programa apenas por não ter militares residentes? Assim, o próprio governo admite que o maior montante do dinheiro está vinculado ao pagamento de militares e policiais que participarão do projeto.

Pode-se visualizar melhor como as verbas são usadas para dar salário a quem já tem por meio dos números disponibilizados pelo próprio MEC, mas não sem resistência. Via Lei de Acesso a Informação, o MEC foi obrigado a detalhar a aplicação dos recursos da etapa piloto. Em resposta, informou-se que a maior parte deles tem como destino o pagamento dos militares que atuarão nessas escolas[viii].

Pelo projeto, cada escola de 1000 alunos receberá 18 oficiais da reserva para atuarem como docentes e eles (e somente eles) receberão um adicional de 30% sobre seus vencimentos e mais décimo-terceiro, férias, transporte e alimentação. Levando-se em consideração que o soldo-base (salário) de um militar na fase intermediária da carreira (capitães e majores) gira em torno de R$ 9.200,00 a R$ 11.200,00, sem contar os adicionais e gratificações, podemos fazer uma conta simples e chegar aos seguintes números: cada “oficial-professor” receberá, na média, em torno de R$ 3.000,00 a mais por mês– salário superior ao da maioria absoluta dos trabalhadores da redes estaduais do país[ix] – e custará aos cofres públicos cerca de R$ 45.000,00 por ano.

Considerando-se a duração projetada para o PECIM, ainda que mantendo o tamanho atual, devemos multiplicar por 18, o que representa um gasto de R$ 810.000,00 por escola, só em pagamento dos militares que atuarão nessas escolas em desvio de função – não serão empregados nem na defesa (caso dos militares) e nem em segurança (caso dos policiais e bombeiros). Tomando o orçamento do projeto, retirando o pagamento de pessoal, restaria, em média, R$ 200 mil por ano para a própria escola gastar. Para uma unidade escolar com mil alunos, o saldo final é muito pequeno, talvez suficiente para uma reforma em quadra esportiva, por exemplo. E detalhe: mesmo com a pandemia e as escolas paralisadas, muitos desses militares foram contratados no ano passado e estão recebendo normalmente.

Então, para que servem as escolas cívico-militares?

Em primeiro lugar, elas servem para fazer proselitismo político e alimentar uma base conservadora, inclusive alguns neofascistas, que elegeram o presidente em virtude da sua disposição em usar a força, inclusive das armas, para resolver todo e qualquer problema. Em segundo lugar, elas passam uma mensagem de patriotismo, como se este pudesse ser garantido pela maquiagem verde amarela nas escolas. Esta foi a mesma pretensão quando, em 1969, o regime burocrático-autoritário (1964-1985) introduziu as disciplinas de Moral e Cívica (ensino fundamental), Organização Social e Política do Brasil, OSPB (ensino fundamental e médio) e Estudos dos Problemas Brasileiros, EPB (ensino superior), tornando-as obrigatórias para todos os níveis. Mesmo controlando os conteúdos dessas disciplinas – também elas foram uma forma de empregar militares da reserva, especialmente coronéis, que preparam conteúdos e escreviam apostilas e livros didáticos (Mathias, 2004, p. 170) –, em pouco tempo o próprio governo passou criticá-las, afirmando que não cumpriam os objetivos de forjar o cidadão patriótico que desejavam. De fato, como o cultivo artificial de símbolos e bandeiras nacionais pode tornar um jovem mais amante de sua pátria? É possível dizer que a geração dos anos 1990 é mais patriota que a dos anos 2000?

Em terceiro lugar, as escolas cívico-militares normalizam a militarização da educação, em seus aspectos éticos, políticos, morais, financeiros. Trata-se de uma espécie de amostra, um laboratório daquilo que está por vir. Trata-se de um projeto de militarização da vida (do individuo como um todo, compreendendo os aspectos sociais, políticos, econômicos, etc.) já em curso no Brasil. Da mesma forma que não se cria o cidadão patriota por imposição, a ‘paz dos quartéis’ imposta à sociedade como um todo tende, como mostrou a História, a vir acompanhada do esgarçamento crescente da solidariedade social, desorganizando de tal forma as relações sociais que a única ordem que prevalecerá ao final é a ‘paz dos cemitérios’.

Em quarto lugar, as ECIM, embora sustentem que sua implantação depende de consulta e sinal positivo da comunidade que a receberá, é uma forma dissimulada de cumprir a lei, que estabelece que as escolas públicas devem ter gestão democrática. Isso implica na não imposição de regras alheias àquela comunidade de estudantes. Implica que todo o corpo de funcionários, professores e responsáveis pelos estudantes, e até esses mesmos, sejam não apenas ouvidos, mas participem do planejamento pedagógico e gestão administrativa das escolas. O PECIM, como as escolas militarizadas antes dele confirmam, afasta esta possibilidade, pois submete inclusive as direções e coordenações das escolas aos preceitos trazidos pelos militares, que passam a tutelar a gestão escolar. A consulta à comunidade, realizada apenas no início do processo, é, portanto, um simulacro da necessária, inclusive porque determinada pela Lei, gestão democrática das escolas.

Por último, mas não menos importante, as ECIM são a forma que o presidente Jair Bolsonaro encontrou para manter fiel, principalmente por meio de benefícios financeiros, o núcleo mais tradicional de sua base eleitoral, composta por policiais militares, bombeiros e membros das forças armadas, em especial das patentes mais baixas. A seleção dos profissionais a serem contratados é feita pelos próprios militares, baseada em critérios como camaradagem, lealdade, honra… Ou seja, atributos bonitos para justificar a escolha dos apadrinhados políticos comprometidos com a sustentação do governo. O objetivo aqui nem é tão oculto: em uma situação de insatisfação do povo com o presidente, esses profissionais da segurança dificilmente ficarão contra quem garantiu o seu “extra”.

Considerações Finais

Em resumo, as escolas cívico-militares são caras, mas não o são porque investem na comunidade escolar, valorizando novos métodos pedagógicos e seus profissionais. Elas são caras e, como provavelmente veremos no futuro, tão ineficientes quanto as escolas civis militarizadas que já se espalharam pelo Brasil a partir das diversas métricas educacionais apresentadas ao longo do texto, servindo exclusivamente para desestruturar ainda mais a educação pública no Brasil.

A principal conclusão que chegamos desse debruçar sobre o PECIM não é, todavia, sobre a não novidade do projeto, mas sim que o principal projeto para a educação do governo Bolsonaro é, na prática, um “programa de transferência de renda” para militares da reserva. Mais que governar para a própria base que o elegeu, o presidente remunera essa base. E o principal, não é uma base qualquer, é uma base ARMADA.

*Ana Amélia Penido Oliveira é pesquisadora de pós doutorado no Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp e do Gedes. Suzeley Kalil Mathias é professora do Departamento de Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp-Franca e pesquisadora do Gedes.

Imagem: Inauguração de escola cívico-militar no Rio de Janeiro. Por Palácio do Planalto.

Referências


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BRASIL (2019). Decreto 10.004, de 04 de setembro de 2019. Institui o Programa de Escolas Cívico-Militares (PECIM). Diário Oficial da União – Seção 1 – 6/9/2019, Página 1 (Publicação Original). Disponível em <https://www2.camara.leg.br/ legin/fed/decret/2019/decreto-10004-5-setembro-2019-789086-norma-pe.html>. Consultado entre setembro de 2019 e março de 2021.

MARTINS, A. A. (2019). Sobre os dias atuais: neoconservadorismo, escola cívico-militares e o simulacro da gestão democrática. RBPAE 35 (3): 689-699, set-dez.

