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Vivendo em unidade: o que esperar da presidência brasileira do BRICS

No dia 3 de janeiro de 2025, o pesquisador Pérsio Glória de Paula, membro do Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético (CIRE) e pesquisador sênior do grupo de avaliação econômica do Colégio Naval Brasileiro, analisou no Izvestia (Известия) as perspectivas da presidência brasileira do BRICS.

Pérsio destacou que o Brasil deve focar na adaptação dos países recentemente aderidos ao bloco e na consolidação da nova categoria de parceiros. Além disso, ele ressaltou que a presidência brasileira provavelmente buscará atrair atenção para a necessidade de uma reforma global do Conselho de Segurança da ONU, defendendo maior representatividade do Sul Global, incluindo o Brasil.

O especialista também apontou que o país deverá aprofundar as iniciativas lançadas pela Rússia, como a criação de uma plataforma única de pagamentos baseada nas moedas nacionais dos membros do BRICS.

Para saber mais, clique aqui: Como o BRICS poderá mudar em 2025 sob a presidência brasileira.

Reunião cancelada por Zelensky com países latino-americanos é reflexo da falta de apoio a Kiev

No dia 18 de setembro de 2024, Maria Eduarda Carvalho de Araujo e Getúlio Alves de Almeida Neto, membros do Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético (CIRE), comentaram sobre o cancelamento da reunião planejada por Volodymyr Zelensky com líderes latino-americanos, que ocorreria em paralelo à Assembleia Geral da ONU, em Nova York. A decisão de Zelensky de cancelar o evento, devido ao baixo número de confirmações de presença, reflete uma tendência crescente na América Latina e no Sul Global de adotar uma postura neutra diante do conflito entre Ucrânia e Rússia.

Para acessar a notícia, clique aqui: Reunião cancelada por Zelensky com países latino-americanos é reflexo da falta de apoio a Kiev

A atuação da ONU no conflito entre Rússia e Ucrânia

Kimberly Alves Digolin*

 

No dia 24 de fevereiro de 2022, um vídeo do presidente Vladimir Putin anunciou que a Rússia conduziria uma “operação militar especial” na região leste da Ucrânia, dando início a um conflito que já resultou em mais de 5,5 milhões de refugiados. Não bastasse a magnitude do ato em si, é importante também ressaltar os detalhes que envolveram esse anúncio. No momento em que a gravação de Putin era divulgada, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) – do qual a Rússia é membro permanente – reunia-se justamente com o propósito de buscar uma solução diplomática para as tensões bilaterais. Em outras palavras, o anúncio de Putin desferiu um golpe duplo: por um lado, à soberania da Ucrânia; por outro, à credibilidade da Organização das Nações Unidas (ONU). Esse cenário nos leva à questão norteadora do presente texto: quais as limitações da atuação da ONU no conflito russo-ucraniano?

Criada ao fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, o principal objetivo da ONU é garantir a manutenção da paz e da segurança internacional. Para isso, entre outros órgãos e departamentos subsidiários, a estrutura da organização inclui: um órgão deliberativo composto por todos os Estados membros, intitulado Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU); o Conselho de Segurança, único órgão com poder decisório formado por cinco membros permanentes com poder de veto, e dez membros não-permanentes com mandatos bianuais[1]; a Corte Internacional de Justiça (CIJ), principal órgão judiciário da Organização composto por quinze juízes; e o Secretariado, que presta serviço aos demais órgãos das Nações Unidas, administrando as políticas e os programas elaborados.

Trata-se, portanto, de uma organização intergovenamental de adesão voluntária que “representa o ápice do processo de institucionalização dos mecanismos de [cooperação e] estabilização do sistema internacional” (HERZ; HOFFMAN, 2004, p. 29), uma vez que possui 193 Estados membros e que está no centro dos debates internacionais sobre temas como proliferação nuclear, direitos humanos, desenvolvimento sustentável, entre outros. Porém, a despeito dessa estrutura tão consolidada e de sua legitimidade perante a sociedade internacional, o conflito entre Rússia e Ucrânia deixou à mostra diversas limitações.

Após a invasão russa da Ucrânia, a primeira ação da ONU foi convocar uma reunião emergencial do Conselho de Segurança no dia 25 de fevereiro para debater a questão. Contudo, o rascunho de resolução condenando a invasão da Ucrânia foi vetado pela Rússia, contando com abstenções de China, Emirados Árabes Unidos e Índia. Em seguida, utilizando um recurso intitulado “Uniting for Peace[2] (“Unindo-se pela Paz”, em tradução livre), o Conselho de Segurança convocou uma reunião extraordinária da Assembleia Geral das Nações Unidas para debater o conflito, a qual, no dia 2 de março, aprovou uma resolução conjunta condenando a investida russa com 141 votos a favor, 5 contra e 35 abstenções.

No âmbito da Corte Internacional de Justiça, foi divulgado no dia 16 de março o resultado da investigação sobre os possíveis crimes de guerra no conflito entre Rússia e Ucrânia. Ao apontar que não haveria provas de que a Ucrânia tivesse cometido ou planejado ataques que pudessem ser considerados crimes contra a humanidade, como argumentou a Rússia para legitimar a invasão, o parecer incluiu a decisão que o governo russo deveria suspender imediatamente suas ações militares em território ucraniano. O documento teve 13 votos favoráveis e 2 contrários, da Rússia e da China.

Uma nova resolução foi adotada pela AGNU no dia 24 de março, culpando a Rússia pela crise humanitária em curso. O documento foi elaborado pela Ucrânia e seus aliados e recebeu 140 votos a favor, 5 votos contra e 38 abstenções. Duas semanas depois, a partir de uma proposta estadunidense votada durante reunião da AGNU no dia 7 de abril, a Rússia foi expulsa do Conselho de Direitos Humanos da ONU[3] com 93 votos a favor, 24 contra e 58 abstenções. O único antecedente de um país expulso de algum Conselho da ONU ocorreu em 2011, envolvendo a Líbia. Além disso, destacam-se as viagens do secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, para Kiev e para Moscou – onde debateu propostas para a evacuação segura de civis e a entrega de ajuda humanitária.

Essa breve linha do tempo com as ações adotadas demonstra duas principais limitações em torno da atuação da ONU. A primeira diz respeito aos entraves que a Organização encontra ao se deparar com conflitos que envolvem as grandes potências com assento permanente no CSNU. E a segunda limitação, que está intrinsecamente associada à primeira, diz respeito à forma como interesses individuais de alguns Estados membros acabam por dificultar a atuação da Organização, tornando-a parcial e controversa. Em outras palavras, se o século XXI foi marcado por diversos conflitos – tão ou ainda mais violentos –, por que eles não foram alvo de tamanha mobilização onusiana como o caso da Ucrânia?

Ao ser criada com o objetivo de evitar uma nova guerra de grandes escalas, a estrutura da ONU foi moldada em torno do princípio de segurança coletiva e contenção mútua. Para isso, as grandes potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial e, portanto, com capacidade para iniciar novos conflitos de escala global foram alocadas em um órgão decisório com poder de veto, de modo que fossem capazes de impedir uma eventual tentativa de desestabilização da ordem internacional. Entretanto, é essa mesma estrutura que dificulta o debate coletivo em temas que envolvem de modo mais direto os interesses desses cinco países.

