[elementor-template id="5531"]

90 segundos para o fim do mundo e a carência de disposição à cooperação

Luiza Elena Januário*

 

No dia 24 de janeiro de 2023, o Bulletin of the Atomic Scientists anunciou que o Relógio do Juízo Final, ou Doomsday Clock, está marcando 90 segundos para a meia noite, o que representa o ponto mais próximo do apocalipse que a humanidade já esteve. A metáfora do relógio marcando o tempo para fim do mundo é uma figura utilizada para alertar sobre os riscos a serem enfrentados considerando a possibilidade de destruição do planeta por meio de dinâmicas relacionadas a avanços tecnológicos desenvolvidos pelo homem. Ou seja, está em pauta chamar a atenção da opinião pública e de líderes políticos para as ameaças que podem desestruturar as sociedades.

Criado em 1947, o Relógio do Juízo Final foi concebido a partir da preocupação gerada com o advento das armas nucleares. Durante a Guerra Fria, as marcações estimavam entre dois e doze minutos para o fim do mundo. Com o otimismo gerado pelo fim do conflito bipolar, foram estimados dezessete minutos para a meia noite em 1991, o ponto mais distante da aniquilação registrado desde o início da elaboração da metáfora. Vale ressaltar que a forma de sua concepção também foi alterada ao longo dos anos, sendo que em 2007 foram considerados pela primeira vez possíveis efeitos disruptivos associados à mudança climática. De qualquer forma, desde 2020 o Relógio do Juízo Final apontava cem segundos para a meia noite.

A questão nuclear foi central para acertar os ponteiros do Relógio nesse ano. Apesar de terem sido também considerados fatores relativos a ameaças biológicas, crise climática e tecnologias disruptivas, as armas nucleares representaram o cerne das preocupações, particularmente com os riscos associados à Guerra Russo-Ucrânia desencadeada em 2022. De fato, o diagnóstico hodierno é de crise da ordem nuclear. Desde o início do conflito, foram realizadas análises sobre a desestruturação de tal ordenamento e os prejuízos em termos de legitimidade do seu principal instrumento, o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), sendo também proposto que a crise atual encontra suas raízes na própria natureza da ordem nuclear, não representando uma distorção ou novidade.

De qualquer forma, entre as evidências de pontos de tensão associadas ao evento, podem ser citadas a falta de consenso na Conferência de Revisão do TNP de 2022, que foi encerrada sem aprovação de um documento final; a falta de consenso na Primeira Reunião das Partes do Tratado de Proibição das Armas Nucleares (TPAN) acerca da pertinência de se reprovar oficialmente a postura russa; a preocupação acerca da proteção de usinas nucleares em áreas de conflito e a insuficiência de meios para se lidar com tal tipo de situação; e a deterioração do diálogo estratégico entre Estados Unidos e Rússia, o que admitidamente já estava em marcha antes da deflagração do conflito na Ucrânia. O pessimismo associado à ordem nuclear global também está representado em outras facetas, como o fracasso de se relançar o Acordo Nuclear do Irã e os testes de mísseis balísticos da Coreia do Norte.

Particularmente a deterioração do diálogo estratégico entre Rússia e Estados Unidos é fonte de grande preocupação. Os panoramas de 2022 já indicavam apreensão com relação às perspectivas do Novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas, conhecido como New Start, o único acordo bilateral de controle de armamentos em vigor entre os dois países com os maiores arsenais nucleares do mundo. O compromisso expiraria em 2026 e havia a sensação que estava em perigo, uma vez que era necessário que Estados Unidos e Rússia buscassem retomar negociações para manter ou aprovar novas obrigações após essa data. No anúncio do Relógio do Juízo Final de 2023, foi pontuado que o findar do tratado “iria eliminar inspeções mútuas, aprofundar a desconfiança, estimular uma corrida armamentista e aumentar a possibilidade de uso de armas nucleares”. Além disso, houve frustração diante da impossibilidade de retomada das inspeções in loco, paralisadas desde 2020 devido inicialmente à pandemia de COVID-19 e, posteriormente, à guerra na Ucrânia.