MATHIAS, S. KALIL (2003). A militarização da burocracia: a participação militar na administração das Comunicações e da Educação, 1963-1990. São Paulo, Ed. Unesp/Fapesp.

RATTENBACH, B. (1972). El sistema social-militar en la sociedad moderna. Buenos Aires, Pleamar.

RIBEIRO, A. C.; RUBINI, P. S. (2019). Do Oiapoque ao Chuí – As escolas civis militarizadas: a experiência do extremo norte do Brasil e o neoconservadorismo da sociedade brasileira. RBPAE 35 (3): 745-765, set.-dez. [DOI: 10.21573/vol35n32019.95997].

 

Notas


[i] Sugerimos a leitura do levantamento feito por Alves e Toschi (2019), o qual mostra que os estudos da militarização do ensino não são novos, mas são numericamente pouco significativos diante do avanço do processo de criação de ‘parcerias’ entre as escolas públicas e as instituições militares.

[ii]Por didático, vale reproduzir a fala do presidente: “E temos aqui a presença física do nosso governador do DF, o Ibaneis. Parabéns, governador, por esta proposta. Vi que alguns bairros tiveram votação e não aceitaram, me desculpa, não tem que aceitar não, tem que impor. Se aquela garotada não sabe… está na quinta série, está na nona série e na prova do Pisa ele não sabe uma regra de três simples, não sabe interpretar um texto, não responde uma pergunta básica de ciências, me desculpa, não tem que perguntar para o pai irresponsável, nessa questão, se ele quer ou não uma escola com uma, de certa forma,  militarização, tem que impor, tem que mudar. Porque nós não queremos que essa garotada cresça e vá ser, no futuro, um dependente, até morrer, de programas sociais do governo.” Disponível em: <https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos/2019/discurso-do-presidente-da-republica-jair-bol sonaro-durante-cerimonia-de-lancamento-do-programa-nacional-de-escolas-civico-militares-pecim>

[iii] Disponível em <http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/51651-escolas-civico-militares>, consultado em 03/03/21.

[iv] Disponível em <http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/51651-escolas-civico-militares>, consultado em 03/03/21.

[v] Disponível em: <G1: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/09/10/investimento-por-aluno-no-brasil-esta-abaixo-da-media-dos-paises-desenvolvidos-diz-estudo-da-ocde.ghtm>, consultado em 04/03/21.

[vi] Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/02/escolas-militares-e-colegios-civis-com-mesmo-perfil-tem-desempenho-similar.shtml>. Consultado em 03/03/21.

[vii] Disponível em <http://portal.mec.gov.br/component/content/index.php?option=com_content&view=article&id =85371:mec-capacita-policiais-e-bombeiros-para-atuacao-nas-escolas-civico-militares&catid=12&Itemid=86>

[viii]http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/51651-escolas-civico-militares

[ix] Segundo a mesma pesquisa da OCDE, “(…) o salário médio dos professores no Brasil é menor do que na maioria dos países da OCDE, e que também é ao menos 13% menor do que o salário médio dos trabalhadores brasileiros com ensino superior.” Disponível em: <https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/09/10/investimento-por-aluno-no-brasil-esta-abaixo-da-media-dos-paises-desenvolvidos-diz-estudo-da-ocde.ghtm>, grifos no original. Consultado em 04/03/21.

Partido militar controla o Brasil, mas não controla o Bolsonaro

Pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional vê risco de quebra da hierarquia, se presidente radicalizar

As Forças Armadas tornaram-se onipresentes e um ator político no Brasil de Jair Bolsonaro, e não só por lotearem o governo. Toda confusão criada pelo presidente costuma ser comentada na mídia, em geral de forma anônima, por algum militar, do governo ou não. Quando a confusão beira a guerra com outros poderes, como o Supremo Tribunal Federal (STF), Brasília prende a respiração: “E os militares?”

Pode-se dizer que o País está “tutelado” pelas Forças Armadas, um processo que começou no governo Michel Temer, segundo um longo ensaio publicado recentemente por três pesquisadores do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes), um núcleo da Universidade Estadual Paulista (Unesp). O texto intitula-se “As Forças Armadas no governo Bolsonaro” .

“Uma vez extinto o regime militar, basicamente a tutela política constitui a forma de controle indireto do poder de Estado pelas Forças Armadas. Substitui o exercício direto do poder político pelo controle indireto daqueles que legalmente o exercem, quase numa atitude paternal diante do sujeito tutelado, considerado incapaz de ser responsável pelos seus atos”, escrevem os autores.

O curioso é que os militares tinham o objetivo declarado de tutelar o atual presidente, que é um deles, mas nesse caso não têm tido sucesso. “O partido militar controla o Brasil, mas não controla o Bolsonaro”, afirma uma das autoras do ensaio, Ana Penido, cientista social de formação, mestre em Estudos Estratégicos de Defesa e doutora em Relações Internacionais.

Para Ana, é pouco crível que, com todo seu aparato de inteligência, as Forças Armadas não soubessem das ligações do clã Bolsonaro com milicianos, um dos rolos a machucar a imagem do presidente. Se, ainda assim, aceitaram se vincular a ele desde a campanha, é por nutrirem mais interesses comuns do que divergências.

Na entrevista a seguir, a pesquisadora aborda esse e outros aspectos sobre o papel dos quartéis no Brasil de hoje e a relação deles com Bolsonaro.

 

CartaCapital: O que é o “partido militar” que vocês mencionam no artigo?

Ana Penido: Não fomos os primeiros a empregar esse conceito, ele já foi usado por outros autores da sociologia militar, inclusive conservadores. É uma expressão bem didática, porque as pessoas sabem o que é um partido. Um partido tem algum grau de unidade, ainda que com disputas internas, externamente vota junto, gostaria que suas opiniões fossem majoritárias na população, disputa isso com outros segmentos… Hoje tudo que acontece as pessoas querem saber a opinião dos militares, a imprensa quer saber, eles passaram a dar opinião sobre tudo. Esse “partido militar” passou a tutelar o País, agora faz parte do jogo político. Essa tutela pressupõe uma certa superioridade intelectual, estratégica. Tem sido assim desde o Temer.

 

CC: A ideia de tutela do Bolsonaro existe desde o início do governo, os militares a alimentaram. Funcionou? Ou o Bolsonaro é “intutelável”?

 AP: A expressão “tutela” também é muito didática, as pessoas sabem o que é conselho tutelar, escutam essa expressão nos bairros, sabem os poderes que o conselho tutelar tem no processo de criação das crianças. Acho que, de fato, em algum momento os militares acreditaram que tutelariam o Bolsonaro, segurariam os arroubos dele, por serem mais qualificados, terem mais habilidades. Eles se venderam como os moderados do governo, mas desde o início vimos que não é bem assim. As declarações da ala olavista (discípulos do guru bolsonarista Olavo de Carvalho, que vocalizou a insurgência contra a tutela) chamavam a atenção, a gente se acostumou a ouvir falar em terra plana, coisas desse tipo. Além disso, o Bolsonaro é que tem os votos, ele é que ganhou a Presidência, não foram os militares. As Forças Armadas emprestaram o prestígio ao Bolsonaro, podem até planejar o governo, mas, no fim das contas, o Bolsonaro continua tendo o poder da caneta.

 

CC: Talvez isso explique por que ele testa os limites com críticas, por exemplo, ao Supremo, e as Forças Armadas reajam sempre de forma acanhada, talvez até com benevolência.