Para exemplificar esse argumento, basta resgatarmos o veto da Rússia na primeira reunião extraordinária do CSNU que debateu a invasão da Ucrânia, seu não-comparecimento à audiência da CIJ ou mesmo a ameaça que Moscou realizou ao afirmar que os países que votassem a favor de sua expulsão do Conselho de Direitos Humanos da ONU sofreriam retaliações – o que, inclusive, pode nos ajudar a compreender o alto número de abstenções em torno dessa votação na AGNU. Em contraponto, situar o conflito russo-ucraniano em um quadro mais amplo de disputa hegemônica nos ajuda a compreender de modo mais contundente os interesses estadunidenses e, por consequência, dos países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

Essas limitações suscitam críticas em torno da eficácia da ONU em garantir a manutenção da paz e da segurança internacional. Entre elas, podemos apontar que a própria estrutura da Organização representa uma cristalização da divisão de poder internacional, reforçando seu caráter excludente. A falta de representatividade no CSNU é alvo de contestações e envolve demandas frequentes por uma reforma que inclua membros permanentes da América Latina e da África, por exemplo. Além disso, a padronização de condutas a serem adotadas pelos países é associada a uma espécie de “ocidentalização da política internacional”, a qual mobiliza os mecanismos da ONU em casos que interessam aos Estados ocidentais – especialmente Estados Unidos e países da Europa –, mas dificulta o acionamento desses mesmos mecanismos nos casos em que a narrativa de violação aos direitos humanos vai contra os interesses dessas potências.

Nesse sentido, o aparato da ONU “pode ser interpretado tanto como uma ferramenta para a construção de uma sociedade mundial mais justa, quanto como um instrumento que legitima e justifica as assimetrias do sistema internacional” (REIS, 2006, p. 41). Como exemplo dessa instrumentalização dos mecanismos por parte das grandes potências, podemos citar as violações aos direitos humanos perpetradas pela Arábia Saudita – parceiro dos Estados Unidos –, mas que não foram objeto de tanta atenção internacional ou mesmo de resoluções mais taxativas condenando as ações do governo saudita.

No entanto, embora as críticas sejam legítimas e necessárias, é importante não perder de vista o papel fundamental que a ONU desempenha. Partindo do pressuposto de que a política internacional não é feita apenas pelas capacidades materiais, mas também de normas, ideias e simbolismos, a existência de organizações internacionais como a ONU representa uma série de importantes constrangimentos para os Estados que planejam se utilizar da violência para alcançar seus interesses. Embora muitas das resoluções e decisões adotadas no âmbito onusiano não subtraiam a soberania dos países, ou seja, não sejam obrigatórias, elas desempenham um importante papel nas relações internacionais, pois seu desrespeito pode gerar sanções dos mais diversos tipos. Lopes (2007) define essa autoridade da ONU como a capacidade que o aparato administrativo possui para inspirar confiança em indivíduos e Estados-membros por meio de suas ideias e ações, fazendo com que ocorra adesão às normas diretivas da Organização.

Lopes também argumenta que a autoridade da ONU não poderia ser refutada pela ocorrência de novos conflitos, mas que deveria, em realidade, ser reafirmada pelo fato de a Organização ter conseguido evitar até o presente momento uma Terceira Guerra Mundial. Ao resgatar o preâmbulo da Carta de São Francisco – que se inicia com a célebre expressão “Nós, os povos das Nações Unidas” – o autor argumenta que a proposta de manutenção da paz ali expressa “significava impedir a ocorrência de uma terceira guerra em que estivessem envolvidas as grandes potências mundiais – e não, como algumas análises querem fazer crer, impedir qualquer novo confronto internacional” (LOPES, 2007, p. 50). Embora seja importante pontuar que o atual cenário de invasão da Ucrânia se mostra particularmente desafiador para a ONU, uma vez que o próprio ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, afirmou que existe um sério risco de ocorrer uma Terceira Guerra Mundial caso os países membros da OTAN continuem oferecendo armamentos para a Ucrânia.

Por fim, para além da pressão política, a ONU também desempenha um papel fundamental no apoio às vítimas, na investigação de eventuais violações e mesmo em eventuais mediações de cessar-fogo ou resolução do conflito. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), por exemplo, tem como principal função prestar assistência aos refugiados e pessoas que foram obrigadas a deixar suas cidades por conta de guerras, conflitos ou perseguições. A ajuda aos civis vítimas do conflito entre Rússia e Ucrânia passa em grande parte por essa estrutura, tanto no que se refere às normas legais que orientam as ações dos Estados no acolhimento dessas pessoas, quanto na coleta de dados e na rede de apoio propriamente dita. Em suma, embora o figurino demande atenção, o papel da ONU segue necessário na complexa peça de teatro da política internacional.

* Kimberly Alves Digolin é professora de Relações Internacionais na Universidade Paulista (UNIP), mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), especialista em Docência para o Ensino Superior, e pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

Imagem: Volodymyr Zelensky em reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Por: Manhhai/ Flickr CC.

[1] Os membros permanentes do CSNU são: China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia. Os atuais membros não-permanentes são: Albânia, Brasil, Gabão, Gana, Emirados Árabes Unidos, Índia, Irlanda, Quênia, México e Noruega.

[2] Convocar reuniões extraordinárias da AGNU foi um recurso muito utilizado durante a Guerra Fria, por conta da “política de travamento” que caracterizou o CSNU em meio às tensões entre Estados Unidos e a antiga União Soviética. Além disso, também foi utilizado em algumas ocasiões para debater o conflito entre Israel e Palestina.

[3] É importante destacar que, no dia 4 de março, foi criada uma comissão internacional independente de inquérito no âmbito do CDH da ONU para verificar violações aos direitos humanos durante o conflito entre Rússia e Ucrânia.

Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher: origens, avanços e retrocessos na América Latina e no Brasil sob a pandemia (Parte I)

Gabriela Aparecida de Oliveira *

Maria Eduarda Kobayashi Rossi **

 

O Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra a Mulher (25 de novembro) foi instituído em 17 de dezembro de 1999, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, e homenageia as irmãs Pátria, Minerva e Maria Teresa Mirabal. Elas foram assassinadas por seu ativismo contra a ditadura de Rafael Leónidas Trujillo (1930-1961), na República Dominicana. A criação da data pode ser vista como um reflexo dos esforços de movimentos feministas, os quais objetivam operacionalizar transformações sociais pelo fim da violência de gênero ⎼ que atinge não apenas mulheres e meninas, mas também homens, meninos e a população LGBTQIA +.

O contexto de sua criação foi marcado por uma série de avanços sobre as questões de gênero na agenda internacional. Destaca-se, em ordem cronológica: a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw, 1979), a Declaração sobre Eliminação da Violência Contra a Mulher (1994), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994), a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim (1995), bem como a elaboração da Resolução 1325/2000. Essa última originou a Agenda Mulheres, Paz e Segurança, ressaltando a necessidade da participação de mulheres nos espaços políticos, nos processos de resolução de conflitos e construção da paz.

Desde sua origem, a data objetiva mobilizar a consciência social crítica, estimulando a efetivação de projetos, políticas públicas e planos de ação nacionais para prevenir as violências contra as mulheres e meninas, bem como proporcionar a igualdade de gênero na política[1]. Incentiva-se, também, a realização de pesquisas e a difusão de dados sobre o tema em questão. Vale mencionar que, no âmbito da ONU, muitos projetos são financiados pelo Fundo internacional para a eliminação da violência contra as mulheres e pelo Fundo para a Igualdade de gênero, os quais foram criados, respectivamente, em 1996 e 2009.