Porém, o cenário foi agravado logo na sequência. No dia 21 de fevereiro de 2023, o presidente russo Vladimir Putin anunciou que Moscou estava suspendendo sua participação no New Start, demandando esclarecimentos acerca de sua forma de implementação, ainda que o mandatário tenha ressaltado que não se tratava de uma retirada do acordo. Putin também afirmou que a Rússia retomaria a realização de testes nucleares se os Estados Unidos assim o fizessem. A decisão de suspender a participação não foi recebida com surpresa, mas pode ser considerada delicada por introduzir mais incerteza em um cenário de grande animosidade. Apesar do mal-estar gerado, há a expectativa que as obrigações básicas sejam mantidas, já que o ministério de Relações Exteriores da Rússia afirmou que o país continuaria a cumprir os limites impostos pelo tratado enquanto ele estiver em vigor, respeitando as restrições quantitativas em relação a armas estratégicas ofensivas e continuando a notificar os Estados Unidos acerca do lançamentos de mísseis balísticos.

O New Start é um acordo de 2010, em vigor desde 2011 que estabeleceu limites quantitativos para os arsenais nucleares de seus signatários, com validade prorrogada até 4 de fevereiro de 2026. Apesar de ser um tratado mais recente, pode ser inserido na lógica de compromissos bilaterais de controle de armamentos promovidos por Estados Unidos e União Soviética, e posteriormente Rússia, desde a época da Guerra Fria. A perspectiva em pauta é de promoção de estabilidade estratégica e diminuição de incertezas, com base na cooperação. As iniciativas dessa natureza constituem um elemento importante em termos das ações desenvolvidas para lidar com a questão das armas nucleares. Ressalta-se que o diálogo entre os dois Estados foi central também para a arquitetura do regime de não proliferação, já que o TNP pode ser considerado fruto de convergência de interesses entre eles.

Talvez a característica definidora do momento atual seja justamente a falta de estímulo à cooperação no que se refere à questão nuclear. Durante a Guerra Fria existiram momentos de graves tensões, sendo necessário conviver com a possibilidade de escalada acidental ou proposital. Ainda assim, a metáfora do Relógio do Juízo Final remete hoje a uma imagem mais negativa e drástica do que naquele período. Os 90 segundo para a meia noite atuais podem ser associados à necessidade de dramatizar a questão para atrair atenção para os problemas e a consideração de outros fatores, mas a questão nuclear ainda está no cerne do ajuste dos ponteiros, ou melhor, parece que a falta de disposição política dos Estados para cooperar com o intuito de encontrar soluções para problemas comuns é o grande marco para o momento atual. No próprio anúncio de 2023 foi apontado que estava em curso o desmantelamento de instituições e normas internacionais essenciais para a formulação de uma resposta apropriada aos vários riscos enfrentados pela humanidade.

A ordem nuclear global é baseada em um compromisso discriminatório e, desde o ponto de vista de diversos atores, injusto. Apesar de todos os mecanismos de sustentação do presente ordenamento, é recorrente uma sensação de crise, insatisfação e promessas não cumpridas. Entendimentos básicos entre as superpotências da Guerra Fria representam aspectos basilares sobre os quais foi gradualmente edificado e mantido o regime de não proliferação, ainda que as convergências possivelmente fossem pautadas simplesmente por um interesse de manter o status quo. O declínio da disposição à cooperação em temas estratégicos significa, assim, maior incerteza e instabilidade para a arquitetura internacional. De forma similar, as iniciativas bilaterais dos dois países em termos de controle de armamentos representavam um importante aspecto de promoção de estabilidade e construção de confiança mútua. Ainda que não fossem suficientes para contornar os problemas intrínsecos à ordem nuclear, constituíam um esforço positivo e necessário.

O cenário atual é justamente de desmantelamento dessas iniciativas e de sua racionalidade, sem apresentação de uma alternativa viável. Ainda que não fossem suficientes, as ações existentes, baseadas na cooperação, eram fundamentais para amenizar os riscos associados às armas nucleares. Assim, o desmonte não é favorável mesmo ao considerar perspectivas críticas ao ordenamento. Afinal, a construção da ordem nuclear foi baseada no sufocamento de alternativas para se lidar com tais armas e a instabilidade de componentes relevantes para seu funcionamento não aparece acompanhada de espaço para novas formulações.

 

*Luiza Elena Januário é doutora e mestra em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP). Professora da Universidade Paulista (UNIP). Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

Imagem: Doomsday clock, positioned at 1.5 minutes to midnight. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Doomsday_clock_(1.5_minutes).svg>. Acesso em: 24 fev. 2023.

10th NPT Review Conference: what to expect from Brazil?