 AP: Um militar da ativa não deveria reagir de maneira nenhuma, nem dar entrevista em off  (sem ter no nome revelado pelo órgão de comunicação), não é pra isso que militar da ativa serve, nem que o Bolsonaro falasse qualquer barbaridade. É um absurdo essas entrevistas, é ilegal pelas normas de comportamento que os próprios militares elaboraram para eles e que deveriam seguir (o decreto presidencial 4.346, de 2002, lista como “transgressão” militar a manifestação pública do pessoal da ativa sobre assuntos político-partidários). Os militares da reserva, não, aí é facultado ter opiniões políticas.

 

 CC: Os militares dizem, nessas conversas em off com jornalistas, que não fazem parte do governo, que institucionalmente as Forças Armadas não estão no governo. É verdade essa posição?

 AP: Vejo muitas matérias sobre “os militares estão insatisfeitos”, “os militares gostaram”, “os militares não gostaram”, mas o que a gente pode tomar como opinião institucional são as notas do Ministério da Defesa, o resto são fontes não identificadas que não representam a totalidades da categoria. Sobre a sua pergunta, mais interessante é acompanhar o Diário Oficial da União, ali a gente vê o que de fato os militares estão fazendo.

 

CC: E o que o Diário Oficial mostra?

AP: Já saíram quatro ou cinco portarias, normativos do Ministério da Defesa ou para conter a ida massiva de militares para o governo ou para regulamentá-la segundo os princípios de hierarquia e disciplina que regem o mundo militar (há um decreto específico sobre a ida de militares para o governo, o 10.171, de 11 de dezembro de 2019, assinado pelo ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e pelo presidente). Quem pode indicar quem vai para o governo? As Forças Armadas querem manter isso pra elas. No início do governo não tinha portaria sobre isso. Saiu mais uma (a portaria 34 do GSI, de 29 de abril de 2020, assinada pelo ministro-general Augusto Heleno) dizendo que só as Forças Armadas são responsáveis por vigiar como outro militar está trabalhando, ainda que subordinado a um civil de outro ministério. No mundo civil não há mesma preocupação com siglas, símbolos, o nome exato de cada coisa, e no último mês saiu da Casa Civil um glossário de nomes de cada uma das repartições (da pasta) e suas siglas correspondentes (a portaria 182, de 14 de abril de 2020, assinada pelo ministro-general Walter Souza Braga Netto). Isso é a cultura militarizada. Então, é difícil falar que as Forças Armadas não estão no governo, porque o olhar militar se coloca em todos os espaços.

 

CC: E por que você diria então que existe o esforço retórico de desvinculação?

 AP: Não é retórico, eles tentam preservar a instituição e a própria família militar. O (vice-presidente e general aposentado Hamilton) Mourão assumiu no ano passado que ia ser inevitável que as pessoas associassem as Forças Armadas ao governo, ao presidente, mas, por outro lado, os militares fazem esse esforço contínuo de tentar separar quem manda onde, quem é subordinado a quem.

 

CC: Que interesses aproximam as Forças Armadas e o Bolsonaro?

 AP: O mais nítido, sem dúvida, é a questão do nacionalismo, do patriotismo. É um nacionalismo muito forte do ponto de vista simbólico, de usar a bandeira do Brasil, de cantar o hino nacional, o próprio lema do Bolsonaro vem das Forças Armadas (Brasil acima de tudo, Deus acima de todos). Mas essa noção de pátria é mais territorial, não é de projeto nacional. É um nacionalismo sem um projeto nacional de país que as próprias Forças Armadas já tiveram na década de 1950. Na esquerda, há uma ideia muito forte, até por causa do (penúltimo general-ditador, no poder de 1974 a 1979, Ernesto) Geisel, de que os militares são desenvolvimentistas economicamente, mas eles passaram a sustentar políticas liberais há muito tempo. O patrimônio nacional tem sido vendido desde a época do (ex-presidente tucano no poder de 1995 a 2002) FHC, e as Forças Armadas não reagem. Não se opuseram à venda da Embraer para a Boeing (iniciada no governo Temer e concluída no atual). A ideia de defesa da família e das tradições também aproxima as Forças Armadas e o Bolsonaro.

 

CC: A reabilitação do golpe de 1964 e da ditadura que se seguiu até 1985 também, não?

 AP: Sim, essa ideia de revisão histórica… Tenho a impressão de que existe um sentimento muito sincero nos militares, não quer dizer que eu concorde, de que eles saíram injustiçados da ditadura. Injustiçados no sentido de “a gente fez o que combinou com um monte de gente, mas no final das contas o que deu errado caiu foi só na nossa conta”. Mas essa questão do que foi o regime, seus prós e contras, é um tema bem controverso para eles (militares).

 

CC: E o que afasta Bolsonaro e os quartéis, se é que tem algo?

 AP: De forma geral, os militares são discretos, educados no trato, principalmente no trato com os civis, com a imprensa, com o público, são sempre preocupados em passar uma boa imagem da corporação. E  gostam da ordem. O Bolsonaro é o menos discreto possível, faz declarações polêmicas, sempre atua numa lógica de alimentar uma base muito militante que ele tem, que até caminha para o fascismo, se ainda não chegou lá… Ele infla uma coisa com a qual os militares, na história inteira, sempre disseram que não concordavam, essa ideia de que existem polos em disputa. A ideia de unidade nacional é muito forte para eles, e o Bolsonaro investe contra ela todo o tempo. Há também diferença de forma. O militar planeja, ele não improvisa, e o Bolsonaro improvisa muito.

 

CC: Ele estimula de alguma forma a quebra da hierarquia, ao se dirigir às vezes diretamente às baixas patentes militares. Vê risco de quebra da hierarquia, se ele radicalizar? Quem controla as bases, o alto comando ou o presidente?

 AP: Essa é uma pergunta muito difícil, ninguém tem 100% de certeza da resposta. Isso explica um pouco o comportamento das Forças Armadas. Eu levantei essa hipótese pela primeira vez na época da soltura do Lula. Eu pensava: e se, de repente, um major qualquer lá do Paraná se levantar e disser que “não, daqui o Lula não sai, a Justiça pode falar o que quiser, mas daqui o Lula não sai?”. Hoje um jovem que procura essa carreira não necessariamente tem a mesma mentalidade dos generais quatro estrelas. Virou uma carreira pública muito interessante, igual o Judiciário, existe todo um segmento concurseiro que olhou com carinho para essa carreira. Vai mudando um pouco inclusive a forma de exercer a hierarquia. Mas o tempo todo o alto comando vem trabalhado no sentido de reforçar a sua hierarquia.

 

CC: A perda do monopólio da força para PMs e de quebra da hierarquia nelas também é uma preocupação das Forças Armadas? O Bolsonaro é popular entre PMs.

AP: Em todos os planejamentos das Forças Armadas, elas contam com a Polícia Militar como reserva, como capacidade de mobilização, de fato tem policial em cada cidade desse País. Repare que o Ministério da Defesa chamou de greve, o que pelas normativas é um motim, aquilo que aconteceu com PMs no Ceará. O que acontece agora, acho, é que mudou a autoridade moral que as Forças Armadas tiveram em outros momentos da história na área de segurança. Muitas pesquisas da sociologia e da antropologia mostram falas de policiais dizendo assim: “Quem vai pra guerra somos nós, eles (os militares das Forças Armadas) ficam só no escritório”.