No Brasil, desde 1997, tais órgãos contribuíram para o financiamento de diversos projetos como o “Iyà Àgbá – Rede de Mulheres Negras Contra a Violência”, realizado pela Fundação Criola em 2005, e o projeto “Juventude e Arte para qualquer parte: pelo fim da Violência contra as Mulheres” realizado pela Casa da Mulher Trabalhadora – CAMTRA, em 2017. Além disso, há cada vez mais iniciativas que buscam envolver os homens nas ações transformativas, incentivando a construção de masculinidades positivas. Nesse sentido, uma das instituições brasileiras que mais se destacou foi o Promundo, com os projetos “Engajando Homens para Acabar com a Violência Baseada em Gênero: um Estudo de Intervenção e Avaliação de Impacto em Vários Países” (2008) e “Envolvendo os jovens para acabar com a violência contra mulheres e meninas no Brasil e na República Democrática do Congo” (2016-2017).

No ano de 2021, em homenagem às pautas trazidas pelo dia 25 de novembro, a ONU Mulheres criou a campanha “Una-se pelo Fim da Violência contra as Mulheres”, realizada entre os dias 20 de novembro e 10 de dezembro. As ações buscaram reduzir as violências que se manifestam das formas: direta (agressão física), estrutural, psíquica, sexual (como o estupro, mutilação genital), obstétrica e política. Tais violações cresceram durante o período da pandemia de COVID 19, e merecem atenção nacional e internacional. De acordo com a ONU Mulheres (2021): “A pandemia exacerbou fatores de risco para a violência contra mulheres e meninas, incluindo desemprego e pobreza, e reforçou muitas das causas profundas, como estereótipos de gênero e normas sociais preconceituosas. Estima-se que 11 milhões de meninas podem não retornar à escola por causa da COVID-19, o que aumenta o risco de casamento infantil. Estima-se também que os efeitos econômicos prejudiquem mais de 47 milhões de mulheres e meninas vivendo em situação de pobreza extrema em 2021, revertendo décadas de progresso e perpetuando desigualdades estruturais que reforçam a violência contra as mulheres e meninas”.

Na América Latina, o alto índice de violências de gênero e feminicídios – que coloca a região como o lugar mais perigoso no mundo para as mulheres – também sofreu um acréscimo durante a pandemia (TRICONTINENTAL, 2020). Em um contexto de crise econômica e ascensão de governos de direita e extrema direita na região, as violências contra mulheres e outros grupos marginalizados aumentam em número e crueldade. Observa-se, na América Latina, uma alta instabilidade política e econômica, bem como um acirramento do conservadorismo religioso (principalmente neopentecostal) e do neoliberalismo. Nesse contexto, atores de distintos perfis ideológicos coincidem no desprezo aos direitos humanos e aos tratados internacionais assinados para a garantia de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Ainda que o período anterior, marcado por governos de esquerda e centro esquerda, não tenha, necessariamente, promovido um avanço desses direitos, hoje vemos o fortalecimento da atuação de grupos conservadores religiosos e seculares. Assim, além da retirada de direitos de mulheres e outros grupos vulnerabilizados, presenciamos, em muitos países, a transformação de movimentos sociais em inimigos políticos. Como consequência, temos a deslegitimação de suas pautas e atos violentos dirigidos a ativistas (BIROLI et. al., 2020).

No Brasil, o projeto “Elas no Congresso” do Instituto AzMina, divulgou um levantamento das ações do governo de Jair Bolsonaro, constatando que os discursos misóginos, machistas, racistas e LGBTQIA+fóbicos do presidente de extrema-direita têm sido, de fato, colocados em prática. Em uma análise profunda de decretos, portarias, medidas provisórias, cartilhas de campanhas governamentais, direcionamento orçamentário, execução orçamentária e propostas legislativas, o AzMina concluiu que o ataque aos direitos das mulheres tem caracterizado as ações do atual governo.

Dentre essas ações, destacamos a perda de status ministerial por parte da antiga Secretaria de Políticas para Mulheres, a criação do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (cujos discursos restringem a concepção de “família” à família patriarcal e heteronormativa, também conhecida como “família triangular”: composta por pai, mãe e filhos, na qual a mulher deve desempenhar papéis de gênero tradicionais como cuidar da casa e dos filhos), e a extinção do programa “Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência” (que foi substituído pelo programa “Proteção à vida, fortalecimento da família, promoção e defesa dos direitos humanos para todos”). Também se destaca a má gestão dos recursos que seriam destinados às políticas voltadas para a promoção de direitos e oportunidades sociais para mulheres. Dados mostram que o governo deixou de usar um terço dos recursos aprovados entre 2019 e o primeiro semestre de 2021, uma cifra de quase R$ 400 milhões que poderiam ter sido gastos no combate à violência de gênero, incentivo à autonomia e saúde feminina.

Ainda que o panorama das lutas feministas mostrem um avanço de suas conquistas e impactos sobre a sociedade, os dados recentes deixam evidente que muitas ações e políticas públicas devem ser feitas. Nesse sentido, é importante refletir sobre o papel do Estado na promoção da igualdade de gênero. Essa questão é assunto do artigo “Reflexões acerca das raízes da violência contra as mulheres e a questão do Estado” (clique aqui para ler!).

 

* Mestranda em Paz, Defesa e Segurança Internacional pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e pesquisadora do IARAS – Núcleo de Estudos de Gênero do GEDES.

** Graduanda em Relações Internacionais pela UNESP, bolsista FAPESP (processo 2021/04480-3).

Imagem por: UN WOMEN.

 

[1] Sobre este tema, é importante ressaltar  que a ONU Mulheres da América Latina e Caribe publicou, em 2020,  o documento “Rumo à paridade e à participação inclusiva na América Latina e no Caribe”, o qual foi elaborado em preparação para a 65º Comissão da ONU sobre a Situação da Mulher (CSW), trazendo avanços e desafios sobre a participação das mulheres em espaços públicos. Além disso, em 2020, a ONU esquematizou um mapa sobre a participação das mulheres na política, o qual pode ser consultado pelo link: <https://lac.unwomen.org/en/digiteca/publicaciones/2020/03/women-in-politics-map-2020>. Acesso em dezembro de 2021.

 

A condenação de Bolsonaro na ONU pela exposição de crianças

Giovanna Ayres Arantes de Paiva*
Texto publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil.

 

No dia 5 de outubro, o Comitê dos Direitos da Criança – órgão das Nações Unidas que monitora o cumprimento da Convenção sobre os Direitos da Criança –condenou o uso de crianças fardadas em eventos políticos promovidos pelo presidente Jair Bolsonaro. Em comunicado enviado à imprensa brasileira, o Comitê alertou que a exposição de crianças a essas situações viola os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e deve ser criminalizada. O posicionamento da ONU ocorreu depois que oitenta entidades de direitos humanos denunciaram Bolsonaro ao Comitê, após imagens do presidente segurando uma criança fardada circularem na mídia. As fotos foram registradas em evento da Polícia Militar, no dia 30 de setembro, em Belo Horizonte. Na ocasião, Bolsonaro colocou ao seu lado uma criança de 6 anos que usava uma farda policial e portava uma arma de brinquedo. O presidente chegou a erguer a criança acima de seus ombros, posar para fotos e parabenizar os pais do menino pelo exemplo de patriotismo e civilidade.