Victoria Viana Souza Guimarães*

Lucas Peixoto Pinheiro da Silva**

The approach of the 10th Review Conference (RevCon) of the Treaty on the Non-Proliferation of Nuclear Weapons (NPT) increases expectations about what will be debated and the possible outcomes. The expectation in regard to this specific RevCon is even stronger due to both the rescheduling and the multiple issues to be discussed. After four successive postponements due to the covid-19 pandemic, the event originally scheduled to take place in 2020, will take place between August 1st and 26th, 2022, in New York, in a very different and more challenging international context than in 2015. The topics that will probably be addressed include the following: Treaty on the Prohibition of Nuclear Weapons (TPNW), nuclear submarines, Joint Comprehensive Plan of Action (JCPOA), 2018-19 Korean Peace process, Russo-Ukrainian War, energy crisis, nuclear weapons modernization programs, among others. The present article reviews the main issues on the agenda of the non-proliferation regime, analyzes Brazil’s position in previous conferences, and presents the stance it is most likely to present at this conference.

One of the main issues that will probably be addressed in the 10th RevCon is the relationship between the NPT and the TPNW. The TPNW entered into force in January 2021 and its 1st Meeting of States Parties happened from June 21st until the 23rd, 2022, in Vienna, Austria. The states parties issued two notable documents: the “Vienna Declaration” and the “Vienna Action Plan.” In the first document, the states parties reiterated their commitment to a future without nuclear weapons and strongly condemned nuclear threats. While in the second, they presented a wide-ranging and detailed 50-point plan for the implementation of the treaty.

The discourse leading up to the 10th RevCon gave great emphasis to “reducing the risk of nuclear weapon use” as a practical way to make incremental progress toward disarmament. Nevertheless, some non-nuclear-weapon states fear that a collective focus on risk reduction is an effort to avoid taking the steps needed to achieve disarmament. Some civil society experts have recommended that the document for the final RevCon recognize the TPNW’s entry into force while simultaneously clearly reaffirming the centrality of the NPT to the disarmament and nonproliferation regime. Albeit that, action must still be taken to demonstrate that risk reduction does not deviate from the efforts toward nuclear disarmament but contributes to achieving it.

Another issue to be addressed is the AUKUS. This acronym refers to the initials of Australia, the United Kingdom, and the United States. These countries jointly announced the formation of a new trilateral security partnership in the Indo-Pacific on September 15th, 2021. This partnership establishes among other things the acquisition by Australia of nuclear-powered submarines. Thus, Australia, together with Brazil, which has pursued a nuclear-powered submarine since the late 1970s, would be the first non-nuclear-weapon state to possess it. These programs present new challenges regarding nuclear safeguards and proliferation which should be addressed at the conference. Speculations have already been made about the possibility of countries such as South Korea, Japan, Iran, and Pakistan, among others, taking advantage of this precedent.

The Joint Comprehensive Plan of Action (JCPOA) was signed in July 2015, closing the Iranian nuclear issue. It was originally composed by the P5+1 (China, France, Russia, UK, US + Germany) along with the European Union and Iran. The agreement’s main goal was to provide further assurances that Iran would not use nuclear technology to build nuclear weapons. However, in 2018, ex-President Donald Trump withdrew the US from the arrangement, which was followed by the reestablishment of strong banking and oil sanctions. In retaliation, the Iranians have resumed some of the nuclear activities that were dismantled by the JCPOA, such as increasing the stockpile of low-enriched uranium, enriching uranium in higher concentrations, and developing  new centrifuges. More recently, the signing of the Jerusalem Declaration, on July 16th, 2022, by Biden and the Prime Minister of Israel, Yair Lapid, obstructed even further the chances of the JCPOA’s revival. According to the document, each country would be willing to “use all elements of its national power” to prevent Iran from acquiring a nuclear device.

The 2018-19 Korean peace process was a series of negotiations among the US, South Korea, and North Korea towards the Korean peninsula denuclearization. In March 2018, ex-President Trump agreed to the first US-North Korea Summit, which was followed by a historical summit between Kim Jong-un and Moon Jae-in. The result was the pledge from both to convert the armistice into a formal peace treaty between the two Koreas and confirmed the shared goal of achieving a nuclear-free Korean Peninsula. Further efforts were made on June 12th, 2018, when Trump and Kim held a historic meeting, in Singapura; and in September 2018, when Kim and Moon signed a joint declaration outlining steps towards reducing tensions, expanding inter-Korean cooperation, and achieving denuclearization. Nonetheless, negotiations stalled after the Hanoi Summit. The efforts to revive it were unsuccessful and, on October 6th, 2019, North Korea ended negotiation talks with the US until Washington could offer substantial sanction relief. In June 2020, the inter-Korean dialogue was disrupted as well. More recently, Biden has adopted a “middle ground” approach between Obama’s “strategic patience” and Trump’s “grand bargain” policies, though North Korea has signaled no intentions to re-start the talks and ramped up missile tests at  the beginning of 2022.

On February 24th, 2022, Russia invaded Ukraine causing a major disturbance in the international system. Russia has put on special alert its deterrence forces, in case NATO intervened directly in the war, igniting security-focused rearrangements in the international economy, with unprecedented sanctions against Russia, which led to spiking oil and gas prices. The energy crunch caused by the war has led to the reconsideration of nuclear energy as a clean alternative to fossil-fuel based energy sources even in countries like Germany, where nuclear energy plants are predicted to be completely shut down at the end of 2022. Furthermore, during the conflict, the Kharkiv nuclear research institute was shelled and Europe’s biggest nuclear power station at Zaporizhzhia was damaged, causing further concern over the nuclear risks and its humanitarian consequences.

Nuclear weapons modernization programs continue to channel extensive resources that could be invested in other critical areas. According to the International Campaign to Abolish Nuclear Weapons (ICAN) report, in 2020, during the covid-19 pandemic, 72.6 billion was spent on nuclear weapons. This high investment in nuclear weapons was also underscored in a 2022 report produced by Reaching Critical Will. The report states that “continued investment by certain governments in not just the maintenance but also the ‘modernisation’—the upgrading, updating, and life-extending—of nuclear weapons is absurd, dangerous, and immoral”.

Brazil acceded to the NPT in 1998 and since then has participated in all RevCons and Preparatory Committees[3], having consolidated very coherent and stable rhetoric internationally. The Brazilian position in the Global Non-proliferation Regime has been characterized by the following rhetorical issues: i) defense of the universality of the NPT; ii) the reaffirmation of its pillars (nonproliferation, disarmament, and peaceful use of nuclear technology); iii) the reiteration of the irreversibility, transparency and verifiability principles and the urging for the resolution on the Middle East agreed on the 5th Review and Extension Conference of the NPT; iv) the urging for revision of the role of nuclear weapons in nuclear-weapon states’ military doctrines, v)  the denunciation of the imminent risk of an accidental nuclear detonation; and vi) the contestation of its asymmetries due to the lack of implementation of previously agreed upon disarmament-oriented measures. In addition, the proposition of measures to improve the regime, in particular the fulfillment of the nuclear-weapon states obligations, has also been present in all administrations since 1998. More recently, since the Dilma Rousseff administration, the enunciation of the humanitarian cost of nuclear weapons has been gaining importance.

Considering this new context in which the 10th RevCon will take place, what should be expected in relation to Brazil’s position in the conference? Similar to the Brazilian positions in the previous conferences, it is believed that in this RevCon the country will probably reproduce its consolidated position on recurring issues, by keeping a demanding rhetoric toward the nuclear-weapon states , while defending the access to the technological development of the non-nuclear-weapon states . Meanwhile, on the AUKUS issue, Brazil might try to maximize the effects of the precedent for its own interests, as it is probably the most impactful issue for the country expected to be addressed at the conference. Brazil shall observe carefully how the US will stand regarding this issue since it has been against the Brazilian program. Brazil could explore this contradiction. Conversely, the AUKUS may set an unfavorable precedent for Brazil in relation to joining the IAEA Model Additional Protocol, to which Australia has already adhered and Brazil resists. In general, the trend is toward  regression in relation to nuclear disarmament and non-proliferation measures, following a  change in the priority of the great powers, with an emphasis on security issues motivated by the containment strategy of China and the Russo-Ukrainian war.

[3] Meetings that precede the Review Conferences.

* Doutoranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e bolsista CAPES/BRASIL no projeto 88887.387832/2019-00.

** Mestre em Estudos Estratégicos (Inest-UFF). Secretário adjunto do Centro de Estudos sobre China Contemporânea e Ásia (CEA/Inest-UFF).

Imagem: Assembleia Geral da ONU, 2018. Por Trump White House Archived/Flickr.