 

 

Reproduzido de: https://www.cartacapital.com.br/politica/partido-militar-controla-o-brasil-mas-nao-controla-o-bolsonaro

Crédito imagem: “BOLSONARO E MILITARES DURANTE A CERIMÔNIA COMEMORATIVA DO DIA DO EXÉRCITO” Foto de Marcos Corrêa/PR

Soldados da Democracia e da Paz? Considerações sobre os efeitos da participação de militares em operações de paz sobre as relações civis-militares

Leonardo Dias de Paula, Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas e pesquisador do Gedes

 

A participação em operações de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) pode ser observada como uma função alternativa de emprego para as forças armadas. As possibilidades de profissionalização, redirecionamento do emprego das forças ao exterior, o contato com princípios democráticos e de proteção de direitos e liberdades fundamentais, contidas na interpretação convencional sobre as operações de paz, podem ser compreendidos como fatores potencialmente capazes de contribuir para a consolidação de relações entre civis e militares balizadas pelo controle das forças castrenses pelos representantes políticos eleitos.

Assim, é possível vislumbrar que o engajamento das forças armadas em missões de paz contribua para a transformação dos propósitos e valores partilhados pelas instituições militares em prol de relações civis-militares em que se verifica um consolidado controle civil sobre os militares (VELÁZQUEZ, 2010). Charles Moskos (1976) nutriu a expectativa de que a participação em operações de paz poderia modificar as interações entre militares, outros poderes políticos e a sociedade. Em síntese, a participação em operações de paz resultaria em forças militares distantes da disputa política e do desempenho de funções subsidiárias internas, e, portanto, concentradas em missões voltadas ao exterior.

No entanto, ao analisar o caso brasileiro, é possível identificar efeitos contrários a essa expectativa. A participação na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), entre 2004 e 2017, teve implicações para o emprego das forças armadas em missões internas e para o prestígio dos militares diante da opinião pública, contribuindo para seu retorno ao centro do poder. Ambos os efeitos seguem na direção oposta à consolidação de mecanismos de supervisão das forças armadas pelo poder civil.

Uma opção para iniciar esse estudo concerne à identificação das atividades desempenhadas por contingentes militares em operações de paz da ONU. Com efeito, as tarefas desempenhadas em missões de paz diferem das funções de defesa nacional, próprias às forças castrenses, ainda que ambas voltem sua face ao exterior. Observam-se, entretanto, que as operações de paz aprovadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) passaram por transformações. Enquanto as missões desdobradas no período da Guerra Fria estiveram predominantemente circunscritas a tarefas como a supervisão de acordos de cessar fogo e do movimento das partes beligerantes, os mandatos contemporâneos compreendem funções localizadas em um espectro mais extenso. Ao longo das décadas de 1990 e 2000, as operações de paz incorporaram tarefas como o suporte à distribuição de auxílio humanitário, a realização de projetos de impacto rápido, a supervisão de eleições, entre outras funções.

As atividades contidas nos mandatos de operações de paz contemporâneas, portanto, se aproximam às funções subsidiárias realizadas pelas forças castrenses. Simultaneamente, as missões desdobradas nesse período podem ser caracterizadas por sua maior permissividade ao recurso à violência como instrumento para garantir a realização dos objetivos do projeto internacional de paz. Enquanto as operações de outrora eram regidas por uma estrita limitação no uso de meios coercitivos durante a execução de suas atividades, os mandatos contemporâneos são fundamentados em uma interpretação mais flexível quanto às restrições no uso da violência para alcançar os objetivos políticos aprovados pelo CSNU para cada missão desdobrada em terreno.

A volumosa participação de militares do Exército Brasileiro na Minustah não secundou os mecanismos de controle civil sobre as forças armadas. A atuação dos contingentes brasileiros no Haiti foi caracterizada por concatenar tarefas estritamente relacionadas à esfera da segurança – como o uso da violência contra gangues e criminosos – e projetos de desenvolvimento e de distribuição de auxílio humanitário. Cerca de 37,5 mil militares do país desembarcaram no país caribenho para integrar a missão das Nações Unidas. Durante todo o período, oficiais do Exército brasileiro foram selecionados como comandantes do componente militar da missão de estabilização.

A experiência em operações urbanas adquirida no país caribenho foi relevante para a condução de missões de segurança pública em território brasileiro na forma de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). As similaridades entre as operações conduzidas em Porto Príncipe e na cidade do Rio de Janeiro foram frequentemente evocadas: as semelhanças entre as periferias de ambas as cidades – os teatros de operação para as forças armadas brasileiras; as características dos alvos das operações – grupos violentos envolvidos em atividades ilegais; as formas de engajamento, das quais se destaca a criação de bases garantidoras de domínio sobre os territórios urbanos – os “pontos fortes” do contingente militar da missão de paz e as Unidades de Polícia Pacificadora atribuídas à Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro.

A violência acentuada é também um elo que une as ações de militares brasileiros no Haiti e nas operações domésticas. Assim, é possível observar a repatriação da experiência adquirida pelas forças armadas nacionais durante a operação de paz em favor de processos de militarização da segurança pública (HARIG, 2019; MARQUES, 2018). O padrão de emprego das forças armadas que caracteriza ambos os tipos de operação desempenhadas por militares brasileiros pode ser arregimentado sob o signo da contrainsurgência, em especial por apensar o uso da violência à realização de atividades de governo dos territórios sob intervenção.

Amiúde, o prestígio auferido durante a operação de paz contribuiu para uma imagem das forças militares como garantidoras da ordem e bálsamo para a conjuntura política nacional. Mesmo se restringirmos nosso estudo à década de 2010, é possível identificar diferentes episódios em que a atuação das forças armadas, ou de membros delas, afetou a cena política brasileira. Manifestações favoráveis a uma intervenção militar na política nacional proliferaram, angariando gradativamente mais fiéis, desde o ano de 2013. Durante a greve de caminhoneiros em 2018, por exemplo, viu-se o estender de faixas clamando por um novo golpe militar; simultaneamente, as forças castrenses foram empregadas para garantir a distribuição de mercadorias essenciais e desobstruir vias em todo o território brasileiro, marchando de encontro aos interesses dos caminhoneiros em greve. Parte relevante desses pedidos esteve fundamentada em uma interpretação torpe do artigo 142º da Constituição Federal de 1988 e em uma futurologia imaginativa de ameaças à ordem.

A comunicação irascível de oficiais da reserva e da ativa das forças militares, muitas vezes realizada através de comentários curtíssimos na rede social Twitter, pressionou representantes democraticamente eleitos e membros do judiciário. Um exemplo dessa pressão pode ser observada durante o julgamento de um pedido de habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ameaçando uma intervenção em caso de uma imaginada violação da ordem e contrariedade aos anseios de parte da população. Com efeito, durante a década de 2010, sugestões de golpes militares como alternativas para imaginados casos de ameaça à lei e à ordem foram demasiadamente frequentes, indicando a fragilidade da democracia brasileira. As menções à prontidão para o serviço pulularam entre devotos do autoritarismo membros das forças armadas. Um episódio especialmente marcante foram as elegias do general Hamilton Mourão à possibilidade de golpes pelas forças armadas.

É preciso ainda destacar um evento anterior ao pleito. Candidatos de diferentes espectros político-ideológicos se submeteram a sabatinas do então comandante do Exército, general Eduardo Villas-Boas. O militar, que deveria obediência aos representantes eleitos à presidência da República, inspecionou os planos dos postulantes para a política brasileira durante um eventual mandato.

Conquanto seja possível observar a permanência dos militares em questões políticas após a transição ao regime democrático brasileiro, as eleições de 2018 representaram o retorno de militares ao centro do poder através na esfera federal. A vitória de Jair Bolsonaro resultou em uma seleção numerosa de ministros e de outros cargos relevantes oriundos da caserna. O plantel ministerial em janeiro de 2019 contava com seis membros das forças castrenses. Militares passaram a capitanear postos sensíveis às políticas de defesa, como o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e o Ministério da Defesa. Há militares em outros setores: infraestrutura, ciência, empresas estatais. As nomeações não se restringiram aos primeiros escalões do governo federal, irradiando-se por outros níveis e também através das autarquias estaduais.