Dois fatores centrais nesse episódio chamam atenção: o uso político de crianças no governo Bolsonaro e os argumentos que a ONU utilizou ao formular sua resposta.

No que concerne ao primeiro fator, pode-se afirmar que o presidente vem, repetidamente, associando crianças a atividades militares e policiais como parte da promoção de sua agenda política. Em abril deste ano, Bolsonaro realizou atitude semelhante ao pegar no colo uma criança fardada e com um fuzil de brinquedo, durante evento em Manaus. Em outubro de 2019, em cerimônia da Polícia Militar em São Paulo, o presidente exaltou, posou para fotos e mostrou aprovação diante de uma criança fardada, segurando uma réplica de uma arma. Em 2018, durante campanha presidencial, Bolsonaro já demonstrava apologia à associação entre crianças, armas e violência: ao pegar uma criança no colo, o presidente a fez imitar uma arma com as mãos. Também em 2018, o político criticou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), afirmando que este deveria ser “jogado na latrina”, pois incentivaria a “vagabundagem infantil”, em referência aos direitos que o documento garante como liberdade, educação, lazer, respeito e dignidade.

Em todas essas situações, as crianças são colocadas como símbolos da propaganda de uma agenda política voltada para o discurso de ódio e de incentivo à violência. As crianças também simbolizam as futuras gerações e o futuro de um país. De certa forma, a imagem da criança nesses contextos representa a imagem de um futuro violento e militarizado. Esses episódios recorrentes no governo Bolsonaro expõem as crianças a situações constrangedoras em ambientes adultos e relacionados à glorificação da vida militar e policial. Durante o acontecimento do dia 30 de setembro, por exemplo, Bolsonaro procurou naturalizar a associação entre crianças e armamentos, declarando na ocasião: “Quando eu era moleque, eu brincava com isso: arma, flecha, estilingue. Assim foi criada a minha geração e crescemos homens, fortes, sadios e trabalhadores”. Nessa passagem fica explícita a conexão feita entre um padrão de comportamento infantil voltado para a disciplina, masculinidade e violência e a produção de uma geração de homens que se encaixa no ideal de patriotismo deste governo.

Com relação ao segundo fator – a resposta da ONU – é interessante notar que o Comitê repudiou “o uso de crianças em quaisquer atividades relacionadas a conflitos e a produção e disseminação de imagens de crianças envolvidas em hostilidades reais ou simuladas”, visto que tais ações contrariam tratados internacionais que resguardam os direitos das crianças, das quais o Brasil é signatário. Mais especificamente, as Nações Unidas fazem referência ao “Protocolo Facultativo da Convenção sobre os Direitos da Criança relativo ao envolvimento de crianças em conflitos armados”, de 2002. Tal documento, assinado e ratificado pelo Brasil, conclama os Estados a tomarem todas as medidas possíveis para que menores de 18 anos não participem de hostilidades (art. 1) e para que não sejam recrutados compulsoriamente nas forças armadas (art. 2).

O documento foca essencialmente em contextos de hostilidades e conflitos armados e não faz menção explícita à utilização de imagens de crianças fardadas ou portando armas. Ao ressaltar que a divulgação dessas imagens pode ser um incentivo à participação de crianças em hostilidades, as Nações Unidas fazem uma leitura mais ampla do Protocolo e mostram uma abordagem mais aprofundada sobre o tema. Isto é, a ONU passa a mensagem de que a violência contra a criança pode se expressar de diferentes formas e a preocupação internacional não se refere apenas a crianças utilizadas em conflitos armados, mas a atitudes que fazem apologia a esse treinamento e recrutamento de crianças e que, consequentemente, vão contra todo o esforço internacional de proteção das crianças.

Logo, o problema extrapola a questão do envolvimento direto de crianças em atividades bélicas (na linha de batalha), portando armas reais, que configuram a típica imagem da chamada criança-soldado – geralmente associadas a Estados mais pobres que passam por conflitos armados violentos, principalmente no continente africano e em alguns países do Oriente Médio. Isso significa que o incentivo ao envolvimento de crianças em atividades bélicas não é algo distante da nossa realidade. Pelo contrário, está presente em ações cotidianas que naturalizam e exaltam a participação das crianças em ambientes que glorificam um ideal de força armada que garantiria uma suposta segurança. Está presente também na ideia de que a inserção de crianças em contextos violentos seria necessária para torná-las mais fortes e preparadas para a vida.

O posicionamento da ONU sobre o caso brasileiro abre precedentes para que a organização se manifeste de forma mais explícita em outras situações que envolvam discursos voltados para a violência contra as crianças, naturalização de crianças com armas e disseminação de imagens de crianças em atividades bélicas que ocorram em quaisquer países, sejam nações em desenvolvimento ou desenvolvidas.

As Nações Unidas ainda acrescentaram que “aqueles que envolvem crianças nas hostilidades devem ser investigados, processados e sancionados”. No entanto, não cabe ao Comitê aplicar punições. O que o órgão faz é avaliar o cumprimento dos tratados de proteção à infância assinados pelos países. O membro do Comitê dos Direitos da Criança, Luis Ernesto Pedernera, ressaltou que na última avaliação, em 2015, o Brasil mostrava avanços na adoção da Convenção sobre os Direitos da Criança, a exemplo de sua política pelo desarmamento. Nessa mesma avaliação, também havia sido recomendado que o país criasse um órgão independente para acompanhar a aplicação da Convenção. No entanto, tal iniciativa não avançou.

Na conjuntura atual, a postura da ONU é relevante e chama atenção para a necessidade de um entendimento mais profundo acerca dos documentos internacionais relativos à infância. Ainda que uma agenda de proteção da criança já esteja estabelecida em âmbito internacional, é necessário acompanhar sua adoção nos diferentes países signatários e até mesmo sugerir revisões, com base nos desafios contemporâneos. A menção que o Comitê fez ao uso de imagens de crianças fardadas e envolvimento de crianças em hostilidades simuladas são exemplos de desafios atuais que precisam ser melhor especificados e contemplados pelas Nações Unidas e Estados. Paralelamente, houve uma relativa demora para a ONU assumir um posicionamento mais rígido, haja vista que o governo Bolsonaro já vinha mostrando desprezo pelos direitos das crianças desde sua campanha presidencial e a organização só se posicionou após pressão da sociedade civil brasileira.

Pensando no próximo ano, é provável que imagens de crianças fardadas e com armas sejam usadas no contexto de campanha presidencial do atual governo para se comunicar com uma parte do eleitorado. Não somente imagens, mas falas, ações e discursos de ódio que expõem crianças a situações degradantes e desafiam a integridade infantil também podem ser ferramentas utilizadas com o objetivo de se manter no poder. É preciso atentar para que essas violações – que já se tornaram cotidianas – não sejam ainda mais naturalizadas, pois desafiam décadas de trabalho para consolidar a criança como cidadã e sujeito de direitos.

 

* Giovanna Ayres Arantes de Paiva é doutora em Relações Internacionais (PPGRI “San Tiago Dantas” – Unesp/Unicamp/Puc-Sp) e pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e da Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança (PCECS). É autora do livro Crianças e (in)segurança: a construção de narrativas sobre crianças-soldado na agenda internacional.

Imagem: Imagem comemorativa dos 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança. UN Photo/Mark Garten.

 

Qual deve ser a face da ONU? – O 2º mandato de Guterres e as reivindicações por maior representatividade e democratização das Nações Unidas

Raquel Gontijo* 

O atual Secretário Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, cujo primeiro mandato se encerra em 31 de dezembro deste ano, foi renomeado pelo Conselho de Segurança (CSNU) e pela Assembleia Geral (AGNU) para cumprir um segundo mandato de 5 anos, de modo que ficará no cargo até o fim de 2026. Apesar de ter sido aclamado por unanimidade pelos 15 membros do CSNU, o que demonstra sua habilidade política na condução das atividades da organização, a renomeação de Guterres deixa insatisfeitos alguns movimentos da sociedade civil que reivindicam maior representatividade e democratização da ONU.

Os anos 2000 trouxeram uma “virada transnacional” nas estruturas de governança global, em um processo que, cada vez mais, permite a participação de atores da sociedade civil nos fóruns e organizações internacionais. Redes de advocacy como a Campanha Internacional para Banimento de Minas Terrestres (ICBL) e a Campanha Internacional para Proibição de Armas Nucleares (ICAN), por exemplo, ganharam grande visibilidade e alcançaram significativa capacidade de mobilização da opinião pública e de governos na promoção de agendas de governança em formato bottom-up, ou seja, a partir de demandas sociais. Essa crescente participação de atores da sociedade civil global nas estruturas de governança trouxe consigo novas pautas e reivindicações políticas, dentre as quais inclui-se uma demanda por maior transparência no processo de nomeação do Secretário Geral das Nações Unidas (SGNU).

Esse processo é tradicionalmente cinzento. Cabe ao CSNU indicar um candidato, que deve então ser aceito e nomeado oficialmente pela AGNU. Apesar de ser usual o uso da palavra “eleição”, não se trata de um processo exatamente eleitoral, mas de uma seleção feita tradicionalmente atrás dos panos, e sob forte influência das grandes potências, particularmente dos 5 membros permanentes do Conselho de Segurança (P5) – China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia. Até a década de 2000, era relativamente comum que não houvesse transparência a respeito de quais nomes estavam sendo cotados para o cargo até o momento em que o CSNU fizesse sua indicação oficial sendo sempre um nome considerado aceitável por todos os P5 que têm direito de veto no processo. A opacidade do processo levantou frequentemente suspeitas de acordos a portas fechadas e arranjos de quid pro quo entre as grandes potências. De fato, é notável o excesso de representação de alguns países entre os cargos de maior escalão do Secretariado da ONU. Assim, pessoas que desejem chegar às mais elevadas posições de liderança na ONU devem adotar uma postura alinhada aos interesses de alguns Estados específicos: atualmente, Estados Unidos, Rússia e China, em especial.

Diante disso, na década de 2010, uma campanha internacional para reforma desse processo “eleitoral” ganhou força a partir de movimentos da sociedade civil, como a rede de advocacy “1 por 7 bilhões”. Dentre as questões levantadas por esses movimentos, destacam-se as seguintes reivindicações:

  • Maior clareza nos critérios de nomeação do SGNU, fim dos acordos a portas fechadas, e maior representatividade nacional, étnica e de gênero nos cargos de alto escalão;
  • Alteração da duração do mandato de 5 para 7 anos, sem possibilidade de renomeação, de modo a evitar que o SGNU em exercício se renda às pressões dos P5 para buscar garantir um segundo mandato;
  • Envio pelo CSNU de mais de um candidato à AGNU, para que este órgão, que engloba todos os Estados membros das Nações Unidas com igual direito de voto, possa realmente eleger o Secretário Geral.

Em decorrência desses movimentos, em 2015 foi aprovada uma resolução na AGNU (69/321), que, dentre outras questões, tratou da promoção de maior transparência na nomeação do SGNU. Dentre as determinações dessa resolução, incluíam-se um apelo aos Presidentes da AGNU e do CSNU para abrir uma chamada para que os Estados membros possam indicar candidatos; divulgar amplamente os nomes das pessoas que estejam sendo consideradas para o cargo; promover diálogos e reuniões públicas com os candidatos; e buscar uma representação equilibrada em termos de gênero e distribuição geográfica. No entanto, algumas das principais reivindicações das redes de advocacy, como o fim da possibilidade de renomeação e a indicação de mais de um candidato pelo CSNU, para que possa haver de fato um processo eleitoral, sequer foram consideradas seriamente nos debates sobre a questão.

A despeito das limitações do documento, as determinações dessa resolução permitiram que o processo de seleção do SGNU em 2016 tivesse um caráter mais aberto a aparentemente democrático do que ocorria até então. Aquele foi o primeiro ano em que houve uma forma de “campanha eleitoral”, e os indivíduos indicados oficialmente por Estados membros apresentaram suas propostas e plataformas, e responderam a perguntas e questionamentos levantados tanto por representantes oficiais dos Estados quanto por grupos da sociedade civil. Ao fim do processo, António Guterres foi indicado pelo CSNU e nomeado pela AGNU para ocupar o cargo de Secretário Geral. Essa nomeação, apesar de bem recebida pela comunidade das Nações Unidas, foi também criticada por reproduzir os padrões tradicionais do alto escalão do Secretariado: homem, branco, europeu, de idade já avançada[1]. De fato, havia forte expectativa de que, em 2016, fosse eleita a primeira mulher para o cargo de SGNU, algo que havia sido sugerido na resolução 69/321 da AGNU, e em falas do Secretário Geral anterior, Ban Ki-Moon, e que parecia provável diante das fortes candidatas que foram indicadas no processo, como Helen Clark, ex-primeira-ministra da Nova Zelândia, e Christiana Figueres, importante liderança nas negociações do Acordo de Paris de 2015.

As questões levantadas no último processo eleitoral retornaram em 2021, quando a ONU iniciou a preparação para o fim do 1º mandato de Guterres. Mas, apesar dos aparentes avanços de 2016, o processo deste ano deixou muito a desejar perante os movimentos da sociedade civil e demonstrou um retorno aos tradicionais procedimentos pouco democráticos da organização. Apesar de algumas pessoas terem se colocado como candidatas informais do processo, e mobilizado bases de apoio de movimentos sociais, o único que obteve endosso oficial de um governo e, portanto, pôde concorrer oficialmente ao cargo foi o próprio Guterres. A campanha internacional Forward, por exemplo indicou Rosalía Arteaga, ex-presidente do Equador, como sua candidata, mas a política não obteve endosso oficial de nenhum Estado membro. O mesmo ocorreu com Arora Akanksha, jovem de 34 anos e auditora da ONU, cuja plataforma de campanha foi fortemente crítica da atual estrutura discriminatória e ineficiente do Secretariado da ONU e baseada na defesa não só de maior inclusão em termos de gênero, mas também de idade.

Sem dúvida, é possível afirmar que há insatisfação de movimentos sociais em relação ao perfil burocrático e político do Secretariado da ONU. Mas, a fim de brevíssima reflexão, cabe talvez questionarmos se uma reforma democrática dessas estruturas seria realmente desejável. Não há uma resposta simples ou correta para essa pergunta. Parece claro, por um lado, que crescentemente o termo “multilateralismo” tem sido empregado com conotações de inclusão e representatividade, de modo que as tendências recentes de maior participação social nos fóruns internacionais dificilmente poderão ser revertidas sem consequências graves para a legitimidade dessas instituições. Nesse sentido, é natural que os novos atores envolvidos nessas dinâmicas políticas demandem maior transparência e maior acesso de grupos diversos aos altos cargos da estrutura burocrática. No entanto, por outro lado, não à toa a estrutura da ONU foi concebida com um caráter assimétrico e discriminatório. Não é do interesse das maiores potências do sistema internacional participar de uma organização que não reflita as relações de poder que as beneficiam; ou seja, um Secretariado representativo, democrático e mais autônomo poderia ser uma ameaça à promoção dos objetivos de países como Estados Unidos, Rússia e China.

Em termos ideais, é inegável que democracia e representatividade são desejáveis. Contudo, em termos realistas, a sociedade internacional provavelmente não se beneficiaria de um esvaziamento do Sistema ONU, que poderia decorrer de reformas profundas em seus processos e do consequente afastamento das grandes potências. É evidente que a ONU falha em muitos sentidos. Mas, na ausência de uma alternativa realmente viável, ela ainda é uma das melhores ferramentas para a promoção da cooperação internacional em diversas áreas temáticas. E, para que a organização funcione bem, é indispensável a presença e participação dos Estados com maiores recursos de poder, de modo que é esperado que qualquer tentativa de reforma encontre forte resistência. Enfim, cabe à sociedade internacional como um todo, e à comunidade burocrática das Nações Unidas em particular, questionarem-se repetidamente: qual é a ONU que desejamos, e qual é a ONU que podemos ter?

[1] Dos 9 Secretários Gerais que tivemos até hoje, todos são homens, Guterres é o 4º europeu, e a média de idade no momento de nomeação é de 58 anos.

 

Raquel Gontijo é docente do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas e pesquisadora do GEDES.

Imagem: Nomeação de Guterres para segundo mandato como Secretário Geral. Por: UN Photo.

Entre dos pandemias: la ONU ante la violencia de género y la covid-19

Cristian Daniel Valdivieso [1]

Joyce Miranda Leão Martins [2]

 

En noviembre de 2018, el Secretario General de las Naciones Unidas, António Guterres, mencionaba, por motivo de la celebración del Día Internacional para la Eliminación de la Violencia Contra la Mujer, que la violencia contra las mujeres y las niñas es una pandemia. El actual máximo representante de la ONU ha apelado de forma incesante para la necesidad de promoción de medidas que permitan hacer de la igualdad de género una realidad consolidada en el respeto, la solidaridad y el trabajo conjunto entre representantes, ciudadanos y ciudadanas de los países del sistema internacional. El uso del término género, que indica la distinción entre condicionamientos biológicos de construcciones sociales, enseña que la institución cree que el enfrentamiento de esa pandemia también pasa por el combate a los simbolismos prejudiciales.

La enfermedad diagnosticada hace dos años por Guterres se ha agudizado con la llegada de otra pandemia, la Covid-19. Pese a que la propagación del virus y el prolongado impacto económico, ya evidente en todas las latitudes del planeta, son actualmente los grandes faroles de atención internacional, se acumulan víctimas invisibles de la violencia de género. Datos de la organización ONU Mujeres indican que la violencia de género se ve agravada por el confinamiento.

En estos momentos de resguardo social, los efectos psicológicos de la pandemia pueden resultar en el incremento de variados tipos de violencia, incluso la física. A esto se acompaña la ausencia de mecanismos de denuncia de casos de violencia familiar. En países como Argentina, Brasil, Colombia y México, la violencia contra las mujeres incrementó entre 30% y 50%. Asimismo, en Ecuador y Honduras, los hogares provisorios de acogida a mujeres maltratadas quedaron abarrotados, y los mecanismos de ayuda telefónica o virtual se han visto anulados por la inevitable presencia de los agresores en los hogares. Casos como Colombia, con más de 300 feminicidios entre enero y mayo, y Chile, con un aumento del 500% de pedidos de socorro por violencia de género, son el reflejo de la realidad regional.

En Argentina, Chile y España, los gobiernos han recurrido a la creación de códigos secretos, como el pedido de la “mascarilla 19” o “el tapabocas rojo” en farmacias, para que las víctimas puedan denunciar a sus agresores de forma segura y accionar efectivos policiales. Entretanto, ¿qué acciones están siendo promovidas por organizaciones internacionales para reforzar el combate a la violencia de género?

En primer término, es importante destacar que las acciones internacionales en función de la lucha por la igualdad de género comenzaron de forma tardía. Las convenciones de la ONU iniciaron solo en 1975, en las cuales, por motivo del Día Internacional de la Mujer, se organizó la Primera Conferencia Mundial sobre la Mujer, en México, y se promovió una agenda permanente para eliminar la discriminación contra la mujer y promover la igualdad de género. Como consecuencia de ello, uno de los principales marcos de la historia contemporánea a respecto de este tema es la resolución 1325 del Consejo de Seguridad que, buscando la igualdad e inclusión real en actividades político-sociales, insta a que las mujeres sean apoyadas por sus respectivo Estados en funciones de promoción de la paz en toda la verticalidad de sus jerarquías.

Como bien indica el art. 1 de la Carta de la ONU, de 1945, el objetivo principal de la institución es “mantener la paz y la seguridad internacionales”, meta irrealizable sin la igualdad, que involucra justicia y representación política, como señala Nancy Fraser. El art. 8 de la misiva reza que no se establecerá restricciones para la participación de mujeres y hombres en la ONU, respetando condiciones de igualdad de género. Sin embargo, la realidad muestra la existencia de brechas que denuncian por sí mismas la desigualdad en el propio seno de la entidad.

En el mismo año en que Guterres denunciaba la violencia de género como una pandemia, se anunciaba que, por primera vez en la historia de la institución, los altos cargos del organismo alcanzaban la paridad entre hombres y mujeres. Esto es evidencia de que, si bien la lucha por la igualdad está ocurriendo, lo hace a paso lento. Además, como la realidad lo refleja, la escaza divulgación mediática de este acontecimiento inédito refleja el bajo grado de relevancia que se otorga a estos temas a nivel internacional.

En segundo término, y bajo este crítico escenario de pandemias, la ONU y sus Estados-miembros enfrentan un complejo rompecabezas. La coyuntura demanda la reestructuración de los mecanismos que hasta ahora han permitido dar aquellos pasos lentos en favor de la igualdad. El momento exige urgencia.

Los impactos de la Covid-19, además del drástico incremento de violencia, gira en torno a aspectos económicos, profesionales, sociales y de movilidad en momentos de ampliación de flujos migratorios. Para las mujeres, dadas las condiciones de desigualdad de género, esos impactos son todavía peores: ellas ven una deterioración de sus ya precarias condiciones de vida, principalmente en lugares periféricos. Los cuerpos de salud en América Latina están constituidos en un 70% por mujeres, lo cual indica que ellas se encuentran más vulnerables en varios ámbitos, como ocurrió con el incremento de violencia hacia el personal médico en el trasporte público. Las mujeres también constituyen la principal mano de obra del subempleo, sin garantías ni resguardo de derechos. Desde otro ángulo, el trabajo no remunerado en el hogar es un peso duplicado por la presencia de sus hijos que no pueden acudir a las escuelas.

Otros impactos que se profundizan son la falta de acceso a créditos que permitan promover incentivos económicos de medios de subsistencia. La precaria situación de la mayoría de mujeres en Latinoamérica las vuelve más vulnerables en la medida en que ni siquiera poseen acceso a servicios básicos. Muchas de ellas son víctimas de explotación sexual. Aquellas que dependen de servicios públicos de salud, una grande mayoría, ven sus prioridades eliminadas. Si bien la crisis sanitaria actual demanda de esfuerzos conjuntos, el ya precario servicio de salud pública de algunos países de la región hoy se ve en la necesidad de robustecer en tiempo récord sus profundos déficits, muchas veces sacrificando la atención a gestantes.

Dado este complejo campo de batalla, ONU Mujeres ha emitido documentos que pretenden contribuir con respuestas a la crisis. Entre los puntos principales encontramos sugerencias para que los países trabajen en función de garantizar la atención reproductiva de las mujeres, sin dejar que sea una prioridad. Garantizar que las mujeres que forman parte de ese 70% del cuerpo médico latinoamericano tengan los instrumentos necesarios para enfrentar de forma adecuada la pandemia. Ese punto viene al encuentro de episodios en los cuales trabajadoras de salud han denunciado la falta de insumos para su propia protección, como ocurrió en el Ecuador.

Otro elemento es el aprovechamiento de la tecnología para facilitar la circulación de informaciones confiables que permitan que las víctimas de violencia de género encuentren vías seguras de denuncia y para prevenir el ciberacoso. Sugiere también que los datos gubernamentales en las diversas instancias político-sociales sean discriminados por sexo para que mejores políticas públicas sean destinadas de acuerdo a las necesidades y para combatir la sub-representación. Esta medida se vuelve central al momento de pensar que, conforme se aproxima la ya llamada “nueva normalidad”, es urgente que el uso de datos permita visibilizar las necesidades de mujeres que sufren de forma profunda los efectos de la epidemia de Covid-19 y para la elaboración de propuestas que permitan que ellas tengan garantías laborales, político-sociales y económicas que inclusive antes no tenían.

Por último, la ONU sugiere que los Estados promuevan políticas que permitan una división igualitaria con relación al trabajo no remunerado. Este punto refuerza la constante llamada al trabajo conjunto que realiza Naciones Unidas, pues la igualdad de género no es una tarea únicamente de las mujeres o que deba ser luchada apenas por ellas. Por el contrario, para conquistar una verdadera igualdad de género se requiere de la conciencia de hombres y de toda la sociedad para fortalecer la justicia social y aproximar a las mujeres que fueron excluidas de los contratos sociales.

Tal vez el principal enemigo de tan necesarias conquistas sea la mentalidad autoritaria, que no desea que tan antigua pandemia tenga un punto final. Que rechaza la participación de las mujeres en el espacio público y la libertad de ellas. Por eso, la lucha contra la violencia de género es también una lucha por más y mejor democracia.

El día 25 de noviembre se cumplieron 60 años que la dictadura de Rafael Trujillo, en República Dominicana, asesinó a las hermanas Mirabal, activistas contrarias a su régimen. La muerte de Minerva, Patria y María Teresa, debido a la gran conmoción que causó, fue también el inicio del fin del gobierno de Trujillo. Desde 1981, Latinoamérica conmemora el 25 de noviembre el día contra la violencia de género. Consecuentemente, marca también la lucha por igualdad y por derechos. Son justamente estos que no pueden quedar en el olvido. Aunque sean positivas las urgentes sugerencias de ONU, el reconocimiento de los derechos, y la exigencia relacionada al hecho, es fundamental para que las mujeres estén más fuertes ante otras pandemias y violencias. Para vencerlas, es preciso apresurar el paso.

 

Cristian Daniel Valdivieso es doctorando en el PPGRI San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC/SP) y investigador del GEDES; Joyce Miranda Leão Martins es doctora en Ciencias Políticas por UFRGS y investigadora de posdoctorado en PUC/SP.

 

Imagen de: Naciones Unidas.

[1] Doutorando do PPGRI San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC/SP). Membro do GEDES.

[2] Doutorada em Ciência Política pela UFRGS. Pós-doutorado em Ciência Política pela PUC/SP.

Soldados da Democracia e da Paz? Considerações sobre os efeitos da participação de militares em operações de paz sobre as relações civis-militares

Leonardo Dias de Paula, Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas e pesquisador do Gedes

 

A participação em operações de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) pode ser observada como uma função alternativa de emprego para as forças armadas. As possibilidades de profissionalização, redirecionamento do emprego das forças ao exterior, o contato com princípios democráticos e de proteção de direitos e liberdades fundamentais, contidas na interpretação convencional sobre as operações de paz, podem ser compreendidos como fatores potencialmente capazes de contribuir para a consolidação de relações entre civis e militares balizadas pelo controle das forças castrenses pelos representantes políticos eleitos.

Assim, é possível vislumbrar que o engajamento das forças armadas em missões de paz contribua para a transformação dos propósitos e valores partilhados pelas instituições militares em prol de relações civis-militares em que se verifica um consolidado controle civil sobre os militares (VELÁZQUEZ, 2010). Charles Moskos (1976) nutriu a expectativa de que a participação em operações de paz poderia modificar as interações entre militares, outros poderes políticos e a sociedade. Em síntese, a participação em operações de paz resultaria em forças militares distantes da disputa política e do desempenho de funções subsidiárias internas, e, portanto, concentradas em missões voltadas ao exterior.

No entanto, ao analisar o caso brasileiro, é possível identificar efeitos contrários a essa expectativa. A participação na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), entre 2004 e 2017, teve implicações para o emprego das forças armadas em missões internas e para o prestígio dos militares diante da opinião pública, contribuindo para seu retorno ao centro do poder. Ambos os efeitos seguem na direção oposta à consolidação de mecanismos de supervisão das forças armadas pelo poder civil.

Uma opção para iniciar esse estudo concerne à identificação das atividades desempenhadas por contingentes militares em operações de paz da ONU. Com efeito, as tarefas desempenhadas em missões de paz diferem das funções de defesa nacional, próprias às forças castrenses, ainda que ambas voltem sua face ao exterior. Observam-se, entretanto, que as operações de paz aprovadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) passaram por transformações. Enquanto as missões desdobradas no período da Guerra Fria estiveram predominantemente circunscritas a tarefas como a supervisão de acordos de cessar fogo e do movimento das partes beligerantes, os mandatos contemporâneos compreendem funções localizadas em um espectro mais extenso. Ao longo das décadas de 1990 e 2000, as operações de paz incorporaram tarefas como o suporte à distribuição de auxílio humanitário, a realização de projetos de impacto rápido, a supervisão de eleições, entre outras funções.

As atividades contidas nos mandatos de operações de paz contemporâneas, portanto, se aproximam às funções subsidiárias realizadas pelas forças castrenses. Simultaneamente, as missões desdobradas nesse período podem ser caracterizadas por sua maior permissividade ao recurso à violência como instrumento para garantir a realização dos objetivos do projeto internacional de paz. Enquanto as operações de outrora eram regidas por uma estrita limitação no uso de meios coercitivos durante a execução de suas atividades, os mandatos contemporâneos são fundamentados em uma interpretação mais flexível quanto às restrições no uso da violência para alcançar os objetivos políticos aprovados pelo CSNU para cada missão desdobrada em terreno.

A volumosa participação de militares do Exército Brasileiro na Minustah não secundou os mecanismos de controle civil sobre as forças armadas. A atuação dos contingentes brasileiros no Haiti foi caracterizada por concatenar tarefas estritamente relacionadas à esfera da segurança – como o uso da violência contra gangues e criminosos – e projetos de desenvolvimento e de distribuição de auxílio humanitário. Cerca de 37,5 mil militares do país desembarcaram no país caribenho para integrar a missão das Nações Unidas. Durante todo o período, oficiais do Exército brasileiro foram selecionados como comandantes do componente militar da missão de estabilização.

A experiência em operações urbanas adquirida no país caribenho foi relevante para a condução de missões de segurança pública em território brasileiro na forma de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). As similaridades entre as operações conduzidas em Porto Príncipe e na cidade do Rio de Janeiro foram frequentemente evocadas: as semelhanças entre as periferias de ambas as cidades – os teatros de operação para as forças armadas brasileiras; as características dos alvos das operações – grupos violentos envolvidos em atividades ilegais; as formas de engajamento, das quais se destaca a criação de bases garantidoras de domínio sobre os territórios urbanos – os “pontos fortes” do contingente militar da missão de paz e as Unidades de Polícia Pacificadora atribuídas à Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro.

A violência acentuada é também um elo que une as ações de militares brasileiros no Haiti e nas operações domésticas. Assim, é possível observar a repatriação da experiência adquirida pelas forças armadas nacionais durante a operação de paz em favor de processos de militarização da segurança pública (HARIG, 2019; MARQUES, 2018). O padrão de emprego das forças armadas que caracteriza ambos os tipos de operação desempenhadas por militares brasileiros pode ser arregimentado sob o signo da contrainsurgência, em especial por apensar o uso da violência à realização de atividades de governo dos territórios sob intervenção.

Amiúde, o prestígio auferido durante a operação de paz contribuiu para uma imagem das forças militares como garantidoras da ordem e bálsamo para a conjuntura política nacional. Mesmo se restringirmos nosso estudo à década de 2010, é possível identificar diferentes episódios em que a atuação das forças armadas, ou de membros delas, afetou a cena política brasileira. Manifestações favoráveis a uma intervenção militar na política nacional proliferaram, angariando gradativamente mais fiéis, desde o ano de 2013. Durante a greve de caminhoneiros em 2018, por exemplo, viu-se o estender de faixas clamando por um novo golpe militar; simultaneamente, as forças castrenses foram empregadas para garantir a distribuição de mercadorias essenciais e desobstruir vias em todo o território brasileiro, marchando de encontro aos interesses dos caminhoneiros em greve. Parte relevante desses pedidos esteve fundamentada em uma interpretação torpe do artigo 142º da Constituição Federal de 1988 e em uma futurologia imaginativa de ameaças à ordem.

A comunicação irascível de oficiais da reserva e da ativa das forças militares, muitas vezes realizada através de comentários curtíssimos na rede social Twitter, pressionou representantes democraticamente eleitos e membros do judiciário. Um exemplo dessa pressão pode ser observada durante o julgamento de um pedido de habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ameaçando uma intervenção em caso de uma imaginada violação da ordem e contrariedade aos anseios de parte da população. Com efeito, durante a década de 2010, sugestões de golpes militares como alternativas para imaginados casos de ameaça à lei e à ordem foram demasiadamente frequentes, indicando a fragilidade da democracia brasileira. As menções à prontidão para o serviço pulularam entre devotos do autoritarismo membros das forças armadas. Um episódio especialmente marcante foram as elegias do general Hamilton Mourão à possibilidade de golpes pelas forças armadas.

É preciso ainda destacar um evento anterior ao pleito. Candidatos de diferentes espectros político-ideológicos se submeteram a sabatinas do então comandante do Exército, general Eduardo Villas-Boas. O militar, que deveria obediência aos representantes eleitos à presidência da República, inspecionou os planos dos postulantes para a política brasileira durante um eventual mandato.

Conquanto seja possível observar a permanência dos militares em questões políticas após a transição ao regime democrático brasileiro, as eleições de 2018 representaram o retorno de militares ao centro do poder através na esfera federal. A vitória de Jair Bolsonaro resultou em uma seleção numerosa de ministros e de outros cargos relevantes oriundos da caserna. O plantel ministerial em janeiro de 2019 contava com seis membros das forças castrenses. Militares passaram a capitanear postos sensíveis às políticas de defesa, como o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e o Ministério da Defesa. Há militares em outros setores: infraestrutura, ciência, empresas estatais. As nomeações não se restringiram aos primeiros escalões do governo federal, irradiando-se por outros níveis e também através das autarquias estaduais.

Parte relevante do ministério empossado no início do ano de 2019, bem como de outros cargos relevantes da Federação, teve experiência na Minustah. Apesar das rotações no elenco, militares permanecem em postos sensíveis. Em fevereiro de 2020, com a indicação do general Walter Souza Braga Netto, os quatro ministérios que despacham da sede do poder Executivo passaram a ser ocupados por militares: três membros das forças armadas e um policial militar. O novo habitué do Palácio do Planalto fora nomeado pelo ex-presidente, Michel Temer, como interventor federal para o estado do Rio de Janeiro em 2018; depois, tornou-se comandante do Estado-maior do Exército.

Comandante do componente militar da Minustah durante o Massacre de 6 de Julho, o general Augusto Heleno tornou-se um dos homens-fortes do governo de Jair Bolsonaro. Ministro do GSI, Heleno protagonizou notícias com declarações que atentam contra a democracia. Em uma gravação transmitida através da internet, o general esbravejou que o governo não deveria aceitar negociações junto a parlamentares. A deselegância do ministro apenas coroa seu desapreço pelo regime democrático.

É preciso insistir: essa breve coletânea de eventos no Brasil contemporâneo contraria as expectativas de que a participação em operações de paz contribuiria para a consolidação de mecanismos de controle e supervisão das forças armadas de um país. Recorrer ao engajamento nesse tipo de missão como alternativa para reformar as forças castrenses e instituir formas de controle civil sobre as instituições militares é uma medida inócua na ausência de outros mecanismos de supervisão (SOTOMAYOR, 2007). Assim, a criação de instituições de controle efetivo depende de um entendimento preciso das características e prerrogativas militares, bem como do processo decisório em um Estado para que mudanças radicais nas relações civis-militares sejam planejadas e implantadas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HARIG, Christoph. Re-Importing the ‘Robust Turn’ in UN Peacekeeping: Internal Public Security Missions of Brazil’s Military. International Peacekeeping, Vol. 26, n. 2, 2019.

 MARQUES, Adriana A. Missões de paz e relações civis-militares: reflexões sobre o caso brasileiro. Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais. v. 7, n. 14. Jul/dez 2018. p. 242-262.

MOSKOS, Charles C. Peace Soldiers: the Sociology of United Nations Military Forces. Chicago: Chicago University Press, 1976.

 SOTOMAYOR, Arturo. La participación en operaciones de paz de la ONU y el control civil de las fuerzas armadas: los casos de argentina y uruguay. Foro Internacional. 2007. v. XLVII, n. 187 (1). pp. 117-139.

VELÁZQUEZ, Arturo C. Sotomayor. Peacekeeping effects in South America: common experiences and divergent effects on civil-military relations. International Peacekeeping. v. 17, n. 5. 2010. p. 629-643.

Créditos da imagem: Força Aérea Brasileira, Sgt Rezende/ Pelotão de Infantaria da FAB embarca para missão da ONU no Haiti