Parte relevante do ministério empossado no início do ano de 2019, bem como de outros cargos relevantes da Federação, teve experiência na Minustah. Apesar das rotações no elenco, militares permanecem em postos sensíveis. Em fevereiro de 2020, com a indicação do general Walter Souza Braga Netto, os quatro ministérios que despacham da sede do poder Executivo passaram a ser ocupados por militares: três membros das forças armadas e um policial militar. O novo habitué do Palácio do Planalto fora nomeado pelo ex-presidente, Michel Temer, como interventor federal para o estado do Rio de Janeiro em 2018; depois, tornou-se comandante do Estado-maior do Exército.

Comandante do componente militar da Minustah durante o Massacre de 6 de Julho, o general Augusto Heleno tornou-se um dos homens-fortes do governo de Jair Bolsonaro. Ministro do GSI, Heleno protagonizou notícias com declarações que atentam contra a democracia. Em uma gravação transmitida através da internet, o general esbravejou que o governo não deveria aceitar negociações junto a parlamentares. A deselegância do ministro apenas coroa seu desapreço pelo regime democrático.

É preciso insistir: essa breve coletânea de eventos no Brasil contemporâneo contraria as expectativas de que a participação em operações de paz contribuiria para a consolidação de mecanismos de controle e supervisão das forças armadas de um país. Recorrer ao engajamento nesse tipo de missão como alternativa para reformar as forças castrenses e instituir formas de controle civil sobre as instituições militares é uma medida inócua na ausência de outros mecanismos de supervisão (SOTOMAYOR, 2007). Assim, a criação de instituições de controle efetivo depende de um entendimento preciso das características e prerrogativas militares, bem como do processo decisório em um Estado para que mudanças radicais nas relações civis-militares sejam planejadas e implantadas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HARIG, Christoph. Re-Importing the ‘Robust Turn’ in UN Peacekeeping: Internal Public Security Missions of Brazil’s Military. International Peacekeeping, Vol. 26, n. 2, 2019.

 MARQUES, Adriana A. Missões de paz e relações civis-militares: reflexões sobre o caso brasileiro. Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais. v. 7, n. 14. Jul/dez 2018. p. 242-262.

MOSKOS, Charles C. Peace Soldiers: the Sociology of United Nations Military Forces. Chicago: Chicago University Press, 1976.

 SOTOMAYOR, Arturo. La participación en operaciones de paz de la ONU y el control civil de las fuerzas armadas: los casos de argentina y uruguay. Foro Internacional. 2007. v. XLVII, n. 187 (1). pp. 117-139.

VELÁZQUEZ, Arturo C. Sotomayor. Peacekeeping effects in South America: common experiences and divergent effects on civil-military relations. International Peacekeeping. v. 17, n. 5. 2010. p. 629-643.

Créditos da imagem: Força Aérea Brasileira, Sgt Rezende/ Pelotão de Infantaria da FAB embarca para missão da ONU no Haiti

Entre a arrogância e o paternalismo: a tutela militar sobre instituições do Estado brasileiro. Entrevista especial com Ana Penido

Vivemos um regime democrático no Brasil e por isso podemos afirmar que se vive num regime de liberdade e igualdade. Correto? Errado. A professora Ana Penido, que pesquisa a formação e atuação de militares no país, revela que a noção que se tem de democracia é, na prática, muito mais restrita e tem influência do modo como os militares compreendem o conceito. “É um conceito restrito de democracia, baseado em seus aspectos formais, ou seja, a realização de eleições, organização partidária, etc. Infelizmente, essa concepção de democracia limitada também é presente na sociedade”, aponta. Para ela, o conceito pleno de democracia é outro, que “prevê o conflito de ideias, manifestações públicas e outras coisas que, no ponto de vista deles, são geradoras de instabilidade”. E, num governo como o de Jair Bolsonaro, em que a presença militar é maior, essas perspectivas se acentuam. Assim, Ana chama atenção para como, na prática, se configura – e até se reforça – uma espécie de tutela militar sobre as demais instituições de um Estado democrático. “Os militares mantêm uma tutela sobre as instituições do Estado brasileiro, e se organizam como corporação, para quem, à exceção do momento de disputa de recursos orçamentários, a relação cotidiana com civis varia entre a arrogância de quem se acha melhor e o paternalismo de quem acha que deve proteger os fracos”, sintetiza. Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, a pesquisadora ainda destaca a importância de se compreender como essas ideias são gestadas na “caserna”, desde a educação básica das forças armadas. “É plantada na escola e depois amadurece durante a carreira a ideia de que eles são mais responsáveis pelo destino da nação, mais patriotas, mais nacionalistas, que o povo brasileiro em geral”, aponta. Mas são lógicas que diferem das do passado, como as que formaram os militares que estiveram no comando do país durante a ditadura. “Atualmente, é preciso ressaltar que educação é uma dimensão do processo de profissionalização, e os militares são muito cuidadosos com essa parte, pois é a que garante sua reprodução técnica e simbólica enquanto corporação”, define. Ao longo da entrevista, Ana também analisa vários pontos, como as concepções de relações internacionais que se dão nas academias. Segundo ela, são ideias que estão além da grade curricular ou da emenda de disciplinas. Estão no entremeio do que chama de “currículo oculto”. “Quando se observa essa parte, fica nítida uma visão tradicional de geopolítica, que caracteriza o momento atual como uma nova guerra fria entre China e Estados Unidos, e a tarefa brasileira de se aliar ao seu grande irmão do ocidente”, exemplifica. Além de detalhar como ocorre a formação de militaresAna observa como essas ideias chegam a outras áreas do governo de Jair Bolsonaro, como a ideia das escolas com gestão cívico-militares. “Se fosse para adotar a ideia de “escolas modelo”, algo bastante discutível, o padrão a ser seguido seria das escolas federais ou das escolas de aplicação das Universidades, quase extintas”, critica. E dispara: “o projeto vende uma ideia de moralização das escolas através da disciplina. Acredito que deveria ser óbvio que um corte de cabelo curto não é o que vai “salvar a nossa juventude das drogas”, seja lá o que isso significa.

 

Ana Amélia Penido Oliveira é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, possui mestrado em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança pela Universidade Federal Fluminense – UFF e doutorado em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Atualmente é pesquisadora do Instituto Tricontinental e da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Entre as suas publicações, destacamos “As mudanças na guerra e na formação dos guerreiros” (In: Poder Aeroespacial e Estudos Interdisciplinares de Segurança e Defesa, 2014, Rio de Janeiro) e “Uma educação militar para a defesa do Brasil” (In: V Encontro Pedagógico do Ensino Superior Militar, 2013, Resende. Anais do V EPESM, 2013).

IHU On-Line – Como avalia a relação entre civis, militares e Estado no Brasil hoje?

Ana Penido – Essa pergunta origina muitas teses de doutorado. Resumidamente, acredito que os militares mantêm uma tutela sobre as instituições do Estado brasileiro, e se organizam como corporação, para quem, à exceção do momento de disputa de recursos orçamentários, a relação cotidiana com civis varia entre a arrogância de quem se acha melhor e o paternalismo de quem acha que deve proteger os fracos.

IHU On-Line – Qual projeto de país está presente hoje no ideário das forças armadas?

Ana Penido – Não acho que exista essa visão geral hoje, e nem acho que deveria existir. Existem algumas questões mais específicas, já formuladas há décadas e que vez ou outra são requentadas como se fossem um projeto, como a formulação de que pelo nosso tamanho, riquezas e população somos “fadados” a ser grandes. Ou que é necessário povoar a Amazônia, como se ela não fosse já povoada, ou mesmo que falta coesão nacional. Na época do regime burocrático-autoritário, eles até tiveram projetos de governo, como fica nítido nas formulações do [Ernesto] Geisel sobre empresas nacionais e grandes projetos, como o Proálcool e o Nuclear. Existem também iniciativas de construção de cenários estratégicos de longo prazo, o que facilita no planejamento.

Um projeto de país é algo de outra envergadura, é uma tarefa eminentemente política, algo que não cabe a uma força armada profissional, e sim aos partidos políticos e movimentos/grupos sociais. Pensar um projeto nacional é fundamental para resolver o que alguns pensadores vêm chamando de crise de destino. Mas um projeto só existe fruto do conflito de ideias com outros setores da sociedade, capaz de ir produzindo sínteses, diferente da afirmação cristalina de objetivos nacionais permanentes. Ele é também fruto da correlação de forças, ou seja, de quais segmentos de fato estão se colocando para construir o Brasil, e não pegar o que for possível para benefício próprio, muitas vezes morando inclusive fora do país. Além disso, na democracia, é importante que os grupos submetam seus projetos ao escrutínio coletivo, o que só é possível por meio dos partidos políticos.

IHU On-Line – Como compreender a formação do militar brasileiro ao longo da história? E, atualmente, de que forma as academias articulam profissionalização e educação na educação militar?

Ana Penido – Quanto a esse aspecto mais histórico, na minha dissertação, elenquei algumas variáveis que conformariam o que chamei de ‘profissionalização à brasileira’. As transcrevo aqui rapidamente, sem me aprofundar muito, lembrando que é uma perspectiva temporal, que vem desde o século XIX.

1. Ocorreu por iniciativa militar e enfrentou a resistência de civis;

2. forte retórica anticomunista;

3. Forças Armadas – FFAA profissionais antes de outras burocracias de Estado;

4. enfrentou uma baixa cultura política e desinteresse pela defesa;

5. adotou o regime escolar de internato;

6. não contou com uma elite civil com preocupações nacionais;

7. ocorreu junto com muitas intervenções militares na política;

8. sofreu forte influência externa, por ordem de ocorrência, sendo que as duas últimas ocorreram em algum período de forma concomitante – Portugal (fomos colônia), Alemanha (pré-guerra), França (pós-missão francesa) e Estados Unidos;

9. enfrentou a polêmica conteudismo X praticismo, reflexos do positivismo – ou, como alguns estudiosos chamam, colocou em lados opostos ‘intelectuais’ X ‘tarimbeiros’;

10. funcionou como força modernizadora, inclusive da base econômica;

11. fortemente baseada no personalismo;

12. formação para múltiplas possibilidades de emprego externas e internas;

13. contou com elevada autonomia, com militares definindo as próprias diretrizes e sem participação civil;

14. baixa valorização docente;

15. conviveu com um conflitante sentimento de inferioridade militar (orfandade) X sentimento de superioridade militar sobre civis (salvaguarda nacional).

Atualmente, é preciso ressaltar que educação é uma dimensão do processo de profissionalização, e os militares são muito cuidadosos com essa parte, pois é a que garante sua reprodução técnica e simbólica enquanto corporação. O novo e o velho convivem. Por exemplo, eles se modernizaram muito do ponto de vista tecnológico, assim como correram atrás de serem reconhecidos a partir das regras da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, mas muitos pontos que abordei historicamente permanecem, como uma forte retórica anticomunista (hoje modernizada para Foro de São Paulo ou petistas ou outro inimigo interno de ocasião) e um sentimento de superioridade em relação ao mundo civil.

IHU On-Line – Como se dá a formação política e de relações internacionais nas academias militares?

Ana Penido – Conheço mais a partir das emendas das disciplinas, mas me parecem ter as questões teóricas tracionais da área, com um foco na formação e instituições do Estado no caso da disciplina de ciência política e nas normativas e organismos internacionais, incluindo os direitos humanos, no caso da disciplina de relações internacionais. Eles também têm ampliado o estudo de idiomas, em virtude do relevo que as missões de paz ganharam. Pessoalmente, em alguns momentos me lembrava das minhas aulas de religião obrigatórias no Ensino Médio, o que, independente da minha fé, me parecia pouco aplicável na época.

A questão aqui não está no currículo explícito, mas no oculto, por isso falar em formação num sentido mais amplo, e não apenas no ensino de conteúdos. Quando se observa essa parte, fica nítida uma visão tradicional de geopolítica, que caracteriza o momento atual como uma nova guerra fria entre China e Estados Unidos, e a tarefa brasileira de se aliar ao seu grande irmão do ocidente. Da mesma maneira, se percebe a perpetuação da visão tutelar das FFAA sobre o Estado brasileiro, embora seja ponderável se essa visão é factível. Há autores que pensam em poder moderador, numa função tutelar, em partido político militar ou mesmo em protagonistas não explícitos. Em todas essas formulações, aponta-se como as forças armadas brasileiras participam ativamente da política.

IHU On-Line – Que conceito de democracia e cidadania emergem do ideário dos militares hoje?

Ana Penido – Acredito que posso falar melhor sobre o conceito de democracia. Embora isso sempre esteja nos discursos, é um conceito restrito de democracia, baseado em seus aspectos formais, ou seja, a realização de eleições, organização partidária etc. Infelizmente, essa concepção de democracia limitada também é presente na sociedade. O sentido lato da formulação do Rousseau tratava da participação social como coração da democracia, como um meio para o desenvolvimento das potencialidades humanas, individual e coletivamente, combatendo uma visão elitista em que apenas uma parte da sociedade está qualificada para decidir por todos. Infelizmente, essa visão é pouco resgatada. É preciso lembrar que democracia prevê o conflito de ideias, manifestações públicas e outras coisas que, no ponto de vista deles, são geradoras de instabilidade, e, de forma geral, militares gostam dos cenários o mais previsíveis possível.

A visão de cidadania, que sustenta esta democracia, também é elitista. A cidadania é determinada pelo mérito, com uma visão de que quem alcança maiores postos, por mérito e estudos próprios, seria um cidadão melhor preparado para o exercício da cidadania, especialmente da cidadania política.

IHU On-Line – A senhora pesquisou a Academia Militar das Agulhas Negras – Aman. O que mais a surpreendeu nesse trabalho? Como, a partir daquela sua experiência, compreende os movimentos dos militares de hoje?

Ana Penido – O que mais me surpreendeu foi, como disse, a mistura do novo com o velho, do moderno e científico com concepções até quase místicas, como a do anticomunismo. Acho que tanto a ida de muitos militares para o governo, assim como a mais recente tentativa de afastamento da instituição militar do governo podem ser vistas a partir daí. Nas escolas, são formados fortes laços de solidariedade, que continuam por toda a vida, ainda que o presidente tenha saído da caserna. Alguns dos seus colegas de turma se tornaram seus subordinados de governo. Isso é coerente com a ideia de que a família militar está acima de tudo.

Por outro lado, se fala muito em profissionalização no Exército, o que se inicia na Aman, e o básico para isso é não ter uma instituição politizada, por isso vêm ocorrendo tentativas de se mostrarem como algo distinto do governo. Eles se consideram bons profissionais, e julgam que eram mal aproveitados pelos governos anteriores. Entretanto, temos que refletir, pois se a Aman estiver formando bons gestores públicos, temos aí um problema, pois o que ela precisa formar são bons profissionais para a defesa nacional. Por fim, e talvez o mais importante, é plantada na escola e depois amadurece durante a carreira a ideia de que eles são mais responsáveis pelo destino da nação, mais patriotas, mais nacionalistas, que o povo brasileiro em geral. Essa ideia é incoerente quando se pensa a guerra moderna, além de estar na fonte dos nossos problemas de relação civil-militar.

IHU On-Line – Como avalia essa proposta da gestão civil/militar em escolas públicas? Quais os limites e as potencialidades desse projeto?

Ana Penido – Avalio que o projeto é na verdade uma forma do presidente falar com a própria base, sem resolver a questão da educação, que vem sendo mal avaliada e sofrendo cortes orçamentários, não só a nível universitário. Em primeiro lugar, as escolas militares em nível de ensino médio, que é a quem o projeto se destina, apresentam melhores resultados que as escolas comuns, pois têm um valor investido por aluno muito superior à média das escolas públicas. A educação nas escolas federais também recebe mais recursos, e tem resultados ainda melhores que a rede militar, ou seja, se fosse para adotar a ideia de “escolas modelo”, algo bastante discutível, o padrão a ser seguido seria das escolas federais ou das escolas de aplicação das Universidades, quase extintas. Cabe pontuar que até o salário dos professores é diferente, o que faz com que tenham mais disposição para atividades no contraturno escolar.

Outra questão é o desvio de recursos da área da educação para área da defesa, o que não resolve o problema orçamentário nem de uma área e nem de outra. Um terceiro ponto é a previsão de contratar soldados. Num país como o nosso, com os nossos atuais índices de desemprego, pensar a possibilidade de as pessoas acumularem salários é um absurdo. O debate deveria ser como criar frentes emergenciais de emprego para quem não tem nenhum, e não conseguir um “extra” para quem mantiver a fidelidade política de quem já tem.

Uma quarta questão é a relação da escola com a comunidade. Diferente das escolas em geral, as militares têm um público mais homogêneo, vindo de famílias militares, o que também modifica a relação do pai do aluno (normalmente mãe) com a escola. Por fim, talvez o mais cruel, o projeto vende uma ideia de moralização das escolas através da disciplina. Acredito que deveria ser óbvio que um corte de cabelo curto não é o que vai “salvar a nossa juventude das drogas”, seja lá o que isso significa.

IHU On-Line – Durante parte do regime militar, uma das marcas do governo foi o nacionalismo e o projeto de desenvolvimentismo, numa valorização do Estado. Como essas duas marcas aparecem – ou desaparecem – nos militares de hoje?

Ana Penido – A esse respeito, recomendo que as pessoas leiam a entrevista do Geisel publicada pelo CPDOC . É nítida uma visão de modelo de desenvolvimento, em especial ao se observar a discussão sobre o petróleo. A ideia de desenvolvimentismo estava ligada à de segurança nacional, ou, em outros termos, de conseguirmos, enquanto país, provermos autonomamente os recursos mais estratégicos para a nossa própria defesa, não ficando dependentes de elementos como os combustíveis. Essa ideia raramente me parece presente. Hoje a maioria dos oficiais tem afinidade de leitura com a Fundação Getulio Vargas ou com a Globonews, e adotaram, portanto, o neoliberalismo econômico, como pôde ser visto no episódio da venda da Embraer.

Com relação ao nacionalismo, essa é uma discussão bastante complexa. Me parece que, muitas vezes, é um nacionalismo focado na questão do território e no domínio das fronteiras. Por outras vezes, me parece um nacionalismo declaratório, sem substância. Essa questão mereceria uma investigação aprofundada, mas um ponto que eu levantaria é a formação pautada pela adoção de doutrinas e equipamentos de outros países. Isso pois, para mim, e impossível pensar em nacionalismo sem pensar em uma inserção autônoma do nosso país no mundo, em ciência e tecnologia nacional, em desenvolvimento autóctone. Qual o sentido, por exemplo, de ter um submarino nuclear que vai fazer a segurança da Shell? Problema parecido sofre o conceito de soberania. Para resolver isso, precisaríamos avançar muito coletivamente como povo, amadurecendo nossas raízes, e deixando de buscar ser o que os outros são ou pior, o que querem que nós sejamos.

IHU On-Line – Como a experiência das forças armadas brasileiras no Haiti incide na formação e atuação dos militares brasileiros? Na sua avaliação, qual o saldo da participação brasileira nessa operação?

Ana Penido – A experiência no Haiti preparou os militares para atuarem em ambientes urbanos, com conflitos e pobreza. Se tornou também uma fonte de prestígio e de recursos para indivíduos e para as FFAA. Era a “guerra possível” para um país com o peso internacional do Brasil, que desejava uma cadeira no Conselho de Segurança na ONU, mas na verdade, se tornaram uma fonte de prestígio e recursos para as FFAA e para indivíduos. É um cenário similar às missões de Garantia da Lei e da Ordem que ocorreram nas comunidades do Rio de Janeiro e na mais recente intervenção federal. Como o próprio Villas Bôas já apontou, não adiantam, pois assim que os instrumentos de força e coerção social são desmobilizados, a situação volta à sua gravidade.

Na verdade, a questão mais importante para mim a esse respeito é que precisamos entender que nem todos os problemas são resolvidos através da securitização dos temas e do emprego da força. Por aqui, os militares são usados para combater as drogas, mosquitos, a pobreza, a seca, enfim, um conjunto de questões que não são resolvidas através da força, e sim de políticas públicas como saúde, segurança etc. Talvez caiba uma discussão sobre os batalhões de engenharia, mas isso seria outra discussão. No geral, elas já sabiam doutrinariamente atuar contra o inimigo interno, e nesse sentido o Haiti não faz sentido teórico, embora ofereça prática. Por outro lado, aprenderam a importância de idiomas e cresceram em capacidade para interagir com forças de outros países.

IHU On-Line – Qual o perfil dos jovens que ingressam nas forças armadas? Em que medida esses jovens militares se identificam com o ideário dos evangélicos, especialmente em relação ao governo Bolsonaro?

Ana Penido – Eu fiz esse estudo mais específico para o Exército, mas o professor Celso Castro estava fazendo também para a Marinha. Desconheço pesquisas sobre a Aeronáutica. Assim como no restante da sociedade, ocorreu uma queda no número dos cadetes católicos e um crescimento dos cadetes evangélicos, que já chegam a um terço daqueles que ingressam na Aman. É preciso ponderar que uma parte desses resultados tem relação com a representação do estado do Rio de Janeiro (notoriamente evangélicos) entre os cadetes que ingressam.

Não sei avaliar se a questão religiosa é a que mais pesa na identificação dos cadetes com o presidente. Acredito que não, seja porque o presidente trabalha a questão religiosa muito mais enquanto marketing político do que enquanto fé, seja porque o ethos militar, produto do espírito de corpo, é mais forte do que a questão religiosa, que por vezes tem origens familiares.

Mas isso me suscita um outro debate mais grave. Nosso ecletismo religioso sempre fez com que entre as hipóteses de conflito dentro do Brasil e do Brasil com outros Estados, diferente de muitas nações, as guerras religiosas não estivessem no cenário. Com o alinhamento automático do Brasil aos Estados Unidos e mesmo a Israel, combinado com o crescimento de um neopentecostalismo mais radical, inclusive entre os militares, me pergunto se essa hipótese não é mais assim tão descartável.

IHU On-Line – Levar militares para rua é uma forma viável de combater o crime organizado? Por quê?

Ana Penido – É inegável a existência de uma crise na área da segurança pública, representada pelo assustador dado de que apenas 8% dos crimes cometidos é elucidado. Assim como no caso das forças armadas, a influência francesa e estadunidense é perceptível. Temos duas polícias, uma militarinspirada nas forças armadas, e outra civil, de base política-jurídica, e ambas têm dificuldades para se entender, compartilhando uma tradição de investigações baseadas em provas testemunhais e não em provas técnicas. E a violência “à brasileira” é um misto de procedimentos arcaicos e modernos, ou seja, métodos e equipamentos para investigações ultramodernos são combinados não raras vezes com violações dos direitos humanos fundamentais, como a tortura.

É forte o sentimento de ineficiência, e parte da população escolhe mais violência como forma de combater a violência, mas não se resolve a crise com a equação mais armamento, mais polícia, mais prisão e maiores penas. Na realidade, as respostas à esquerda (apenas com a mudança estrutural da desigualdade) e à direita (apenas com endurecimento penal) são insuficientes para resolver a violência e a crise na segurança pública.

Diante desse cenário, as forças armadas, em especial o exército brasileiro, vem a cada dia sendo mais intensamente empregado em questões de segurança pública, embora hoje a polícia militar tenha o contingente três vezes superior ao das forças. Essa atuação é prevista constitucionalmente, como Instrumento de Garantia da Lei e da Ordem, embora não necessariamente legítima. As polícias e as forças armadas podem empregar a força, mas as corporações têm (ou deveriam ter) objetivos, doutrinas, armamentos e instrução absolutamente distintos. Em síntese, as polícias devem se preocupar com os cidadãos, enquanto as forças armadas devem defender o país. A ideia de inimigo interno, combinada com a de guerra ao terror, é explosiva e equivocada.

É importante deixar claro que o não emprego das FFAA nos conflitos não significaria que a questão da violência estaria resolvida. Mas a entrada do exército no conflito também não diminui os índices de violência (e nem poderia), e ocorrem vários efeitos colaterais do processo de ‘policialização’ das forças armadas, a saber: muda a escala de importância das atribuições das forças armadas que vão gradualmente sendo desprofissionalizadas; o Exército se torna força auxiliar da polícia, os militares passam a ser empregados no conflito violento contra compatriotas; as instituições se fragilizam e ficam mais suscetíveis a discursos demagógicos; ocorrem reformulações doutrinárias; recursos antes destinados à defesa são realocados para a segurança; cresce a tutela militar sobre o poder civil e o consequente autoritarismo político, enfim, um conjunto de questões que coloca em risco a democracia e a soberania brasileiras.

No entanto, é possível pontuar três questões que melhorariam a atuação da polícia, a saber: investimento na profissionalização, com ensino em acordo com as diretrizes dos direitos humanos; melhorias na gestão, com o aumento do controle social; e ampliação da utilização da tecnologia. Também é possível discutir a necessidade de criação de uma guarda nacional, uma vez que a força nacional de segurança pública é frágil institucionalmente. Às forças armadas cabe, prioritariamente, a defesa da nação diante de ameaças externas.

IHU On-Line – Que leitura a senhora faz dos militares que integram o governo de Jair Bolsonaro? Quem são eles? Que papel assumem e como se deu a formação deles?

Ana Penido – Repensei algumas coisas depois da demissão do general Santos Cruz, diga-se de passagem, nosso único militar com experiência de guerra, e que não contou com o apoio dos seus pares no governo. Eu acreditava que eles tinham entrado em massa com a ideia de moralizar o governo e tutelar o presidente. Passados os primeiros meses, viram que nem uma coisa nem outra é possível. Os militares não são a força dirigente do governo Bolsonaro. Quando pressionado, o presidente sempre fica com a “famiglia”.

Acredito que os que ficaram, espalhados em funções-chave diversas do governo, em especial os da reserva, são os que têm afinidade ideológica com o governo, alguns tendo inclusive se formado juntos, ainda durante o regime militar, e não são apenas “técnicos querendo prestar serviços à nação”. Ganharam relevo ambições pessoais, sejam elas políticas, de status ou financeiras. E acrescentaria, o fato de tantos militares estarem no governo não fez com que a área de defesa fosse valorizada enquanto política pública.

IHU On-Line – Como os militares de hoje compreendem a soberania nacional a partir do caso da Amazônia? Podemos afirmar que a pauta da Amazônia é ainda uma das poucas que traz unidade entre os militares e o restante do Governo Bolsonaro?

Ana Penido – Não sei dizer se é uma das poucas, mas é sim uma pauta que traz unidade ao governo, afinal, nada melhor para trazer unidade que um inimigo, e com os meses, o argumento “a culpa é do PT” vai perdendo força, pois são esperados resultados. No mais, a discussão parece a mesma de décadas atrás. Muitas falas sobre a importância de “povoar” a região, integrar com obras de infraestrutura (pontes, hidrelétricas…), a dureza da nossa legislação ambiental, a necessidade de desenvolver economicamente para combater os crimes, de explorar, inclusive os minerais das terras indígenas, de combater as ONGs que fazem biopirataria e levam os índios a acreditar que eles podem ser uma nação, críticas à demarcação de terras indígenas nas áreas de fronteira, em especial no corredor Triplo A. De novidade, a preocupação com a fragmentação interna da Venezuela; com a expansão chinesa via Guiana e Suriname; e com o sínodo do Vaticano.

Concordo com alguns elementos, discordo de outros, mas, principalmente, acho triste constatar que damos as mesmas respostas a questões identificadas décadas atrás, sendo que algumas dessas respostas foram tentadas e não ofereceram bons resultados. É óbvio o interesse externo sobre a Amazônia. Mas no meu entendimento, ela deve servir, em primeiro lugar, para proporcionar uma vida boa para o povo que nela habita. Tenho um artigo sobre isso chamando a necessidade para mantermos, como se diz no interior, um olho no gato e o outro na cumbuca.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Ana Penido – Precisamos delimitar e definir melhor em que nossas forças armadas devem ser empregadas, o que tem relação com a grande estratégia brasileira. Sem clareza nas tarefas, é difícil fiscalizar seu desempenho, controlar o orçamento, evitar a autonomia, perceber se as atividades-meio têm levado a resultados concretos nas atividades-fim, se a formação está adequada, entre outras questões. No mundo atual, a tendência é a especialização do trabalho, e não fazer um pouquinho de um bocado de coisas.

Uma segunda questão que acredito que deve ser objeto de atenção de todo o povo brasileiro é a possibilidade de as forças armadas perderem o monopólio da violência estatal, seja para as milícias (forças paramilitares) organizadas, seja para o aumento do poder de fogo das polícias militares. No caso das primeiras (diga-se de passagem, fora da preocupação do ministro da justiça Sérgio Moro), está pouco claro seu grau de influência no poder público, com a possibilidade de terem inclusive se infiltrado nas forças armadas. No segundo caso, o crescimento do poder de fogo dos equipamentos, o tamanho do efetivo, e até mesmo propostas como a do governador do Rio de criar o cargo de general nas polícias acendem um botão de alerta. Para quem acha que com as forças armadas, com hierarquia e disciplina está ruim, acreditem, é muito, mas muito pior sem elas.

Por fim, cabe o alerta que todo cientista político faz sobre essa participação no governo e as possibilidades de quebra de hierarquia. “Quando a política entra por uma porta, a hierarquia sai pela outra”, e a história militar do nosso presidente é a comprovação disso.

 

Por: João Vitor Santos | 07 Outubro 2019

INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS