[elementor-template id="5531"]

Todo mundo quer um cisne negro

                                                                                   Getúlio Alves de Almeida Neto*

 

No último 23 de junho fomos pegos de surpresa por uma rebelião do Grupo Wagner, um corpo paramilitar liderado por Yevegny Prigozhin, parte importante das forças russas na Guerra na Ucrânia e também atuante em conflitos na África. O motim de aproximadamente 24 horas transcorreu a partir do avanço dos soldados do grupo Wagner ao interior do território russo, levando à tomada da cidade de Rostov-on-Don e à marcha que aproximou as tropas lideradas por Prigozhin do sul de Moscou com o intuito – até onde se sabe – de depor Sergei Shoigu, Ministro da Defesa, e Valery Gerasimov, Chefe do Estado-Maior e Comandante das forças russas na Guerra da Ucrânia. O vislumbre de que um golpe de Estado contra Vladimir Putin estaria em curso ocasionou um enorme espanto devido ao seu caráter totalmente imprevisível e até mesmo impensável. As análises que sucederam ao evento, encerrado após um acordo com o intermédio do Presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, e cujos detalhes ainda são desconhecidos, apontam com frequência que o motim é um sinal do enfraquecimento de Putin e de que seu governo estaria próximo do fim. O texto a seguir discute as análises que repercutiram os eventos e os potenciais desdobramentos envolvendo o Grupo Wagner. Devido à imprevisibilidade do que aconteceu – ou teria acontecido – o conceito de Cisne Negro, criado por Nassim Taleb, em 2007, parece interessante para análise crítica quanto a nossa percepção do evento.

Em 2007, o escritor libanês Nassim Taleb publicou o livro “A lógica do Cisne Negro: o impacto do altamente improvável”, que teve grande repercussão entre economistas. Na obra, Taleb define o conceito de Cisne Negro como um evento que possui três características: é imprevisível, ocasiona resultados impactantes e, após sua ocorrência, são geradas explicações que buscam dotá-lo de sentido e possibilitar sua compreensão, como se tivesse sido possível que já prevíssemos sua ocorrência. Acima de tudo, o livro é uma crítica à forma como nós, enquanto humanos, temos a tendência de não estarmos preparados para eventos que parecem à primeira vista impossíveis. Dessa maneira, buscamos nos aprofundar em uma área do conhecimento e traçar generalizações e padrões que nos fecham para o mundo do improvável em favor da racionalidade e da lógica que impomos ao nosso objeto de estudo, e que nos faça capazes de prever acontecimentos futuros e controlarmos os riscos. Como resultado, impomos ao mundo uma ordem organizadora maior do que ele realmente possui.

Dois anos após o lançamento do livro, o cientista político Robert Jervis (2009) publicou um artigo sobre as possibilidades e limitações do uso do conceito de Cisne Negro para o campo da política, sobretudo da política internacional. Jervis considera que o conceito parece ter sido bem aceito – pelo menos à época de seu texto – já que a história do século XX gira em torno de duas grandes guerras mundiais e da Guerra Fria, cujas características de imprevisibilidade e impactos que causaram, sendo caracterizados por historiadores como “pontos de virada”, se assemelhariam ao conceito de Cisne Negro de Taleb. Ainda que o autor conceda a Taleb uma razoabilidade em sua linha argumentativa quanto a estes eventos, afirma que não é fácil de determinar se um evento no passado foi ou não antecipado. Para Jervis, ainda que surpreendentes, não foram inteiramente imprevisíveis.

A partir da definição de Taleb sobre Cisne Negros, Jervis argumenta que esta seria parcialmente vaga. Um evento em particular pode ser analisado como um Cisne Negro para um observador, enquanto para um outro faz sentido em alguma medida. Por meio de exemplos, a contra-argumentação de Jervis é afirmar que, enquanto alguns eventos históricos da política internacional podem ser considerados claramente pontos de virada, não constituem um Cisne Negro. No campo da ciência política, em específico, Jervis (1997) cita a existência de um sistema – a tese de sua obra principal – cujas interconexões são tão numerosas e diversas que traçar um caminho entre causa e efeito se torna uma tarefa extremamente complicada mesmo após a ocorrência do evento, tornando-se ainda mais complexa de fazê-lo a priori do evento. Isso decorre do fato e que o impacto causado entre as variáveis que compõe o sistema e suas respostas geram importantes não-linearidades.

A partir de sua perspectiva da psicologia política, Jervis (2009) considera que o comportamento humano é influenciado por expectativas que podem produzir profecias autorrealizáveis ou negá-las por antecipação. Assim, afirma que a ocorrência ou não de um Cisne Negro pode depender da forma como as pessoas reagem ao sinal do que é possível. Em alguns casos, o fato de que algo não aconteceu é utilizado para indicar que sua ocorrência é impossível e que, portanto, os cálculos prévios de risco estavam corretos e não precisam ser alterados. Nessa lógica, a ocorrência de um Cisne Negro só se dá se for inesperada. Se for antecipada, os atores irão se comportar de forma diferente e o evento não ocorrerá.  Por fim, a principal dúvida de Jervis quanto à possibilidade de aplicarmos o conceito de Cisne Negro para a política internacional é em razão da sugestão de Taleb de evitarmos projeções de longo prazo. Nesse caso, o autor se questiona, por exemplo, como seria possível a gestão de uma política estadunidense em relação à China que não se baseie em teorias – ainda que advirta para os riscos de sermos excessivamente orientados pela teoria – para prover expectativas quanto ao comportamento chinês ao longo dos anos. Assim, saber que em algum momento um Cisne Negro ocorrerá, não nos diz nada sobre como agir frente a ele ou simplesmente pensar sobre ele.

Na conclusão de Jervis está o cerne do meu argumento sobre os acontecimentos do último final de semana na Rússia e em relação às inúmeras análises feitas desde então. Citando o autor: “Enquanto devemos explicar o máximo que pudermos, não devemos forçar o nosso conhecimento para além do que ele pode ir. […] a melhor resposta para muitas perguntas é ‘eu não sei’. […] saber de algo que já aconteceu não nos informa sobre o que acontecerá no futuro” (JERVIS, 2009, p. 488, tradução nossa).

Nesse sentido, meu ponto central é que a maioria das análises que se avolumaram a partir do grande espanto causado pelo motim do Grupo Wagner tendem a observar o fenômeno como um claro indício de que Vladimir Putin está enfraquecido e que o fim de seu governo está próximo. Não obstante, uma outra leitura sobre os fatos de que a aparente rebelião foi desmantelada num espaço de 24 horas; seu líder, Yevgeny Prigozhin, está em aparente exílio em Belarus; o general russo Sergey Surovikin teve sua participação descoberta e está preso; e há a previsão de incorporação dos combatentes do Grupo Wagner ao Ministério da Defesa Russo como soldados voluntários poderia indicar que Putin, a depender da forma como reagir aos acontecimentos, pode sair politicamente menos enfraquecido do que se imagina, ou ao menos buscar uma demonstração de força na repressão contra aqueles que desafiam seu poder.

Aventarmos a possibilidade de queda de seu governo, após 23 anos como presidente ou primeiro-ministro, a partir de uma rebelião causada um grupo militar privado sem – pelo menos a princípio – apoio da maioria da sociedade civil e dos militares russos pouco nos diz sobre a real probabilidade que algo tão surpreendente possa ocorrer. Ademais, as repercussões negativas que a guerra na Ucrânia pode causar na sociedade russa e os impactos disso na popularidade de Putin já são discutidos muito antes da rebelião do Grupo Wagner. De fato, a acusação de que há forças externas e internas que buscam desestabilizar seu governo faz parte do discurso de Putin e do pensamento militar russo há, pelo menos, uma década. Na ocasião de uma improvável derrubada do Presidente russo, considero a marcha do Grupo Wagner apenas um elemento entre outros que poderiam auxiliar na explicação dos fatos. Mas, correndo o risco de ser enganado pelos desenvolvimentos a seguir, não consideraria a causa, nem um ponto de virada, muito menos um evento Cisne Negro que colocou fim ao governo de Vladimir Putin.

Por fim, a enorme expectativa gerada foi bem descrita por Chen Qingqing como um “wishful thinking” do Ocidente de que uma imprevisível queda de Putin poderia levar a um fim mais rápido da Guerra da Ucrânia com resultados favoráveis aos defensores, um conflito que não dá sinais de um fim próximo em meio a um impasse militar em solo ucraniano. Em suma, e compartilhando da perspectiva de Jervis, esperar por um Cisne Negro não nos diz nada sobre como agir no momento ou como compreendermos a complexidade dos fatos. Uma análise baseada no histórico de repressões a opositores de Putin me faz acreditar que temos mais motivos para acreditar que ele não cairá tão cedo do que o contrário. O que ocorrerá, no entanto, ninguém pode saber.

 

* Getúlio Alves de Almeida Neto é doutorando e mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Defendeu a Dissertação de Mestrado sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br

Imagem: Tanque com flores durante o motim de 24 de junho de 2023. Por: Fargoh/ Wikkimedia Commons.

 

REFERÊNCIAS

CHERNOVA, Anna. Kremlin diz que combatentes do Grupo Wagner retornarão à base e assinarão contratos com militares. CNN Brasil. 24 jun. 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/kremlin-diz-que-combatentes-do-grupo-wagner-retornarao-a-base-e-assinarao-contratos-com-militares/. Acesso em: 30 jun. 2023

FIX, Liana; KIMMAGE, Michael. The Beginning of the End for Putin? Foreign Affairs, 27 June 2023. Disponível em: https://www.foreignaffairs.com/russian-federation/beginning-end-putin-prigozhin-rebellion. Acesso em: 30 jun. 2023.

JERVIS, Robert. Black Swan in Politics. Critical Review, v. 21, n. 4, pp. 475-489, 2007. DOI: 10.1080/08913810903441419

JERVIS, Robert. System Effects: Complexity in Political and Social Life. Princeton: Princeton University Press. 1997.

QINGQING, Chen. Wagner’s revolt weakening Putin’s authority ‘wishful thinking’ of the West: experts. Global Times. 25 June 2023. Disponível: https://www.globaltimes.cn/page/202306/1293134.shtml. Acesso em: 30 jun. 2023.

TALEB, Nassim N. A lógica do Cisne Negro: o impacto do altamente improvável. 2ª Edição. Editora Objetiva. 2021.

 

Manifesto Moscou: o Conceito de Política Externa russa de 2023 urge um mundo multipolar

Getúlio Alves de Almeida Neto*

Em 31 de março, foi publicado pelo Ministério das Relações Exteriores da Rússia a nova edição do documento intitulado “Conceito de Política Externa da Federação Russa”.[1] Trata-se da quinta versão do documento, após as publicações em 2000, 2008, 2013 e 2016. Em conjunto com outros documentos como a Doutrina Militar e o Conceito de Segurança Nacional da Federação Russa, o Conceito de Política Externa visa a comunicação com o público doméstico e, sobretudo, externo. Em relação ao segundo, o conjunto de documentos expõe a visão da Rússia sobre o sistema internacional, as principais ameaças e riscos definidos pelo governo para a segurança nacional do país, bem como delimita a forma de reação a estas ameaças. Ao publicar tais documentos, o Kremlin busca dotar de previsibilidade seus princípios de política externa e política de defesa. Em última análise, pode-se compreendê-los como um elemento de dissuasão da política externa russa. Nesta pequena análise, o objetivo é destacar alguns pontos de mudanças nas publicações do Conceito de Política Externa ao longo dos anos e tendo em vista o cenário atual marcado pela Guerra da Ucrânia e por perspectivas de transição hegemônica em curso no sistema internacional.

Em primeiro lugar, é importante ressaltar que, desde a primeira versão do Conceito de Política Externa (RUSSIA, 2000) algumas linhas centrais permanecem constantes, auxiliando na compreensão da visão russa sobre o sistema internacional. Entre estas, destacam-se cinco elementos fundamentais: 1) a defesa pelo respeito ao Direito Internacional e às normas internacionais; 2) a supremacia do Conselho de Segurança da ONU (CSNU) como órgão de resolução de conflitos; 3) a busca em evitar a escalada armamentista convencional e nuclear; 4) o respeito entre os interesses das potências e a não interferência em questões domésticas; 5) a crítica à expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para regiões próximas à fronteira russa.

Destarte, o que se evidencia nas diferentes versões do Conceito de Política Externa é, em maior medida, uma mudança no tom adotado em suas disposições, ora mais otimista, ora mais pessimista e reativa; a forma como interesses e ameaças são definidos de maneira mais ou menos implícita; e o modo como o governo enxerga o papel de grande potência a ser exercido pela Rússia. Nessa perspectiva, observam-se algumas alterações ao longo de suas quatro primeiras edições.

No documento de 2000, destacam-se sobretudo o caráter mais pragmático quanto à possibilidade de cooperação no âmbito do Conselho Rússia-OTAN, criado em 1997, apesar da ressalva quanto à incongruência entre as diretrizes políticas e militares da aliança militar ocidental com os interesses securitários russos (RÚSSIA, 2000). Em específico, o documento apresentava o posicionamento russo contrário ao uso da força sem autorização do Conselho de Segurança da ONU em nome do uso de conceitos como “intervenção humanitária” e “soberania limitada”, em uma clara alusão ao bombardeio da OTAN na Guerra do Kosovo, em 1999. Por fim, cabe destaque ao fato de que, já em 2000, o Conceito de Política Externa ressaltava a autopercepção russa quanto ao seu status de grande potência e definia como objetivo o estabelecimento de uma ordem multipolar que levasse em conta a variedade de interesses dos Estados nas relações internacionais.

Em sua segunda edição, publicada em julho de 2008 – portanto um mês antes da Guerra da Geórgia – o documento não apenas explicitava o desejo russo por uma nova ordem internacional multipolar, mas já afirmava o início da derrocada do modelo internacional dominado pelo Ocidente desde o fim da Guerra Fria (RÚSSIA, 2008). Nesse sentido, destacava-se a crítica ao modelo de alianças políticas e militares – novamente em referência à OTAN – quanto a sua capacidade de lidar com os desafios securitários contemporâneos, além de uma nova crítica ao projeto de expansão da aliança militar ocidental e as negociações para adesão de Geórgia e Ucrânia. Não obstante, a Rússia ainda se mostrava disposta a cooperar no contexto do Conselho Rússia-OTAN, desde que com base no reconhecimento dos interesses das potências.

A versão de 2013 aprofundava o posicionamento russo quanto a sua percepção do fim da hegemonia estadunidense no sistema internacional, que passava a dar lugar para o surgimento de novos polos de poder, sobretudo na região Ásia-Pacífico. Em razão do declínio de seu poder relativo, o Ocidente – segundo a perspectiva russa – iria usar de medidas para manter seu poder, que por consequência tornaria o sistema internacional mais instável (RÚSSIA, 2013).

Entre a publicação do documento em 2013 e a sua quarta edição, em 2016, houve a anexação da Crimeia, em 2014, um movimento crucial da política externa russa para os desdobramentos que levaram ao atual estado das relações entre Rússia e o Ocidente. Dois anos após o ocorrido, o Conceito de Política Externa da Federação Russa pela primeira vez apontava explicitamente para a emergência de um sistema multipolar e novos modelos de desenvolvimento. Nesse sentido, além de uma disputa entre Estados no campo político, militar e econômico, o posicionamento do governo russo identificava a concorrência entre diferentes modelos na dimensão civilizacional, criticando a tentativa de imposição de valores entre as partes. Dessa forma, a busca do Ocidente de impor seu modelo ao redor do globo e impedir a ascensão de novos polos de poder seria o principal motivo para a instabilidade internacional.

A principal diferença entre o documento de 2016 e as versões anteriores, no entanto, foi a menção explícita aos Estados Unidos, no trecho que se segue:

[…] a Rússia não reconhece a política dos Estados Unidos de jurisdição extraterritorial para além dos limites da lei internacional e considera inaceitável tentativas de exercer pressões militares, políticas, econômicas, ou de qualquer outra natureza, e se reserva o direito de responder firmemente a ações hostis, incluindo o reforço de sua defesa nacional e tomando medidas retaliatórias ou assimétricas. (RÚSSIA, 2016, quarta seção, artigo 72, tradução nossa).

Nesse contexto, o Conceito de Política Externa de 2023 tem como principal diferença em relação às versões anteriores o seu caráter de manifesto que, pela primeira vez, assinala de maneira desvelada o projeto russo de estabelecimento de uma nova ordem mundial. Ainda que nas duas últimas versões já fosse possível identificar claramente a insatisfação russa com o modelo atual de configuração de forças, a versão de 2023 torna-se claramente mais propositiva e otimista em relação à capacidade russa de se estabelecer como polo de poder e à possibilidade e vontade de outros Estados do sistema internacional de se unirem em um projeto que busque repensar a estrutura política, econômica e securitária global. Destaco, a seguir, quatro pontos principais de análise que se relacionam com este objetivo.

Em primeiro lugar, há a defesa do fim da hegemonia do dólar como meio de pagamento internacional e moeda de reserva, ainda que o documento não cite de maneira explícita o nome da moeda estadunidense, como se vê nas passagens abaixo:

“[…] O facto de alguns países abusarem da sua posição dominante nalgumas áreas fomenta os processos de fragmentação da economia global e as desigualdades no desenvolvimento dos países. Novos sistemas de pagamento nacionais e transfronteiras estão a ganhar forma, há um interesse crescente em novas moedas de reserva internacionais e estão a surgir motivos para a diversificação dos mecanismos de cooperação económica internacional” (RÚSSIA, 2013, artigo 10, p. 4).

“[…] adaptar o comércio e os sistemas monetários globais às realidades de um mundo multipolar e às consequências da crise da globalização económica para, antes de mais nada, reduzir a capacidade dos países hostis de abusar do seu monopólio ou da sua posição dominante nalguns sectores da economia mundial e aumentar a participação dos países em desenvolvimento na gestão econômica global” (RÚSSIA, 2013, artigo 39, p. 17).

O segundo ponto de destaque é a menção a uma série de iniciativas multilaterais, fóruns e organizações que engloba o relacionamento com Estados em todos os continentes, dando ênfase sobretudo à África e Ásia, regiões nas quais a influência relativa dos Estados Unidos tem diminuído, tais como o Fórum de Parceria Rússia-África e a Grande Parceria Eurasiática. Além disso, o Conceito de Política Externa define como uma área prioritária o fortalecimento do papel internacional de instituições e organizações nas quais a Rússia possui participação significativa, como os BRICS, Organização de Cooperação de Xangai (OCX), Comunidade de Estados Independentes (CEI), União Econômica Eurasiática (UEE), Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), e RIC (Rússia, Índia, China). Por fim, destaca-se a menção à iniciativa do “Conceito russo de segurança coletiva no Golfo Pérsico”, proposta na qual a Rússia se vê como ator facilitador da retomada de normalidade das relações entre os países do Oriente Médio. Ao longo do texto há, de maneira velada, o principal argumento utilizado pelo governo russo no que tange à diferença entre o relacionamento dos países com Moscou e Washington: a não interferência em assuntos domésticos e relativos à estabilidade dos regimes políticos.

O terceiro tema cuja importância é ressaltada nesta análise se refere à menção explícita dos Estados Unidos como principal fonte de ameaça à segurança da Rússia, citando de maneira aberta a OTAN apenas uma única vez. Nesse sentido, a Rússia passa a definir o Ocidente não como um bloco monolítico que busca estabelecer um projeto hegemônico, mas como uma constelação dos Estados Unidos e “seus satélites”, os quais podemos inferir, principalmente, a Europa. Nesse sentido, o espaço no texto dedicado à Europa é breve e direto. No artigo 49, o documento afirma que as complicações nas relações entre Rússia e Europa se devem às concepções estratégicas e ao fomento de uma política antirrussa por parte dos Estados Unidos, que acaba por limitar a soberania dos países europeus em nome de seu projeto hegemônico. No artigo 61, o governo russo faz um convite à cooperação com países europeus ao colocar sobre eles a responsabilidade de:

     […] perceberem que não existe alternativa à coexistência pacífica e cooperação mutuamente vantajosa em pé de igualdade com a Rússia […] isso terá um impacto benéfico na segurança e bem-estar da região europeia e ajudará os países europeus a ocupar um lugar condigno na Grande Parceria Eurasiática e no mundo multipolar. (RÚSSIA, 2023, p. 30-31)

Por fim, o principal destaque em relação ao Conceito de Política Externa de 2023 está em relação ao foco dado ao processo em curso de transição do sistema internacional, que, na perspectiva russa, abandona o modelo de projeto hegemônico estadunidense em favor de um mundo multipolar. No artigo 12, o documento aponta para a crise na ordem mundial vigente e afirma que a resposta lógica a este cenário é reforçar a “cooperação entre países que estão sujeitos a pressões externas” a partir de mecanismos de integração regionais e transregionais. Pode-se sugerir que se trata de uma referência à cooperação da Rússia com Irã, China e Índia. Ademais, o documento transparece seu caráter de manifesto que busca apoio global ao projeto de transição da polaridade internacional ao afirmar, no artigo 18, que a Rússia busca um sistema de relações internacionais que “preserve a identidade cultural e civilizacional e garanta igualdade de oportunidades de desenvolvimento para todos os países, independentemente da sua posição geográfica, da dimensão do seu território, do seu potencial demográfico, de recursos e militar, e do sistema político, económico e social.”.

Por fim, cabe destacar o uso do argumento de respeito às leis internacionais e à reiterada menção ao CSNU como principal órgão responsável pela manutenção da segurança internacional, a crítica às intervenções militares unilaterais e ao processo decisório de aplicação de sanções sem a anuência do órgão. Ao analisarmos tais afirmações a partir do contexto da Guerra da Ucrânia – assim como fora o caso das versões anteriores sob a luz da Guerra da Geórgia e da anexação da Crimeia – é claro que o leitor estranhe a contradição do governo russo. Nesse sentido, o Conceito de Política Externa de 2023 novamente se diferencia dos outros ao fazer menção ao Artigo 51 da Carta da ONU , sobre o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva, como uma prerrogativa legal que justificaria a invasão russa à Ucrânia para se defender das ameaças tais como percebidas por Moscou. Além desta, o documento busca resguardar o direito russo não cumprir com tratados internacionais que não estejam de acordo com a Constituição da Federação Russa, como disposto no artigo 21.

Em suma, pode-se afirmar que o novo Conceito de Política Externa da Federação Russa continua com as linhas gerais da política externa russa do século XXI. Nesse sentido, permanece como objetivo principal a transformação da arquitetura de segurança do pós-Guerra Fria e o fim da hegemonia estadunidense em prol da formação de um sistema de relações internacionais multipolar, no qual a Rússia deverá exercer um papel principal como um dos principais centros de poder em base de igualdade e reconhecimento dos interesses entre as potências. No entanto, a publicação do documento em 2023 representa o mais elevado nível de confiança – e, também, cinismo em relação ao respeito às disposições da Carta da ONU – da política externa russa em relação a este processo de transformação do sistema internacional. Enquanto as quatro primeiras versões foram gradativamente aumentando a ênfase na defesa por um mundo multipolar e possuíam um tom de prenúncio da derrocada estadunidense, o documento de março de 2023 já reconhece o cenário pós pax-americana e faz um convite aos demais Estados para participarem da construção de um sistema internacional que leve em conta os interesses dos diferentes atores que queiram se desvencilhar do modelo político-econômico estabelecido por Washington.

Por fim, o posicionamento russo não descarta a possibilidade de cooperação com os países europeus. Não obstante, Moscou busca mostrar como é cada vez menos dependente do relacionamento com seus vizinhos ocidentais, que teriam muito mais a perder com a má relação com a Rússia, em detrimento de um aprofundamento das relações com os países euroasiáticos e, principalmente, com potências como China e Índia. Em 2023 Moscou afirma abertamente que a hegemonia dos Estados Unidos deve ser encerrada em prol de um sistema multipolar com a participação russa como um dos polos de poder; coloca a responsabilidade da instabilidade internacional na recusa de Washington em aceitar o fim de sua hegemonia; e convoca outros atores a participarem da construção de um novo sistema internacional.

 

* Getúlio Alves de Almeida Neto é doutorando e mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Defendeu a Dissertação de Mestrado sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br

[1] A versão em português está com a grafia de Portugal, que será mantida nos trechos citados ao longo do texto.

Referências

NAÇÕES UNIDAS. Carta das Nações Unidas. 1945. Disponível em: https://brasil.un.org/sites/default/files/2022-05/Carta-ONU.pdf. Acesso em: 2 maio 2023.

RÚSSIA. Ministério de Negócios Estrangeiros.  2023. Conceito de Política Externa da Federação da Rússia. Disponível em: https://mid.ru/en/foreign_policy/fundamental_documents/1860586/?lang=pt. Acesso em: 2 maio 2023.

RÚSSIA. President of Rússia. Concept of the Foreign Policy of the Russian Federation. 2008. Disponível em: http://en.kremlin.ru/supplement/4116. Acesso em: 18 abr. 2023

RÚSSIA. The Foreign Concept of the Russian Federation. 2000. Federation of American Scientists. Disponível em: https://fas.org/nuke/guide/russia/doctrine/econcept.htm. Acesso em: 2 maio 2023.

RÚSSIA. The Foreign Concept of the Russian Federation, 2013. Voltaire Network. Disponível em: https://www.voltairenet.org/article202037.html. Acesso em: 2 maio 2023

RÚSSIA. The Ministry of Foreign Affairs of the Russian Federation. Concept of the Foreign Policy of the Russian Federation. 2016.  Disponível em: https://archive.mid.ru/en/foreign_policy/news/-/asset_publisher/cKNonkJE02Bw/content/id/2542248. Acesso em: 2 maio 2013

Conflito fronteiriço na Ásia Central: sinais tardios de um processo incompleto da desintegração soviética

Getúlio Alves de Almeida Neto*

A Ásia Central é composta por cinco Estados que faziam parte da extinta União Soviética (URSS), a saber: Cazaquistão, Quirguistão, Uzbequistão, Tadjiquistão e Turcomenistão. A oeste do Mar Cáspio, Azerbaijão e Armênia são outras duas ex-repúblicas soviéticas. Ao sul do Tadjiquistão e Turcomenistão, o Afeganistão, embora nunca tenha sido parte do bloco soviético, tem papel central e delicado na memória militar da história russa, devido aos dez anos da frustrada Guerra do Afeganistão (1979-1989). Como produto desse contexto, a região da Ásia Central é destacada como uma das zonas de principais interesses estratégicos para Moscou no século XXI. Contudo, recentes eventos que aumentam a  instabilidade na região têm se tornado um desafio para o papel almejado pelo governo russo de ser reconhecido como garantidor da estabilidade dos regimes e da segurança de seus aliados, e como  principal potência com interesses nesta região.

Em específico, vale citar a guerra por Nagorno-Karabakh travada entre Armênia e Azerbaijão (2020), a retirada das tropas americanas do Afeganistão e a retomada do poder pelo Talibã (2021), os protestos em janeiro de 2022 no Cazaquistão e, mais recentemente, conflitos fronteiriços entre o Tadjiquistão e Quirguistão, assunto tratado brevemente a seguir. Com esse cenário em mente, o objetivo principal deste texto é debater os principais desafios impostos a Moscou na busca por uma posição privilegiada de potência regional em meio (i) à ascensão de outras duas potências na região, nomeadamente China e Turquia; (ii) a crescente eclosão de conflitos entre ex-repúblicas soviéticas e (iii) o crescimento de movimentos nacionalistas que buscam diminuir a influência russa sobre os governos locais em termos políticos, securitários e econômicos.

Entre 14 e 16 de setembro de 2022, os arredores da vila de Kök-Tash, no Quirguistão, próxima à fronteira com o Tadjiquistão, foram palco de hostilidades entre forças de segurança de ambos os países, que se acusaram mutuamente de ter iniciado o confronto. Na narrativa quirguiz, forças tadjiques invadiram vilas em seu território com tanques, veículos blindados e morteiros, e realizaram bombardeios no aeroporto da cidade de Batken (Quirguistão). Por sua vez, os tadjiques acusaram as forças quirguizes de bombardear um posto militar na fronteira e aldeias em seu território. Estima-se que mais de 100 pessoas tenham sido mortas, e aproximadamente 136 mil deslocadas nas regiões de Batken e Leilek, no Quirguistão. O confronto teve início enquanto os presidentes Emomali Rahmon (Tadjiquistão) e Sadyr Japarov (Quirguistão) estavam presentes na cúpula da Organização para Cooperação de Xangai (OCX) no Uzbequistão. Um cessar-fogo foi acordado entre os chefes dos Comitês de Segurança Nacional dos dois países, Kamchybek Tashiyev (Quirguistão) e Saimumin Yatimov (Tadjiquistão). Em 25 de setembro, os chefes dos serviços de segurança dos dois países assinaram um acordo se comprometendo a retirar tropas de quatro postos militares próximos à região do conflito. O acordo foi alvo de críticas no Quirguistão, as quais afirmavam que a desmilitarização da fronteira facilitaria a invasão da população tadjique nos territórios disputados.

O confronto entre forças tadjiques e quirguizes é apenas o episódio mais recente de uma série de conflitos e tensões que ocorrem na fronteira entre os dois países há 30 anos. O último episódio de maior tensão havia sido em abril de 2021, que resultou na morte de 49 pessoas, além de 260 feridas. A frequência das hostilidades nesta região decorre, em grande medida, da delimitação de fronteiras na esteira do processo de dissolução da União Soviética. Nesse sentido, dos 970 quilômetros de extensão total de fronteira, estima-se que apenas metade desse total tenha sido oficialmente definida. Além disso, o Tadjiquistão possui um exclave em território quirguiz, Voruque. Em específico, a região de Batken, no Quirguistão, abriga fontes subterrâneas de água de grande importância para a atividade econômica das populações locais, majoritariamente composta por pequenos agricultores.

O histórico de distribuição de terras no período soviético é outro fator que contribui para a reivindicação de ambos os lados sobre o direito ao território. Quando a propriedade privada da terra foi introduzida no Quirguistão, parte das pastagens arrendadas no território do Tajiquistão foram registradas como propriedade privada dos cidadãos do Quirguistão. Com o fim do bloco soviético, os sistemas de irrigação, que muitas vezes cruzam as fronteiras entre os países, passaram a ficar sob insegurança jurídica devido à não demarcação plena das fronteiras. Consequentemente, disputas pelo acesso à água são frequentes nos últimos 30 anos, ainda que, em sua maioria, sejam atritos entre civis sem maiores desdobramentos. Somado aos fatores históricos e geográficos que implicam na disputa por recursos hídricos, a ascensão de movimentos nacionalistas dentro dos países dotam a região de maior grau de instabilidade.

Andrey Kortunov propõe uma interessante análise dos conflitos pós-soviéticos a partir da concepção de um processo de independência tardio. Segundo o historiador russo, a queda da URSS em 1991 foi vista como um processo relativamente pacífico quando comparado com a dissolução de outros impérios, a despeito de alguns conflitos de menor escala e duração (Tadjiquistão, Nagorno-Karabakh; Abecásia, Ossétia do Sul, Transnístria, Chechênia e Daguestão). Assim, Kortunov sugere que o colapso da URSS tenha sido apenas o início de um processo “longo, complexo e contraditório de desintegração imperial” e de construção de novos Estados-nacionais que perduram até os dias atuais. Na perspectiva do autor, a maior parte do espaço pós-soviético – com exceção dos países bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia) – permaneceu extremamente interligada em termos econômicos, de infraestrutura, educação, ciência, cultura, e na mentalidade das elites políticas e econômicas. Por essa lógica, seria possível afirmar que o real processo de desintegração do bloco soviético passou a acontecer somente com o surgimento de uma nova geração nas populações dos novos Estados nacionais.

Neste contexto, movimentos nacionalistas no Tadjiquistão e no Quirguistão corroboram para o acirramento das disputas entre os países. Enquanto o Tadjiquistão é um Estado marcado pela centralização de poder no governo de Emomali Rahmon, Presidente do país desde 1994 após a Guerra Civil do Tadjiquistão (1992-1994), o Quirguistão é relativamente mais aberto politicamente, sendo governado por Sadyr Japarov desde 2021. Ambos os líderes se utilizam das tensões fronteiriças em benefício de apoio político interno. Enquanto Rahmon faz uso de uma retórica expansionista em busca de consolidação da nação tadjique e de seu regime e manutenção do controle sobre os militares, Japarov, ao longo de sua campanha presidencial em 2021, prometia resolver as disputas territoriais. Em detrimento de uma solução negociada, ambos os países vêm se armando paralelamente ao acirramento das disputas retóricas e aos conflitos localizados na fronteira. O Tadjiquistão vem adquirindo munições e treinamentos militares da Rússia, China, Irã e dos Estados Unidos, sobretudo devido a sua extensa fronteira com o Afeganistão e ao receio de espalhamento das ameaças provenientes do território afegão. Por sua vez, o Quirguistão recebe assistência militar norte-americana, ainda que sob a alcunha de construção democrática. Recentemente, o país adquiriu drones turcos (modelos Bayraktar) e veículos blindados de transporte pessoal da Rússia.

Além dos desafios impostos pelos crescentes conflitos entre ex-repúblicas soviéticas, destaca-se aqui o fato de que a Ásia Central é o ponto de encontro de potências com diferentes níveis de influência e múltiplos interesses, nomeadamente: Rússia, China, Turquia. Na perspectiva russa, portanto, ser capaz de promover a estabilidade regional e manter o poder de influência sobre as ex-repúblicas soviéticas é um duplo desafio que se apresenta a partir das relações com Pequim e Ancara.

Em geral, a maior parte do comércio exterior com estes países é feito com a Rússia. Além disso, a Rússia é destino de migração de mão de obra oriunda da Ásia Central, cujos salários são enviados para os familiares e constituem uma importante parcela da renda destes países. Para além do campo econômico, Moscou exerce grande influência na região a partir da lógica da segurança, institucionalizada sobretudo na Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), cujos membros são: Rússia, Belarus, Armênia, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão. Nos protestos de janeiro de 2022, o presidente cazaque, Kassym-Jomart Tokayev solicitou o envio de tropas do bloco militar, que atuaram pela primeira vez desde sua criação, com o objetivo de reprimir os protestos e garantir a estabilidade do país. Não obstante, a OTSC não é a única instituição intergovernamental que reúne a Rússia e outros países da Ásia Central que faziam parte da URSS. Nesse sentido, a Organização para Cooperação de Xangai (OCX) engloba 9 países: China, Rússia, Cazaquistão, Tadjiquistão, Quirguistão, Uzbequistão, Índia, Paquistão e Irã. Trata-se de uma organização de cooperação política, econômica e militar, que estabelece como prioridade combater o separatismo, o terrorismo e o fundamentalismo religioso. Nesse formato, o poder de influência russa é diluído com outras potências, sobretudo devido à presença chinesa.

A China, por sua vez, vem fortalecendo os laços com os países da Ásia Central principalmente no campo  econômico , cujo símbolo maior encontra-se no projeto da Nova Rota da Seda. Contudo, as preocupações no âmbito da segurança têm se tornado cada vez mais sensíveis aos chineses, principalmente no que tange aos Uigures, população túrquica de maioria islâmica na província de Xinjiang. Localizada no extremo oeste chinês, Xinjiang faz fronteira com Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão e Afeganistão. Com o receio de que haja um movimento independentista islâmico fomentado por radicais – na perspectiva chinesa – nos países da Ásia Central, é de interesse de Pequim manter a estabilidade dos governos vizinhos. Exemplo disso, é o financiamento chinês para a construção de uma nova base militar no Tadjiquistão, próxima à fronteira com o Afeganistão.

Para além da China, a Turquia é outra potência regional cujos interesses podem se tornar um empecilho para Moscou em seu objetivo de garantir a primazia nas relações com os países da Ásia Central. No caso da Turquia, o interesse em se tornar país chave no concerto regional se insere dentro da política externa neo-otomanista[1] de Recep Erdogan. Nessa perspectiva, Ancara tem buscado se posicionar como líder do “mundo túrquico”, se utilizando da narrativa que enfatiza os laços históricos, étnicos e linguísticos comuns entre a Turquia e os países da Ásia Central.[2] Para tal, a Turquia tem aumentado a cooperação econômica com os países da região, sobretudo em relação ao comércio e investimentos em infraestrutura de transporte. No campo da cooperação militar, a Turquia estabeleceu contatos com Cazaquistão e Uzbequistão em meio à guerra entre Armênia e Azerbaijão pelo controle sobre Nagorno-Karabakh. Foram assinados acordos de cooperação militar e técnico-militar com os dois países, além da discussão de uma parceria estratégica entre Turquia e Cazaquistão.

Ademais, há o desejo turco de criar uma aliança militar liderada por Ancara com os países da Ásia Central, o chamado Turan Army. No entanto, tal iniciativa é mais complexa quanto a sua execução, uma vez que Cazaquistão e Tadjiquistão fazem parte do OTSC, enquanto a Turquia é membro da OTAN. Por fim, o governo de Recep Erdogan tem investido na propaganda da Turquia como líder e defensora dos muçulmanos e dos povos túrquicos, através de instrumentos de soft power imagéticos, como o cinema e a indústria de entretenimento. Institucionalmente, a cooperação entre os países se dá sob os auspícios da Organização dos Estados Túrquicos, bloco que inclui o Azerbaijão, Cazaquistão, Quirguistão, Turquia e Uzbequistão.

A partir dos elementos apresentados, sugere-se que a capacidade de influência de Moscou sobre os países da Ásia Central tende a ser colocada em xeque. Três elementos são destacados como os maiores desafios a Moscou no que tange às relações com as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central. Em primeiro lugar, a capacidade de Moscou de agir como garantidor da estabilidade política e social nos países, sobretudo a partir do uso da organização militar OTSC, bem como no papel de mediador dos conflitos. Em segundo lugar, a ascensão de novos atores com interesses na região, a destacar China e Turquia, munidos, principalmente, de capacidade econômica, no caso chinês, e cultural-religioso, no caso turco. Por fim, a guerra iniciada pela Rússia na Ucrânia, assim como os outros episódios de interferência na soberania territorial de outros ex-estados soviéticos – nomeadamente Ossétia e Abecásia do Sul, na Geórgia, em 2008; e Crimeia, em 2014 – podem promover a imagem da Rússia como potência agressora entre a população destes países, fortalecendo o surgimento de uma nova elite política e econômica entre estes de cunho mais nacionalista e favoráveis a um distanciamento das relações com Moscou em prol de uma aproximação com outras potências da região.

[1] Entende-se como política externa turca neo-otomanista aquela que, sob o comando de Recep Erdogan, reorientou as relações externas turcas para o Oriente, em detrimento do tradicional privilégio dado às relações com Estados Unidos e Europa no século XX. Nesse sentido, o governo turco assumiu o compromisso de se tornar uma liderança regional no Oriente Médio, a partir do resgate do passado otomano – a partir de uma narrativa que enfatiza o poder político, espiritual  e cultural  do antigo Império Otomano – e se posicionando como defensor dos muçulmanos sunitas.

[2] Por povos túrquicos entende-se aqueles que compartilham elementos etno-linguísticos, compreendendo, entre outros: turcos, turcomanos, cazaques, usbeques, quirguizes, azeris, uigures.

*Getúlio Alves de Almeida Neto é mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Defendeu a Dissertação de Mestrado sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br

Imagem: Os exclaves tadjiques de Sarwan and Woruch; o enclave quirguiz de Barak, os enclaves uzbeques de Chong-Kara, Dzhangail, Shohimardon, So’x and Tayan. Por Lencer/Wikimmedia Commons.

Referências

ALMEIDA NETO, Getúlio. A Rússia e o Afeganistão Pós-Otan: interesses, oportunidades e desafios. Dossiê de Conflitos Contemporâneos. v.2, n. 3, 2021. p. 59-67. Disponível em: https://gedes-unesp.org/wp-content/uploads/2021/10/Dossie-Conf.-Contemp.-v2-n3-2021-Edicao-completa-62-75.pdf. Acesso em: 08 nov. 2022.

DOOLOTKELDIEVA, Asel; MARAT, Erica. Why Russia and China Aren’t Intervening in Central Asia. Foreign Policy. Oct. 4, 2022. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2022/10/04/tajikistan-kyrgyzstan-russia-china-intervention-central-asia/. Acesso em: 08 nov. 2022.

KORTUNOV, Andrey. Moscow’s Painful Adjustment to the Post-Soviet Space. RIAC. Apr. 1 2022. Disponível em: https://russiancouncil.ru/en/analytics-and-comments/analytics/moscow-s-painful-adjustment-to-the-post-soviet-space/. Acesso em: 08 nov. 2022.

KURMANELIVA, Gulzana. Kyrgyzstan and Tajikistan: Endless Border Conflicts. L’Europe en Formation. 2018, v. 1, n. 385. p. 121-130. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-l-europe-en-formation-2018-1-page-121.htm. Acesso em: 08 nov. 2022.

KYRGYZSTAN, Tajikistan agree on border ceasefire. TASS. Sep. 2022. Disponível em: https://tass.com/world/1508663. Acesso em: 08 nov. 2022.

KYRGYZSTAN, Tajikistan reach demilitarization deal, sparking anger among border residents. Eurasianet. Sep. 26. 2022. Disponível em: https://eurasianet.org/kyrgyzstan-tajikistan-reach-demilitarization-deal-sparking-anger-among-border-residents. Acesso em: 08 nov. 2022.

LATERZA, Rodolfo Queiroz; CABRAL, Ricardo. O conflito fronteiriço entre Quirguistão e Tadjiquistão. Forças Terrestres. 1 out. 2022. Disponível em: https://www.forte.jor.br/2022/10/01/o-conflito-fronteirico-entre-a-quirguistao-e-tadjiquistao/. Acesso em: 08 nov. 2022.

LUKYANOV, Grigory; MIRONOV, Artemy; KULIEVA, Nubara. Turkey’s Policy in Central Asia: Are Ambitious Well-Founded? RIAC. Feb. 25, 2022. Disponível em: https://russiancouncil.ru/en/analytics-and-comments/analytics/turkey-s-policy-in-central-asia-are-ambitions-well-founded/. Acesso em: 08 nov. 2022.

MAKIO, Danielle Amaral. Autodeterminação e irredentismo: a luta por independência de Nagorno-Karabakh. ERIS. GEDES. 13 ago. 2020. Disponível em: https://gedes-unesp.org/autodeterminacao-e-irredentismo-a-luta-por-independencia-de-nagorno-karabakh/. Acesso em: 08 nov. 2022.

MAKIO, Danielle Amaral. “Adeus vovô: Revolta e Luta no Cazaquistão. ERIS. GEDES. 17 mar. 2022. Disponível em: https://gedes-unesp.org/autodeterminacao-e-irredentismo-a-luta-por-independencia-de-nagorno-karabakh/. Acesso em: 08 nov. 2022.

TAJIKISTAN Approves Construction Of New Chinese-Funded Base As Beijing’s Security Presence In Central Asia Grows. RFE/RL. Oct. 27, 2022. Disponível em: https://www.rferl.org/a/tajikistan-approves-chinese-base/31532078.html. Acesso em: 08 nov. 2022.

O Presente é tal qual como era Antigamente: Colonização, Violência e Expansão no Território Yanomami

Carolina Antunes Condé de Lima*

 

Ao pensarmos em Relações Internacionais (RI), como o próprio nome diz, o internacional se coloca como principal ambiente de análise da disciplina. Há, contudo, uma tentativa de mudar isso – cada vez mais se voltar para dentro tem se tornado tema das RI. Parte deste movimento se preocupa em olhar para os processos de colonização, epistemicídios e genocídios dos povos tradicionais em busca de entender como essas violências, que datam do século XV, se perpetuam e são determinantes para as formações dos Estados nacionais.

A luta por território no Brasil é uma das principais características formadoras do nosso país. A história oficial nos conta que desde a chegada dos colonizadores portugueses até a expansão do território e a anexação do Acre, no início do século XX, a extensão do país foi conquistada por desbravadores e aventureiros que contribuíram para a construção da grandeza nacional. A história não oficial, entretanto, nos conta um outro lado: a expansão territorial brasileira foi construída com muito derramamento de sangue e não por homens que se aventuraram de forma heroica pelo território desconhecido, tampouco por tratados assépticos assinados entre portugueses e espanhóis ou representantes do governo brasileiro e dos Estados vizinhos.

Outra questão mal contada é a história sobre as disputas territoriais terem findado no início do século XX. Podemos dizer que as disputas de demarcação de fronteiras acabaram com a anexação do Acre em 1903 após a assinatura do Tratado de Petrópolis, mas conflitos por territórios são constantes no Brasil até hoje. Uma das regiões que segue sendo foco de disputas é o território amazônico. O norte do país foi a última região a passar pelo processo de colonização e desde o período regencial têm sido pauta de preocupação nacional. Desde pressões internacionais pelo direito à navegação do Rio Amazonas, passando pela  invasão francesa e britânica dos territórios brasileiros (1832 e 1835, respectivamente) e até o interesse das grandes potências internacionais pela região, exposta ao longo do século XX, o Norte do Brasil preocupa constantemente os elaboradores da Defesa Nacional.

No final da década de 1980 e início da década de 1990, quando se iniciaram as discussões sobre securitização e o acréscimo da questão do meio ambiente às pautas de segurança internacional, vários nomes da política mundial seguiram a fala de Henry Kissinger, ainda na década de 1970, sobre a necessidade de a Amazônia deixar de ser território brasileiro. O histórico de intervenções militares dos EUA em países da América Latina ao longo de sua história permitiu que o temor fosse visto como uma possibilidade real pelos militares brasileiros. Além disso, tal fala fez reviver o medo gerado pelo histórico plano de Mathew Fontaine Maury, tenente reformado da Marinha norte-americana, que pretendia enviar escravizados para a Amazônia para que fosse cultivado algodão – à época, criou-se o medo de o território amazônico ser transformado em um “novo Texas” (VIDIGAL, 2014). Dado o histórico, é possível dizer que a ideia de que a Amazônia é área de interesse internacional não é um delírio das Forças Armadas e isso é determinante na definição de políticas e ações realizadas pelas forças de segurança na região.

A necessidade da defesa do território a qualquer custo criou no paradigma militar a ideia de que a soberania brasileira sobre a região só poderia ser garantida por meio da colonização em oposição ao seu “vazio demográfico”. Conforme apontado por Adriana Marques (2007, p. 49), o vazio demográfico da região amazônica não se refere ao despovoamento, em seu sentido literal, mas sim ao “vazio de uma população comprometida com a preservação da soberania brasileira sobre a região”. Dessa forma, como parte da Política de Segurança Nacional adotada pelos militares durante a ditadura (1964-1985), foi estabelecida uma política de transferência populacional – “homens sem terra” que sofriam no sertão nordestino, foram incentivados a ocupar as “terras sem homem” do norte do Brasil.

A partir da tríade colonização – segurança nacional – soberania, a ocupação da região amazônica tem sido feita sem qualquer respeito pelas populações que ali sempre estiveram. Pelo contrário, graças ao incentivo do Estado, que nos últimos quatro anos retomou de forma acentuada a política de ocupação da região, estabelecida ainda no período colonial e revivida durante o período ditatorial brasileiro, o norte do país segue sendo saqueado por garimpeiros e madeireiros ilegais, enquanto as populações indígenas da região lutam para manter seu território. De acordo com o Observatório da Mineração, entre 1985 e 2020, a área minerada no Brasil cresceu mais de seis vezes, 72% dessa área minerada encontra-se na Amazônia e 495% desse crescimento se deu em territórios indígenas nos últimos dez anos. Esses dados demonstram que a luta das populações originárias pela manutenção de suas terras não é algo recente, muito pelo contrário, ela data da colonização e permanece até hoje. Nos últimos anos, no entanto, as questões sobre as disputas pela terra, na região, têm ganhado maior atenção em vista da política do atual governo e pelo avanço das discussões sobre mudanças climáticas e a urgência que se criou em salvar o que ainda resta da floresta.

Logo após a eleição do presidente Bolsonaro, em 2018, a revista Nature publicou um editorial no qual afirmava que “o novo presidente brasileiro era uma adição às ameaças globais à ciência”. Além disso, quase em tom preditivo, o editorial alertou para a questão da expansão da fronteira agrícola ao apontar que “sua eleição envia[va] os sinais errados para proprietários de terras e empresas que detêm considerável influência sobre o futuro da maior floresta tropical do planeta”. Nos últimos quatro anos, assistimos a retirada de proteções legais do território amazônico e quebras anuais de recordes de desmatamento da região. De acordo com o último levantamento do INPE, o desmatamento entre 2019-2022 foi 60% maior do que no quadriênio anterior – a área total desmatada equivale a um território maior do que o estado do Rio de Janeiro. Dessa área, mais da metade do desmatamento ocorreu em terras públicas, sendo que 83% aconteceram em área federal, segundo o IPAM.

O desmatamento nos territórios indígenas teve, em média, um aumento de 153% quando comparado com o período de medição anterior, enquanto nas unidades de conservação a área desmatada teve um aumento de 63%. Em termos federativos, os estados mais afetados são Amazonas (AM), Acre (AC) e Rondônia (RO), áreas que sofrem com a expansão agrícola. A preservação das terras indígenas é assegurada pela Constituição de 1988. O Artigo 231 reconhece “a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, além de creditar à União a obrigação de “demarcar, proteger e respeitar todos os seus bens”. Os parágrafos 1º e 2º do Artigo ainda determinam que o uso da terra é de exclusividade da população indígena, e o parágrafo 3º impõe que qualquer aproveitamento dos “recursos” das terras deve ser aprovado pelo Congresso Nacional. Por fim, o parágrafo 6º estabelece que “são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.

Apesar da Constituição, os povos indígenas e suas terras têm sido constantemente desrespeitados, invadidos e explorados. Atualmente no Brasil 728 Terras Indígenas são reconhecidas – 124 estão em identificação, são Terras em estudo por grupos de trabalho nomeados pela FUNAI; 43 são Terras identificadas, com relatório de estudo aprovado pela presidência da FUNAI; 74 são Terras declaradas pelo Ministério da Justiça; e 487 Terras homologadas e reservadas, ou seja, reconhecidas pela Presidência da República, adquiridas pela União ou doadas por terceiros. De acordo com o IBGE, essas Terras correspondem a 11,6% do território nacional e sua maior concentração está na chamada Amazônia Legal[1], território que corresponde a 58,93% do território nacional.

Dentre as 487 Terras demarcadas, está a Terra Indígena Yanomami (TIY), a maior reserva indígena do país. A sua homologação e demarcação aconteceu via Decreto Presidencial no dia 25 de maio de 1992, reconhecendo 9.664.975,48 hectares e um perímetro de 3.370km como território deste grupo. Localizada nos estados do Amazonas e Roraima, faz fronteira com a Venezuela e é lar para 26.780 indígenas, divididos em oito povos diferentes (a representação cartográfica pode ser visualizada no site Terras Indígenas no Brasil).

As primeiras informações sobre os povos Yanomamis datam de 1787; o aumento das invasões que começaram a descaracterizar seu território e sua demografia, no entanto, são da segunda metade do século XX. Desde então diversas invasões de garimpeiros, do Exército, de construtoras e mineradoras têm alterado a dinâmica do território e do seu povo. Durante a ditadura militar brasileira, várias aldeias foram dizimadas por doenças transmissíveis e desnutrição, o que levou à denúncia do Estado brasileiro por tais crimes pela Comissão Nacional da Verdade (CNV). O fim da ditadura, entretanto, não significou o fim das mortes. Em 1993, os Yanomamis foram massacrados naquele que ficou conhecido como o primeiro caso de genocídio do país, o caso de Haximu, quando homens, mulheres e crianças foram executados por garimpeiros.

A primeira grande onda de invasão do garimpo na TIY foi no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Apesar da diminuição da corrida pelo ouro no território, muitos núcleos de garimpagem se mantiveram ali, de onde permaneceram perpetuando violência e problemas sanitários para a população. Desde a eleição de  Bolsonaro, houve uma piora notável na questão. Bolsonaro, que sempre se manifestou contra a implementação das demarcações de Terras Indígenas, também tem um histórico de incentivos à liberação da mineração em territórios demarcados e do seu uso para expansão da monocultura. Desde 2019, ano em que assumiu o governo, o número de garimpeiros na TIY só cresce, confirmando a hipótese apontada pela Nature após sua eleição. Em 2019, de 6 a 7 mil homens exploraram ouro ilegalmente na região demarcada.  Em 2020, o Projeto de Lei 191/20 foi apresentado no intuito de regulamentar a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em terras indígenas – apenas neste ano, 2.234 hectares foram destruídos no TIY, um aumento de 30% em relação ao ano anterior. O ano de 2021 foi ainda mais devastador para os Yanomamis – foram 3.272 hectares de destruição, um aumento de 46% em um ano, a maior taxa anual desde 1992. Desde 2016, o garimpo em Terra Yanomami cresceu 3.350%.

A invasão do garimpo representa também o aumento da violência contra os povos que habitam a região.  O avanço da violência tem como consequência o aumento de mortes – apenas em 2021, 101 yanomamis foram mortos por garimpeiros. Além das mortes diretas por conflitos, houve aumento da desnutrição infantil, de casos de malária, diversos casos de intoxicação por mercúrio (consequência direta da mineração fluvial), casos de abusos sexuais contra mulheres e crianças, inclusive o estupro seguido de morte de uma menina de 12 anos em abril deste ano, e denúncias de casos de exploração sexual de crianças e mulheres yanomamis em troca de comida.

Olhar para a questão Yanomami e todas as outras lutas por terra no território brasileiro desde o período da colonização ajuda a pôr fim na retórica da formação estatal pacífica do nosso Estado. Nossa formação foi, e ainda é, realizada de forma violenta contra as populações originárias. A formação de fronteiras, assim como seu processo de independência, não foi consequência de conflitos internacionais, mas sim resultados de diversas lutas internas, o que impacta diretamente na dinâmica das nossas Forças Armadas: a sua história foi forjada a partir de um olhar para dentro, para seu próprio território e para os povos que aqui habitam; a lógica é a de combate ao inimigo interno que ameaça a soberania nacional. O retorno da doutrina militar para o governo fez com que o processo de ocupação e destruição das “terras vazias” do norte do país fosse acentuado; para os Yanomamis, além da ocupação de suas terras e do conflito sempre iminente, os últimos anos contribuíram para a construção de uma tragédia humanitária. “Em 2021, a região registrou quase 50% dos casos de malária do País e hoje existem cerca de 3 mil crianças com déficit nutricional” (Agência Câmara de Notícias, 2022).

A questão dos Territórios Indígenas pode até não ser vista como causa de conflitos internacionais ou como um tema das Relações Internacionais pelo mainstream, que ainda teima em excluir o interno de suas dinâmicas, mas sua existência é uma consequência direta do modelo de colonização e do Estado nacional que aqui foi construído. Este ator tão determinante das RI, no Brasil, teve uma construção discursiva diferente: o inimigo é interno e precisa ser tutelado a todo custo para que nossa sobrevivência, autonomia econômica e soberania sejam garantidos.

[1] A Amazônia Legal corresponde à área de atuação da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM delimitada em consonância ao Art. 2o da Lei Complementar n. 124, de 03.01.2007. A Amazônia Legal foi instituída com o objetivo de definir a delimitação geográfica da região política de atuação da SUDAM como finalidade promover o desenvolvimento includente e sustentável de sua área de atuação e a integração competitiva da base produtiva regional na economia nacional e internacional. A região é composta por 772 municípios. (IBGE, Amazonia Legal, s.d. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/geociencias/cartas-e-mapas/mapas-regionais/15819-amazonia-legal.html?=&t=o-que-e. Acesso em: 30/10/2022).

*Carolina Antunes Condé de Lima é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), bolsista CAPES e pesquisadora do GEDES e do Observatório de Conflitos desde 2021.

Imagem em destaque: Ouro do sangue Yanomami. Vista aérea da região do rio Mucujaí na Terra Indígena Yanomami. Por: Bruno Kelly/Amazônia Real.

Referências

MARQUES, Adriana. Amazônia: pensamento e presença militar. 2007. 232 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

VIDIGAL, Carlos Eduardo. História das relações internacionais do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2014.

 

Primeiro como farsa, depois como tragédia: Crimeia, Ucrânia e as novas regiões anexadas pela Rússia

Danielle Amaral Makio*

Era março de 2014 quando Vladimir Putin, em seu segundo mandato presidencial, assinava o documento que reconhecia a anexação da península da Crimeia à Federação Russa. Oito anos mais tarde, a Ucrânia voltaria a ter parte de seu território integrado ao estado russo por decisão do Kremlin. O documento que reconhece as regiões de Kherson, da Zaporizhia e das Repúblicas Populares do Donbass, Donetsk (DNR) Luhansk (LNR), como parte da Rússia foi assinado em 29 de setembro de 2022, logo após a realização de referendos que sondaram o desejo das populações locais de serem anexadas. Segundo os resultados divulgados, respectivamente 87,05%, 93,11%, 99,23% e 98,42% dos habitantes de cada local apoiam a anexação. Apesar de terem contado com supostos observadores, as consultas populares, bem como a decisão pela violação da integridade territorial ucraniana, não conta com amplo reconhecimento internacional. Até mesmo a China, parceiro importante do governo russo, demonstrou cautela ao tratar do ocorrido, abstendo-se de abertamente condenar ou reconhecer a atitude de Putin. A decisão de Moscou acontece a despeito das afirmações feitas pelo Kremlin em 2014 e 2015, as quais garantem que a anexação da Crimeia não seria seguida por novas tomadas de território ucraniano pela Rússia. Nesse contexto, a nova onda de anexações levanta alguns questionamentos acerca de suas semelhanças em relação ao ocorrido em 2014, de suas motivações e de sua legitimidade.

Regiões anexadas pela Rússia, por SyntaxTerror/Wikimedia Commons.

De início, é preciso salientar que há diferenças e semelhanças fundamentais entre o contexto da Crimeia e das quatro regiões recentemente anexadas. O contexto político da primeira à época de sua anexação era razoavelmente distinto daquele que vemos nas outras. A península crimeia, em virtude de seu processo de formação populacional e política, passou por diversos períodos históricos nos quais seu pertencimento à Rússia ou Ucrânia foi contestado até chegar à situação em que gozava de relativa autonomia administrativa em relação a Kyiv. Tal “independência” era reconhecida pelas autoridades ucranianas e não tinha seu status contestado como o que ocorria em regiões do Donbass, desde 2014, quando coalizões irredentistas tomaram o poder em certas províncias e instalaram regimes próprios. Dessa forma, a península mantinha certo distanciamento, ainda que limitado, das decisões políticas da capital. É por conta destes dispositivos que, entre outros exemplos, a Crimeia foi capaz de criar diretrizes particulares acerca de algumas políticas linguísticas e educacionais.

Outro ponto de afastamento importante entre os locais aqui analisados são as vantagens estratégicas oferecidas por cada um. Ainda que Kherson, Zaporizhia, Donetsk e Luhansk favoreçam Moscou na medida em que lhe oferecem maior presença nos mares de Azov e Negro e conectem a Rússia à Crimeia por terra, esta conta com atrativos únicos. Entre estes, destacamos (i) o acesso privilegiado ao Mar Negro, uma vez que a península se localiza em região muito propícia à navegação, é próxima de jazidas de hidrocarbonetos e tem boa estrutura portuária; e (ii) a presença da base naval de Sevastopol, onde se localiza o principal destacamento da Marinha russa. Para além das vantagens geopolíticas representadas pelo entreposto militar, Sevastopol é também importante para o Kremlin do ponto de vista afetivo e discursivo. Conhecida como a “cidade da glória”, o local é usualmente usado para invocar os avanços tecnológicos e militares que garantiram a grandeza do Império Russo, narrativa muito mobilizada por Vladimir Putin em sua política de grande potência.

Entre as semelhanças observadas entre a anexação das cinco regiões aqui mencionadas, podemos destacar (i) os fortes traços de russofonia e de aproximação a símbolos étnicos e culturais da Rússia; (ii) a queda nos níveis de aprovação popular em relação a Vladimir Putin, que também passava por um período de baixa popularidade às vésperas da incursão sobre a Crimeia; e (iii) a contestação da veracidade dos referendos realizados. Apesar de ter uma estrutura administrativa que permitia maior “alinhamento” à política russa, a Crimeia contou com um processo de consulta popular que, dada a ampla presença de militares russos e a rapidez com que se deu, levantou suspeitas acerca da legitimidade de seu resultado. Da mesma maneira, a ausência de cabines de votação e a intensa participação do Exército russo durante as votações nas regiões de Kherson, Zaporizhia, Donetsk e Luhansk sugerem limites ao livre-arbítrio dos votantes.

Além desse contexto que torna a legitimidade dos referendos questionável, ainda deve-se considerar que, nos locais recentemente anexados, houve uma intensa onda de emigração de cidadãos e cidadãs que, podemos supor, eram em sua maioria opostos à integração à Rússia. Tal inferência é corroborada pelo resultado de pesquisas feitas antes mesmo do início da “incursão militar russa sobre a Ucrânia”, segundo as quais 80% e 90% da população de Kherson e Zaporizhia, respectivamente, era contrária à anexação. Os dados sugerem que, apesar de serem parte de uma região historicamente mais afeita a uma postura pró-Rússia, parte considerável da população local não estava disposta a renunciar à Ucrânia. Nesse contexto, na tentativa de garantir apoio irrestrito à secessão e subsequente união à Federação Russa, esta vem oferecendo uma série de benefícios aos locais, como acesso a passaporte russo, assistência social e médica, entre outros. Estas medidas, quando somadas a outras como adoção do rublo, veiculação de mídias russas e mudanças nas políticas educacionais das regiões, sugerem a estruturação de um projeto de dominação que se debruça sobre o estabelecimento de uma presença moscovita plena nos âmbitos militar, civil, burocrático e afetivo.

Apesar da legitimidade contestável do ocorrido, Vladimir Putin reiterou, à semelhança do ocorrido em 2014, que a Rússia está agindo em prol da defesa do direito de autodeterminação dos povos. A postura oficial do Kremlin se baseia em um entendimento do processo de formação estatal que julga ser a Ucrânia, sobretudo suas porções leste e sudeste – tradicionalmente mais afeitas a características etnolinguísticas tipicamente russas -, parte indissociável do estado russo. Na esteira desta narrativa, notamos também a centralidade do conceito de política externa do país, segundo o qual é dever deste proteger os povos russos e/ou russófonos, entre os quais se enquadram aqueles que habitam as regiões recém anexadas. Estas pessoas, no atual contexto de guerra que se estende desde fevereiro, estariam sob a ameaça de um governo ucraniano que persegue e intimida vida das minorias étnicas russas no país. O teor discursivo desta justificativa tem relação com a própria identidade que vem sendo promovida por Moscou sobretudo desde 2012, momento em que o Kremlin assevera sua busca por lugar de destaque na política internacional e fortalece discursos que legitimam a superioridade russa e seu dever cívico de proteger seu povo e seu Estado.

As motivações russas em relação às províncias de Kherson e Zaporizhia e às Repúblicas de Donetsk e Luhansk, porém, vão além do desejo de proteger a população. Após sofrer importantes reveses em fronts localizados na porção leste e centro-leste da Ucrânia, Moscou se vê encurralada por duas necessidades: de um lado, precisa garantir uma retomada da liderança militar do conflito, aumentando sua superioridade tática sobre a Ucrânia; do outro, precisa aumentar a moral do país perante a própria população russa, que já começa a demonstrar crescentes níveis de desaprovação das ações do governo em relação ao conflito. As anexações, nesse sentido, vêm em resposta a ambas as demandas.

Na medida em que fazem desses territórios parte da Rússia, abrem precedente para que qualquer ataque às províncias seja interpretado como um ataque ao próprio Estado russo, possibilitando, assim, uma declaração de guerra por parte do Kremlin – lembremos que, até o momento, a Rússia está oficialmente em uma “incursão militar especial”, não em guerra de fato, o que limita o número de efetivo militar que pode ser mobilizado pelo país e as armas que podem ser usadas. Uma declaração de guerra oficial, portanto, levaria ao uso total da capacidade militar de Moscou, possibilitando, inclusive, o uso de armamento nuclear. Ademais, como já mencionado, as anexações facilitam o estabelecimento de um corredor terrestre ligando Rússia à Crimeia, o que traz benefícios econômicos e militares à primeira. Do ponto de vista doméstico, a expectativa é que a união das províncias à Federação Russa aumente a aprovação do governo, seguindo os resultados positivos da guerra na Geórgia de 2008 e da anexação da Crimeia em 2014.

Os resultados de médio e longo prazo referentes aos recentes desdobramentos da guerra russo-ucraniana ainda são incertos. À semelhança do ocorrido em 2014, o Kremlin parece agir a partir de um cálculo que envolve interesses estratégicos, necessidade de garantir alta nos níveis de aprovação interna e desejo por tomar para si – ou retomar se considerarmos a visão do governo russo – regiões historicamente pertencentes ao Estado russo. Do complexo universo de razões que explicam os eventos aqui comentados, portanto, forma-se uma amálgama de identidade, afetos, memória, geopolítica e tentativa de sustentação de regime político. Nesse ínterim, ainda que Vladimir Putin tenha se declarado aberto a negociações, as recentes manobras de Moscou parecem afastá-lo de obter alguns de seus objetivos iniciais, como a desmilitarização da Ucrânia e a não adesão desta à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), de forma menos traumática.

 

Danielle Amaral Makio é mestranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e bolsista Erasmus Mundus no programa de mestrado internacional CEERES (Central and East European, Erausian and Russian Estudies). É também pesquisadora do Gedes e do Observatório de Conflitos.

Imagem em destaque: Putin em fevereiro de 2022, por Kremlin.ru, CC BY 4.0.

Imagem no corpo do texto: Regiões da Ucrânia anexadas pela Rússia. Por SyntaxTerror/Wikimedia Commons.

O conflito separatista na Córsega e os protestos de março de 2022

João Vitor Tossini*

Em 9 de março de 2022, a ilha da Córsega, uma das 18 regiões administrativas da França, testemunhou o início de protestos por parte de nacionalistas corsos após o antigo líder nacionalista, Yvan Colonna, ser alvo de um ataque em uma prisão francesa, falecendo vítima dos ferimentos três semanas depois. Colonna, antigo membro da Frente da Libertação Nacional da Córsega entre anos 1980 e 1990, havia sido preso em 2003, e posteriormente condenado pelas autoridades francesas pelo planejamento e assassinato, em 1998, do então Representante de Estado (préfet) para a sub-região da Córsega do Sul. Após sua morte, deu-se início a uma série de protestos violentos por parte de seus apoiadores no movimento separatista que alegavam falhas do governo francês em garantir a segurança de Colonna. Os eventos de março de 2022, que resultaram em mais de 102 feridos, em sua maioria forças de segurança do governo local, levaram ao retorno do debate sobre a autonomia da ilha. Ademais, apesar do fim da campanha armada da Frente de Libertação Nacional da Córsega em 2014, os protestos demonstraram a persistência dos anseios nacionalistas dentre parcela significativa da população da Córsega e da violência que continua a permear este tema. Este texto traz um panorama histórico do conflito separatista, buscando subsídios para analisar a conjuntura atual.

A longa história do nacionalismo corso remonta aos anos 1750, período em que a ilha era alvo de disputas entre o Reino da França e a República de Gênova. Em 1755, tendo êxito na expulsão da maioria das forças de Gênova, as lideranças locais declararam a formação da República Corsa. O Estado corso manteria sua independência por aproximadamente 14 anos, sendo invadido pela França em 1768 e anexado no ano seguinte. Membros expoentes da liderança política procuraram exílio na Grã-Bretanha, uma das principais apoiadoras da extinta República (SIMMS, 2008). A experiência de autonomia da Córsega foi brevemente restaurada entre 1794 e 1796 por meio do apoio militar britânico que possibilitou a expulsão das forças francesas e o estabelecimento de um Estado-cliente da Grã-Bretanha na ilha, o Reino da Córsega ou Anglo-Corso. Contudo, a influência britânica era permeada por atritos com as lideranças locais, além da constante ameaça francesa à existência do Reino. Com a entrada da Espanha nas Guerras Revolucionárias Francesas (1792-1802) ao lado da França em outubro de 1796, as forças britânicas se retiraram da ilha e os principais membros do governo local renunciaram perante à iminência de uma nova invasão francesa, colocando fim à experiência soberana da Córsega (GREGORY, 1985).

Assim, ao longo do século XIX, a Córsega foi alvo da centralização política e assimilação cultural realizada pelo Estado francês, especialmente por meio da padronização do ensino laico em escala nacional. No fim da década de 1890, parcialmente em resposta aos avanços centralizadores da Terceira República Francesa, surgiram os primeiros movimentos com ambições separatistas ou de maior autonomia para a ilha. Contudo, essas correntes políticas permaneceram grandemente marginalizadas até o fim da Primeira Guerra Mundial, um conflito particularmente custoso em vidas humanas para a Córsega, que apresentou a maior taxa de perdas per capita dentre todas os Departamentos Franceses. Nos anos 1930, a Córsega era palco de dois movimentos políticos que buscavam a alteração do status quo: o autonomista e o separatista. O primeiro se distanciou do segundo, optando pela atuação política e não-violência. Concomitantemente, uma parcela minoritária dos separatistas corsos se alinhava com os ideais do Regime Fascista Italiano, que se apresentava como uma alternativa moderna ao Estado francês, e buscavam integrar a Ilha da Córsega à Itália Fascista (PELLEGRINETTI; ROVERE, 2004). Na década após a Segunda Guerra Mundial, a associação com o fascismo italiano levaria ao recuo do sentimento nacionalista corso como uma força política local (ELIAS, 2009).

A partir da segunda metade dos anos 1950, partidos minoritários nacionalistas passaram a experimentar crescente alcance eleitoral. Esse crescimento ocorreu, em partes, devido ao acelerado crescimento econômico da ilha nos anos 1950 e 1960. Parcela da população corsa entendia que os benefícios da expansão econômica eram direcionados para a França continental. Em adição, o processo de independência das colônias francesas no Norte da África acentuou as frustrações locais com o governo central, em especial após Paris conceder aos repatriados francesas das ex-colônias acesso privilegiado às novas oportunidades econômicas que estavam sendo criadas na Córsega, incluindo terras férteis para cultivo (SIMEONI, 1995). Ainda assim, o movimento nacionalista corso avançou pacificamente dos anos 1950 ao início da década de 1970. Um dos expoentes da linha reformista e constitucionalista era a Ação Regionalista Corsa (ARC), criada em 1967, que buscava autonomia e expansão dos investimentos do governo central na infraestrutura local, dentre outras questões (ELIAS, 2009).

Todavia, um episódio afetaria centralmente o movimento nacionalista da Córsega que, posteriormente, expandiria sua orientação e os meios empregados para alcançar seus objetivos políticos. Em 1975, no vilarejo corso de Aleria, objetivando atrair atenção do público para as disparidades econômicas entre corsos e franceses continentais, membros da ARC ocuparam uma vinícola local pertencente à um produtor francês repatriado da Argélia (LEFREVE, 2000; SIMEONI, 1995). Resultando em duas mortes, o impasse entre o grupo de nacionalistas e um maior número de representantes armados das forças de segurança francesas aludiu à intransigência de Paris em relação aos apelos locais. A Ação Regionalista Corsa foi proibida pelo Governo francês no mesmo ano e substituída pela Associação do Patriota Corso (APC), posteriormente renomeada União do Povo Corso (UPC), de orientação autonomista. Em maio de 1976 foi formada a Frente de Libertação Nacional da Córsega (FLNC), com tendências radicais e separatistas (ELIAS, 2009). Logo, o movimento nacionalista da Córsega se dividiu entre duas vertentes, uma constitucional e outra separatista, sendo esta adepta do emprego de métodos variados para o alcance da independência local.

Em maio de 1976, uma série de ataques com bombas por parte da Frente de Libertação Nacional contra representações do governo francês deu início ao conflito nacionalista corso contemporâneo. Dois meses depois, empregando armamento de uso exclusivo militar, a Frente de Libertação Nacional realizou ataques contra forças policiais na Córsega. O uso de equipamentos militares levantou suspeita das autoridades francesas sobre a possibilidade de envolvimento da Frente de Libertação com o Exército Republicano Irlandês (IRA, em inglês) e possível apoio do Regime da Líbia. Em setembro do mesmo ano, novos ataques da FLNC contra oficiais militares fracassaram, deixando feridos em ao menos duas cidades corsas. Assim, o ano de 1976 foi  marcado pelo início de uma campanha separatista armada na Córsega que possuía como inspiração as ações do IRA na Irlanda do Norte (RAMSAY, 1983).

Ataques às representações do governo francês, incluindo bases militares, permaneceram o enfoque da FLNC no restante da década de 1970. Entretanto, essas ações deram origem a grupos contrários à independência ou autonomia, em especial a Frente Ação Nova Contra a Independência e Autonomia (FRANCIA). Este grupo unionista realizou ataques contra indivíduos e locais associados à FLNC em 1977, dando início a uma campanha retaliatória entre os dois movimentos. Nesses anos, a principal operação realizada pela FLNC foi o ataque à estação de radar da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em Solenzara, no ano de 1978, indicando que os alvos da FLNC incluíam aqueles considerados aliados do Estado francês. Nos primeiros três meses do ano seguinte, a FLNC realizou cerca de 115 ataques com dispositivos explosivos na ilha, marcando o auge de sua atuação armada. Entre 1978 e 1979, operações das forças policiais e da inteligência francesa indicavam que os associados da FLNC e de outros grupos separatistas estavam em crescimento, com apoiadores na França continental (RAMSAY, 1983).

Com a prisão de dezenas de seus membros em 1979, a FLNC adentrou a década de 1980 com reduzida capacidade operacional. Baseando-se nas ações do IRA, a FLNC passou a empregar uma nova abordagem estratégica. A partir de 1979, o objetivo da Frente era “levar o problema corso aos franceses”, com ataques na França continental, além das tradicionais operações na Córsega (RAMSAY, 1983). No decorrer da década, dois cessar-fogos foram acordados com o governo francês. O primeiro deles foi anunciado unilateralmente pela FLNC em 1981 e o segundo em conjunto com o governo francês em 1988. Contudo, o cessar-fogo de 1988 contribuiu para acentuar as divergências internas da Frente, resultando na divisão do movimento separatista em outros grupos (ELIAS, 2009).

Concernente à FLNC, o fim dos anos 1980 e início dos 1990 foi marcado por divisões internas e fragmentações. Seguindo sucessivas disputas internas pelo seu controle, parcela significativa da estrutura da Frente de Libertação colapsou entre 1988 e 1990. Antigos líderes, como Pierre Poggioli, deixaram o movimento e iniciaram partidos políticos que detinham ramificações no formato de grupos clandestinos. Em 1990, o FLNC se dividiu novamente com a formação do “FLNC canal habitual”, com o Movimento pela Autodeterminação (MPA) atuando como sua representação política, e “FLNC canal histórico” que detinha em líderes tradicionais, como Poggioli, os seus principais representantes. Em 1992, a facção “canal histórico” do FLNC – representada pelo partido Cuncolta Naziunalista – buscou alianças com partidos moderados, como o UPC, pertencentes ao movimento constitucional pela autonomia local. Nota-se que, nas décadas anteriores, o UPC foi a principal vertente do movimento autonomista, apresentando-se como uma linha constitucional que o FLNC histórico buscava apoio. No mesmo ano, a recusa de parcela dos membros do FLNC histórico em abandonar o uso da violência levou ao colapso da aliança até então intitulada Nação Corsa. Assim, contendo apenas o Cuncolta Naziunalista, a aliança se tornou a representação eleitoral do movimento radical nacionalista, diretamente ligada à FLNC canal histórico (ELIAS, 2009).

Uma nova fase do movimento nacionalista corso foi iniciada em fevereiro de 1998 com o assassinato do préfet francês na Córsega, Claude Erignac, por membros de um grupo separatista, dentre eles Yvan Colonna, morto em março de 2022. Buscando uma tentativa de estabelecer uma “política de reconciliação” entre os diversos setores do movimento (CRETTIEZ; SOMMIER, 2002), entre 1998 e 1999, a maioria dos grupos nacionalistas legalizados se juntaram na formação de uma aliança eleitoral chamada Unità. Similarmente, grupos clandestinos seguiram o caminho da reunificação após anos de divisões, estabelecendo a FLNC União de Combatentes. Entretanto, nos três anos seguintes, divergências internas novamente resultaram na fragmentação da união dos grupos legais e clandestinos.

No âmbito dos partidos políticos nacionalistas, em 2004, a fragmentação elevou o número de partidos dessa vertente a aproximadamente 18, minimizando as possibilidades de sucessos eleitorais com a divisão dos votos do eleitorado nacionalista (ROUX, 2005). Apesar disso, nesse período, a totalidade do movimento nacionalista se apresentava como a segunda maior força na política corsa (ELIAS, 2009).  Diversas facções da FLNC continuaram a realizar atentados contra autoridades francesas na Córsega entre 2000 e 2014. Apenas nos últimos quatro meses de 2011 foram realizados 38 ataques com bombas na ilha (MALONEY, 2012).

Com o acentuado declínio do impacto da luta armada no âmbito político desde os anos 1980 e com as crescentes críticas desde o assassinato de Erignac em 1998, além do crescimento de partidos autonomistas e separatistas moderados, a campanha armada começava a perder força em 2014, após 38 anos. Em junho daquele ano, após tentativas de reconstituição de sua unidade como movimento, a FLNC União de Combatentes anunciou que iniciaria um processo unilateral de desmilitarização e de saída progressiva da clandestinidade. Em contrapartida, uma antiga facção da FLNC, União de Combatentes, intitulada FLNC-22, formada em meados dos anos 2000, continuaria na ativa. Com a inédita formação de um governo local liderado por uma coalizão de partidos nacionalistas em 2015, esse último grande grupo armado declarou sua adesão ao cessar-fogo em 2016.

Entre 1975 e 2016, além de centenas de feridos, 13 civis e oficiais do governo local foram mortos por meio de operações de assassinato organizadas por grupos separatistas e, apenas nos anos 1990, ao menos 20 membros do movimento nacionalista foram mortos em conflitos internos de facção. Nos primeiros nove meses de 1990, o segundo ano com mais vítimas do conflito corso, 30 pessoas perderam suas vidas em atentados separatistas. Cinco anos depois, em 1995, 36 indivíduos morreram em uma série de ataques terroristas reivindicados por grupos separatistas, elevando o número de mortos para mais de 80 desde 1976 (MARP, 2004).

Entretanto, episódios de violência envolvendo grupos nacionalistas continuaram presentes na Córsega após o fim das operações armadas das principais facções da FLNC entre 2014 e 2016. Nesses anos, destacam-se os ataques coordenados com explosivos de março de 2019 que ocorreram na ilha semanas antes da visita do presidente francês, Emmanuel Macron. Três dias antes da visita presidencial, dispositivos explosivos foram encontrados em prédios governamentais, destacando a possibilidade de existência de pequenos grupos nacionalistas dispostos a ocupar o espaço deixado pela FLNC no âmbito da luta armada pela independência. Nesse contexto, em setembro de 2019, o fim das hostilidades seria fragilizado pelo anúncio feito por um grupo nacionalista armado, de que a FLNC seria reestabelecida para retomar a campanha armada, além de emitir ameaças a estrangeiros residentes e proprietários de terras na Córsega.

Assim, os eventos de março de 2022 após o ataque ao antigo membro da FNLC, e que resultaram em mais de uma centena de feridos, demonstram a persistência do movimento nacionalista na Córsega e a violência que continua a marcar ao menos uma parcela do debate sobre a autonomia ou independência, ainda que a luta armada tenha sido encerrada. Contudo, apesar da centralização do Estado francês, grandemente influenciada pelo antigo regime absolutista, o desejo de reconhecimento de um status especial para a Córsega se apresenta em ascendência. Os protestos de março de 2022 aceleraram a pressão local para o avanço dos planos do governo francês em rever a posição da Córsega, sendo a autonomia interna uma das principais soluções debatidas em Paris para evitar a radicalização de setores que apoiam a autonomia. Em meio aos protestos na Córsega e ao debate em Paris, a NLFC União de Combatentes anunciou que poderá retornar às atividades armadas caso o governo francês não apresente propostas sobre a autonomia. Destarte, o ataque a Yvan Colonna trouxe novamente as tensões dos movimentos nacionalistas locais ao centro do debate político na Córsega e na França continental e com eles os temores do retorno da violência armada em uma região da Europa Ocidental.

* João Vitor Tossini é doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

Imagem: Vista da ilha de Córsega. Por NASA/Wikimedia Commons.

Referências Bibliográficas

CRETTIEZ, X. and SOMMIER, I. La France Rebelle, Paris: Éditions Michalon, 2002.

ELIAS, Anwen. Minority Nationalist Parties and European Integration: A Comparative Study. Reino Unido, Taylor & Francis, 2009.

GREGORY, Desmond. The Ungovernable Rock: A History of the Anglo-Corsican Kingdom and Its Role in Britain’s Mediterranean Strategy During the Revolutionary War, 1793-1797. London: Fairleigh Dickinson University Press, 1985.

LEFEVRE, M. Géopolitique de la Corse. Le Modèle Républicain en Question, Paris:

L’Harmattan, 2000.

MARP (Minorities at Risk Project). Chronology for Corsicans in France, 2004. Disponível em: https://www.refworld.org/docid/469f388a1d.html Acessado em: 30 maio 2022.

SIMMS, Brendan. Three Victories and a Defeat: The Rise and Fall of the First British Empire, 1714-1783. 2008.

PELLEGRINETTI, J; ROVERE, A. La Corse et la République: la Vie Politique de la Fin du Second Empire au Début du XXIe Siècle. Paris, 2004.

RAMSAY, Robert. The Corsican time-bomb. Manchester | Dover, N.H, Manchester University Press, 1983.

Roux, C. ‘Corse: vote à gauche, île de droite’, in B. Dolez, A. Laurent and C. Patriat (eds), Le Vote Rebelle. Les Élections Régionales De Mars 2004; Dijon: Editions Universitaires de Dijon, 2005.

SIMEONI, E. Corse: La Volonte d’Etre , Ajaccio: Albiana. 1995.

A extrema-direita na Guerra da Ucrânia: combatentes estrangeiros e a ameaça transnacional – Parte 2

Álvaro Anis Amyuni*

Na primeira parte do texto, analisei os desenvolvimentos endógenos à Ucrânia que contribuíram para a criação do ambiente permissivo à atuação da extrema-direita ucraniana a partir do Euromaidan e durante a guerra civil. Nesta segunda parte é analisado o desenvolvimento exógeno, ou seja, as conexões transnacionais estabelecidas entre os atores de extrema-direita ucranianos e russos com grupos e indivíduos estrangeiros ao conflito.

Os símbolos, atos e ideologia do desenvolvimento endógeno da extrema-direita ucraniana nos permitem perceber e analisar as consequências transnacionais da atuação de atores abertamente extremistas. O desenvolvimento exógeno se refere à atração que grupos como Azov exercem sobre atores de extrema-direita externos à região, recrutando indivíduos para participar do conflito e estabelecendo laços transnacionais com outras organizações.

Entre 2014 e 2021, estima-se que mais de 17 mil “combatentes estrangeiros” (em inglês, “foreign fighters”) atuaram no conflito em Donbass – e não apenas do lado ucraniano. Segundo Christian Kaunert e Alex Mackenzie (2021), desse total, cerca de 15 mil são russos, robustecendo as forças das repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk, sendo 3 mil desse contingente pró-Ucrânia. Os demais, 2 mil, dividem-se entre combatentes de países como Belarus e Sérvia (majoritariamente pró-Rússia) e  combatentes vindos do Ocidente. A partir da deflagração da guerra em 2022, esse número aumentou consideravelmente. Nas semanas de escalada das tensões e preparação para o conflito, houve uma mobilização da inteligência de alguns países ocidentais para impedir a saída de cidadãos para lutar na Ucrânia, como foi o caso do Reino Unido.

Diante desse número expressivo de combatentes estrangeiros, é inevitável comparar a situação dos últimos 8 anos na Ucrânia com guerras que gestaram o surgimento de grupos extremistas e terroristas durante o século XX e no século XXI. O precedente mais próximo é a Guerra da Síria, quando milhares de indivíduos de países ocidentais se radicalizaram através do Estado Islâmico, inclusive criando células terroristas em seus países de origem que produziram atentados como o de Paris (2015). A semelhança com a Síria para por aí, visto que o recrutamento de estrangeiros (até o momento) não é destinado à criação de células terroristas ou exclusivamente com o objetivo de serem praticados atos violentos quando retornarem aos seus países de origem.

Entretanto, o conflito na Ucrânia já gerou conexões transnacionais importantes entre atores do Ocidente com organizações paramilitares russas. É o caso do Movimento Imperial Russo (MIR) e do Movimento de Resistência Nórdica (MRN). O primeiro, um grupo paramilitar ultranacionalista e supremacista russo que atua na Ucrânia e na Rússia que recruta indivíduos de países ocidentais para o treinamento militar. O segundo, um grupo neonazista atuante principalmente na Suécia e responsável pelo ataque a um campo de refugiados em Gotemburgo, em 2017, logo após seus perpetradores terem viajado para a Rússia para participarem de um treinamento oferecido pelo MIR. Destaca-se que o MIR foi designado como um grupo terrorista pelos EUA e Canadá em 2020 e 2021, respectivamente, apesar de sua atividade principal não ser o engajamento em uma campanha terrorista internacional contra o Ocidente.

O caso do MIR mostra que o problema não se concentra somente nas organizações ucranianas. A Rússia possui uma perigosa cena de extrema-direita que atua a partir da vista grossa do governo Putin, este de forte inspiração ultranacionalista e conservadora. Além da atração de combatentes ocidentais, os grupos paramilitares russos construíram um forte nexo pan-eslavista com grupos e indivíduos de países dos Bálcãs, especialmente a Sérvia.

Os grupos de extrema-direita ucranianos não apenas realizam recrutamentos como se tornaram símbolos de referência para extremistas em atentados e movimentos políticos em outros países. No atentado de Christchurch na Nova Zelândia, em 2019, o perpetrador, Brenton Tarrant, exibiu o símbolo do Regimento Azov em seu “manifesto” com o objetivo de propagar e inspirar outros terroristas. Apesar disso, a comissão de investigação neozelandesa não comprovou uma relação direta de Tarrant com Azov.

Outro exemplo foi o caso do Brasil, no auge das manifestações bolsonaristas, em 2020, quando militantes radicais manifestavam a intenção de “ucranizar” o Brasil, fazendo referência à milicianização das forças armadas, a própria guerra civil que a Ucrânia se afundou desde 2014 e à inspiração ideológica racista, anticomunista e neofascista dos grupos de extrema-direita ucranianos, ilustrada pela presença de símbolos de grupos como o Setor Direito.

O fato de combatentes estrangeiros ocidentais e não-ocidentais atuarem dos dois lados do conflito Rússia-Ucrânia nos impede de fazer uma análise simplista dessa “atração ideológica” sobre a qual Putin remete e que busca utilizar como uma das justificativas para a guerra atual. Por um lado, a Ucrânia representa para parte da extrema-direita ocidental a “fronteira” do Ocidente, um território que deve ser defendido contra forças anti-ocidentais, como a Rússia. Há também a inspiração tomada por neonazistas e supremacistas do passado colaboracionista ucraniano com o nazismo na Segunda Guerra Mundial, fato também exaltado pelo Regimento Azov. Do outro lado, a atração em relação a Rússia de Putin se encontra na defesa de uma nação-modelo de comunidade étnica “pura” que subjuga outras etnias, além do relacionamento íntimo do poder político do Kremlin com a Igreja Ortodoxa.

Outra possibilidade vai além das proximidades ideológicas e encontra a oportunidade de aperfeiçoamento tático e estratégico individual e grupal, como é o caso do relacionamento entre o MRN e o MIR. Não necessariamente, entretanto, a razão para peregrinação está atrelada a ideologias de extrema-direita. Kaunert e Mackenzie traçaram vários veteranos de guerra norte-americanos que enxergam na guerra da Ucrânia uma oportunidade de voltarem à ativa, não possuindo necessariamente uma inclinação ideológica à direita. Porém, há o risco de radicalização no conflito, fazendo com que indivíduos atraídos pela ideia de realizar “atos heroicos” em uma situação de guerra entrem em contato com as ideologias de grupos como Azov e MIR e se tornem adeptos.

Toda essa complexidade envolvendo o relacionamento transnacional da extrema-direita com a guerra da Ucrânia encontra parte de sua razão na forma como aquela se manifesta e se organiza desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Roger Griffin (2003), cientista político dedicado ao estudo do fascismo e do neofascismo, afirma que a extrema-direita no cenário hostil à sua atuação e crescimento do pós-guerra passou a não mais se organizar de forma centralizada, em movimentos de massa, e sim a partir de “grupúsculos” que agem de forma independente. Não existe uma liderança central que dite os rumos ideológicos e concentre carisma o suficiente para unificar a extrema-direita nacional e internacionalmente. Isso se aplica principalmente para grupos violentos que rejeitam atuações pela via democrática/institucional e que são os principais reprodutores de ideologias que remetem ao nazismo e ao fascismo.

Assim, apesar dessa autonomia, a atuação concorrente e cooperativa entre os grupos é o que cria um ambiente ideológico comum, mas ao mesmo tempo adaptado à realidade nacional de cada ator, sendo justamente essa falta de centralidade o que permite a sua sobrevivência contra tentativas de governos de sufocá-los. Nos Estados Unidos, por exemplo, supremacistas brancos resumiram sua estratégia de atuação como “resistência sem liderança” e sumariza muito bem a concepção de “grupúsculo” proposta por Griffin ao não encorajar filiações formais de indivíduos a grupos bem estruturados, mas sim ações violentas reativas individuais.

Essa característica tem sido intensificada com o advento da internet, onde há um ambiente propício para a rápida propagação transnacional de ideias de extrema-direita e articulações em torno de práticas violentas. A comunicação on-line se dá principalmente por meio de símbolos, algo que a extrema-direita envolvida no conflito ucraniano não deixa a desejar. A extrema-direita grupuscular não tem como objetivo alcançar “corações e mentes” de multidões, por outro lado, seus atores, inclusive, almejam o confronto. Por isso, grupos como Azov, o MIR, o Setor Direito e a milícia Wagner[1] servem de oportunidade para suprir o “fetiche” militarista comungado entre militantes da extrema-direita global.

Mas não devemos esperar que haja uma tomada de liderança pelos grupos envolvidos no conflito russo-ucraniano para formar grupos paramilitares “filiados” sob sua tutela em outros países. Eles servem a diversos propósitos para atores estrangeiros de extrema-direita, principalmente para dar experiência de campo para a prática de violência. Mesmo assim, esses nexos não estão claros, ou seja, nem todos os combatentes estrangeiros de extrema-direita irão, de fato, realizar atentados terroristas quando retornarem a seus países de origem ou organizar movimentos para “ucranizar” a sua sociedade. O impacto dos combatentes estrangeiros na guerra em si é difícil de ser mensurado, mas se apresenta como a minoria em ambos os lados.

Internamente para a Ucrânia e para a Rússia a permissividade para a atuação da extrema-direita na guerra tem um potencial nocivo muito maior. Primeiro, pela possibilidade de a ideologia influenciar ações violentas que violem os direitos humanos da população civil a partir do estabelecimento de critérios étnicos e raciais. O governo russo repetidamente acusa as forças do Regimento Azov de terem praticado limpeza étnica em Donbass e a Ucrânia acusa as forças russas de terem provocado o Massacre de Bucha.

Segundo, pelo recrudescimento político dos grupos radicais no pós-guerra, especialmente na Ucrânia, onde há uma dependência muito maior das forças milicianas de extrema-direita. Não há qualquer sinal de Zelensky que aponte para uma desmobilização dessas forças no pós-conflito e o presidente segue negando a ligação do Regimento Azov com o neonazismo. Trata-se menos de uma vinculação/defesa ideológica de Zelensky a esses grupos e mais uma posição baseada em um pragmatismo extremo visando negar a narrativa de Putin sobre a ligação do Estado ucraniano com o neonazismo. Além disso, Zelensky se vê diante de uma armadilha quase sem saída, já que caso repreenda essas milícias durante ou após o conflito, pode perder a guerra pela redução do contingente de seu exército e ainda criar um inimigo interno, arriscando a estabilidade de seu próprio governo.

De qualquer maneira, falta espaço no atual estágio do conflito para mensurar o real impacto e potencial da atuação da extrema-direita. A guerra da Ucrânia apresenta-se como um elemento ideológico e organizacional importante para a extrema-direita transnacional, mas a essência grupuscular se impõe, impedindo uma articulação que supere a barreira das realidades nacionais dos atores em direção a um movimento unificado e centralizado nos atores envolvidos na guerra. Isso não significa que o potencial dos combatentes estrangeiros seja diminuído, no entanto, será necessário que seus países de origem estejam atentos às movimentações – em campo e on-line – destes indivíduos quando retornarem.

[1] Empresa militar privada que é financiada secretamente pelo Kremlin. Atua na Guerra da Ucrânia, com passado importante em conflitos na África. Seus fundadores comungam de ideias supremacistas e ultranacionalistas.

Imagem em destaque: Stanislav Nepochatov/Flickr.

*Álvaro Anis Amyuni é mestrando do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, onde desenvolve pesquisa sobre o terrorismo transnacional de extrema-direita. É pesquisador do Observatório de Conflitos do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (OC-GEDES). Também é pesquisador júnior do Observatório da Extrema Direita (OED Brasil).

A extrema-direita na Guerra da Ucrânia: do Euromaidan às fileiras do exército ucraniano – Parte 1

Álvaro Anis Amyuni*

Desde o início da Guerra da Ucrânia, em fevereiro de 2022, uma das principais justificativas do presidente russo, Vladimir Putin, para a invasão ao país vizinho é o alegado domínio neonazista na região. Putin tenta emular a luta nacionalista dos soviéticos contra o nazismo na Segunda Guerra Mundial a partir do superdimensionamento da presença de militantes supremacistas brancos, neonazistas e de extrema-direita nas fileiras do exército ucraniano, especialmente no Regimento Azov.

Desde os protestos do Euromaidan que deflagraram a crise que a Ucrânia vive desde 2013 há, de fato, um ambiente bastante permissivo ao desenvolvimento de grupos de extrema-direita no país, sobretudo a partir de dois movimentos importantes. O primeiro, endógeno, que envolve os grupos políticos e armados que participaram ativamente das ações violentas durante e após o Euromaidan.

O segundo, exógeno, está relacionado à força de atração que grupos envolvidos no conflito civil-militar, que se formou no leste ucraniano a partir de 2014, exercem sobre indivíduos e grupos da extrema-direita transnacional, transformando a Ucrânia em um local de peregrinação e treinamento paramilitar. A narrativa de Putin explora esses dois fatores, bem como as conexões oficiais estabelecidas entre determinados grupos paramilitares de extrema-direita – como o Azov – e o Estado ucraniano. Mas, qual o real tamanho da ameaça posta pela extrema-direita no conflito ucraniano e quais são as possíveis consequências transnacionais de sua atuação durante e após a guerra atual?

A primeira parte deste texto está concentrada em responder esse questionamento pela análise do movimento endógeno de permissividade à extrema-direita gestado nos protestos do Euromaidan em 2013 e na guerra civil na região de Donbass a partir de 2014. Na segunda parte, concentro a análise no movimento exógeno, sobre as consequências internas e externas da presença de combatentes estrangeiros da extrema-direita na guerra.

Os protestos da praça Maidan em Kiev reuniram grupos políticos de diversas orientações ideológicas e uma diversidade de objetivos que iam desde a retomada das negociações para a entrada do país no bloco da União Europeia – acordo interrompido pelo presidente, pró-Rússia, Viktor Yanukovitch – até a deposição do governo incumbente e a instalação de um novo regime ultranacionalista e pró-Ocidente. Nesta parcela mais extremista, se destacavam organizações e partidos de direita, como o Svoboda e o Setor Direito, que foram atores protagonistas de ataques violentos contra políticos e a polícia.

Cientistas políticos ocidentais mediram o impacto da opinião popular sobre as ações desses grupos a partir do nível de aceitação eleitoral dos ucranianos à extrema-direita, que se provou baixo nas eleições de 2014 (pós-Euromaidan) quando não conseguiram sequer superar a barreira de 5% dos votos. Levando em consideração o cenário atual de guerra, o insucesso desses partidos continua a ser a principal fonte de refutação à narrativa de Putin. Argumenta-se que há pouca adesão ao extremismo de direita na Ucrânia e, por isso, não existe um problema de escala nacional como um governo abertamente nazista; por outro lado, a presença isolada e diminuta de organizações de extrema-direita.

No entanto, segundo Volodymyr Ischenko (2016), esta não é a melhor maneira de avaliar o impacto dessas organizações na criação de um ambiente propício à atuação da extrema-direita, visto que, apesar do apoio diminuto e de serem minoria nos protestos, tiveram papel central nos confrontos com a polícia em meio à dinâmica dos protestos de massa. Justamente essa escalada de violência, ao lado do aumento das tensões separatistas, também no leste ucraniano, forçou a fuga e renúncia do presidente Yanukovitch.

Paralelamente, em meio ao cenário de caos social com a iminente perspectiva de combate das forças ucranianas com separatistas pró-Rússia na região de Donbass, emergiram grupos paramilitares informais e semi-informais com a intenção de defender o país de uma invasão russa. Como afirma Andreas Umland (2019), esses grupos foram rotulados de “Batalhões de Defesa Territorial”, “Destacamentos de Patrulha Policial Especiais”, “Regimentos de Operações Especiais”, entre outros, tendo um caráter fortemente nacionalista e telúrico, além de justificar sua criação a partir da impotência do exército ucraniano. Esses batalhões “voluntaristas”, como ficaram conhecidos, foram total ou parcialmente absorvidos pelo exército ucraniano durante o mandato presidencial de Petro Poroshenko.

O Regimento Azov, nesse sentido, foi o grupo mais destacado por conta do feito de recapturar a cidade de Mariupol das forças pró-Rússia em junho de 2014, fazendo com que fosse absorvido como parte formal do exército, sendo designado oficialmente como o “Destacamento de Operações Especiais, Azov”. Umland (2019) ressalta que os fundadores do Azov são ultranacionalistas ucranianos que começaram o ativismo político na era pós-soviética em organizações como a Assembleia Social-Nacional (ASN), o Patriotas da Ucrânia (PU), a Divisão Misantrópica e a Bratstvo – organizações que, em maior ou menor grau, contribuíram para a criação do Batalhão/Regimento com sua militância e articulação política. A ideologia de Azov é manifestada em seus símbolos que remetem aos adotados por nazistas, como o Sol Negro e o Wolfsangel, símbolo da 2ª Divisão da SS Das Reich.

Aos poucos e paralelamente ao processo de absorção nas forças armadas da Ucrânia, o grupo se esforçou para diminuir a sua associação ao nazismo e fascismo, retirando, por exemplo, o Sol Negro de seu emblema oficial. Durante a guerra de 2022 houve uma nova atualização da insígnia, retirando também o Wolfsangel. Muitas de suas lideranças abertamente supremacistas foram substituídas e seus líderes atuais dizem que o grupo está aberto a qualquer um que deseje “defender a Ucrânia”, independentemente de qual seja a sua ideologia ou crença pessoal. De fato, é difícil mensurar a quantidade de neonazistas e supremacistas convictos nas fileiras de Azov. Mesmo com essa alegada abertura a soldados de fora do círculo da extrema-direita, as referências e simbologias se mantêm, o que pode ser percebido em imagens recentes da guerra em que soldados do Regimento apareceram utilizando o símbolo do Sol Negro em seus uniformes.

Assim, a extrema-direita na Ucrânia opera sob a vigilância negligente do Estado – e já se trata de um problema perpetuado por mais de um governo. Por essas forças terem rapidamente se organizado em estruturas paramilitares, ganharam uma força política tal que, ao mesmo tempo, foi capaz de fortalecer o débil exército ucraniano e enfraquecer o monopólio legítimo do uso da força das mãos do Estado. Adicionado a isso, os feitos “heroicos” na guerra civil desde 2014, os batalhões voluntaristas exerceram o papel de proteger a população, criando uma relação de fascínio diante da incapacidade do governo de oferecer segurança contra as forças russas e separatistas. Este fascínio, contudo, logo transbordou as fronteiras do conflito, capturando o interesse de atores externos sobre os desenvolvimentos internos da extrema-direita ucraniana, como abordo na parte 2 do texto.

 

*Álvaro Anis Amyuni é mestrando do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, onde desenvolve pesquisa sobre o terrorismo transnacional de extrema-direita. É pesquisador do Observatório de Conflitos do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (OC-GEDES). Também é pesquisador júnior do Observatório da Extrema Direita (OED Brasil).

Imagem em destaque: Stanislav Nepochatov/Flickr

Imagens no corpo do texto: Antigo Símbolo do Batalhão Azov, uma combinação do Sol Negro e o Wolfsangel flutuando em ondas do Mar de Azov, referência geográfica do nome do grupo. Fonte: Wikimedia Commons.

Guerra na Ucrânia e seu reflexo na política internacional africana

Laurindo Tchinhama*

Como os Estados africanos se posicionaram sobre a guerra na Ucrânia? O posicionamento dos países africanos na votação da resolução da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2 de março, para condenar a invasão russa à Ucrânia chamou atenção da comunidade internacional porque juntos representavam 27, 97% dos votos. No campo político, boa parte dos Estados africanos tiveram atitudes convergentes embasadas nas relações históricas com as partes em conflito. No âmbito humanitário, assistiu-se ao nível de racismo e xenofobia contra as pessoas negras, em particular os africanos e oriundos do Oriente Médio – o que influenciou indiretamente o posicionamento dos governos africanos.

No tocante à atitude dos Estados africanos na votação da resolução para condenação da invasão russa, foram um total de 28 votos a favor, na sua maioria países com relações estreitas com o Ocidente no setor militar, envolvendo tanto bases militares como operações conjuntas. Por outro lado, houve 17 abstenções de países como, por exemplo, Argélia, Burundi, República Centro-Africana, Senegal, África do Sul, Sudão, Sudão do Sul, Madagascar, Namíbia, Uganda, Zimbábue, República Centro Africana (RCA), Mali e Angola, na sua maioria regimes considerados autoritários ou híbridos. Enquanto a Guiné, Burquina Faso, Togo, Camarões e Marrocos não participaram da votação; e a Eritreia foi o único país africano que votou contra.

Dois argumentos ajudam a entender o posicionamento dos africanos. O primeiro é que se trata de um comportamento político-diplomático. Dentre as razões deste argumento estão o elevado grau de dependência da Rússia e o medo de abalar as alianças estabelecidas com Moscou. Como exemplos que ilustram tal dependência, temos os casos da RCA, Sudão, Líbia, Guine e o Mali, que enfrentam instabilidade política e necessitam do suporte russo no setor de defesa e segurança. A empresa privada de segurança russa, Wagner, por exemplo, atua na RCA no setor de segurança do Estado e há indícios de abusos cometidos pela empresa contra os Direitos Humanos, sendo alvo de críticas pelos observadores do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos. Embora a RCA alegue estar investigando tais crimes, as informações indicam que pode ser infrutífero visto que parte da equipe de segurança pessoal do presidente do país, Faustin-Archange Touadera, é composta por membros da empresa. Na Líbia, a empresa possui cerca de 1.200 mercenários que atuam no suporte ao presidente Khalifa Haftar (LYAMMOURI; EDDAZI, 2020).

Ainda nesta linha, é imperioso salientar que muitos países africanos são compradores de armamentos  tanto da Rússia quanto da Ucrânia, assim como também da Bielorrússia, um dos principais aliados russos no conflito. Ademais, as relações Rússia-África nos últimos anos se intensificaram sobretudo a partir do primeiro Fórum Econômico realizado em Sochi, 2019, do qual 43 estados africanos participaram, quando foi fechado um investimento de cerca de US$ 12,5 bilhões de dólares em negócios no continente (LYAMMOURI; EDDAZI, 2020). No fórum foram estabelecidas parcerias nos setores político, securitário, comercial e econômico, jurídico, científico, técnico, humanitário, informacional e ambiental em todo continente. Além disso, parcerias no setor de infraestrutura energética com o Sudão, Etiópia, República Democrática do Congo (RDC) se destacam na política externa russa para África (INSTITUTE FOR GLOBAL DIALOGUE, 2020).

A neutralidade de alguns países chamou atenção da comunidade internacional, em especial dos Estados Unidos da América (EUA). O país criticou a falta de postura clara dos africanos diante da guerra, o que levou alguns estadistas africanos a se posicionarem criticamente. O presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, declarou que “os países mais poderosos tendem a usar sua posição como membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU para servir seus interesses nacionais em vez dos interesses da paz e estabilidade globais”. Vale lembrar que a África do Sul é um dos principais parceiros estratégicos russos no continente, além de membro dos BRICS, grupo das economias emergentes, do qual a Rússia é integrante. No entanto, esta declaração reforça a longa discussão acerca da reforma do Conselho de Segurança da ONU como um dos pilares da crise que a segurança internacional vem enfrentando nos últimos anos. Ademais, na mesma linha, o embaixador do Quênia no Conselho de Segurança da ONU, Martin Kimani, observou haver uma tendência dos membros permanentes do Conselho da ONU de violarem o Direito Internacional.

Quando se analisa a posição político-diplomática no âmbito regional, o procedimento dos Estados africanos foi díspar. A Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), composta por 15 países, e a União Africana (UA) condenaram a invasão russa. A base argumentativa da UA sobre a violação do Direito Internacional, á integridade territorial e à soberania cometidos pela Rússia, também condenou o racismo escancarado contra os africanos que solicitaram refúgio aos países vizinhos, os quais priorizaram os ucranianos em detrimento dos africanos.

Percebe-se que o argumento político-diplomático, de um lado, está alicerçado nas relações bilaterais dos africanos, na dependência do setor de defesa, inteligência e segurança, especificamente, assim como na reaproximação da Rússia com o continente. É uma forma de preservar o cortejo com os russos além das relações históricas que alguns países estabeleceram durante e no pós-Guerra Fria, dado que o país apoiava os movimentos de libertação na África.

O representante queniano, Martin Kimani, comparou a invasão russa com o colonialismo afirmando que “[…] esta situação ecoa nossa história. O Quênia e quase todos os países africanos nasceram do fim de um império. Nossas fronteiras não foram traçadas por nós mesmos. Foram traçadas nas distantes metrópoles coloniais de Londres, Paris e Lisboa, sem considerar as nações antigas que eles separaram”.

Um segundo argumento que influenciou o posicionamento dos Estados africanos, ainda que indiretamente, está relacionado à questão humanitária. O comportamento das entidades ou agentes fronteiriços diante do fluxo de refugiados foi observado em vários jornais internacionais pelo caráter xenofóbico e racista contra os não ucranianos, que eram rejeitados nos meios de transportes. Nesse sentido, o fluxo migratório de ucranianos para os países vizinhos revisitou a questão racial e xenofóbica contra os refugiados não ucranianos, porém residentes no país. Declarações e comportamentos xenofóbicos das entidades migratórias e da mídia elucidaram a diferença na definição de quem deve ser salvo, protegido ou acolhido e, entre os critérios estava a cor da pele e a origem. Os migrantes da África, Índia, Oriente Médio e demais regiões, residentes na Ucrânia, foram impedidos de entrar nos países acolhedores ou de acessar os meios de transportes para se deslocarem.  De um total de 76.000 estudantes residentes na Ucrânia, 16.000 são africanos, ou seja, três em cada dez estudantes estrangeiros na Ucrânia são africanos e o país é o quinto destino mais procurado depois da França, Estados Unidos, Reino Unido e Malásia.

A ajuda humanitária e a solidariedade são seletivas, ficando evidente que algumas vidas importam mais e outras menos – fato que apenas reforça como a expansão do movimento Black Lives Matter torna-se cada vez mais importante na luta contra o racismo internacional e a xenofobia descarada como a presenciada na guerra. Um exemplo claro foi o argumento do primeiro ministro búlgaro, Kiril Petkov de que “estes não são os refugiados a que estamos acostumados. … Essas pessoas são europeias. … Essas pessoas são inteligentes; são pessoas educadas. … Esta não é a onda de refugiados a que estamos acostumados, pessoas que não tínhamos certeza sobre sua identidade, pessoas com passado obscuro, que poderiam ter sido até terroristas”.

Diante da discriminação e violência desenfreada, países africanos como Zimbábue, Angola, Nigéria já retiraram os seus cidadãos da Ucrânia e os demais Estados, como Gana, África do Sul e Costa do Marfim, têm feito esforços para salvarem seus cidadãos. Em tom crítico, a declaração do presidente nigeriano reforçou que “todos os que fogem da situação de conflito têm o mesmo direito de passagem segura sob a convenção da ONU e a cor de seu passaporte ou de sua pele não deve fazer diferença”. Como resposta, a Nigeria fretou aviões para retirar seus cidadãos que conseguiram chegar nos países vizinhos.

Diante do exposto, compreende-se que os argumentos político-diplomático e o humanitário demonstram os fundamentos da política internacional africana frente ao conflito Rússia-Ucrânia, sob pano de fundo das relações internacionais construída ao longo da Guerra Fria, principalmente. De um lado, afere-se que as relações históricas da África com o Ocidente, marcada pela colonização e luta anticolonial, ainda influenciam diretamente na decisão da política internacional e nas relações bilaterais desses Estados com os russos, visto que estes apoiaram os movimentos de libertação nacional. Assim, as relações estabelecidas nos últimos anos com a Rússia, com destaque ao Fórum econômico em Sochi, 2019, demonstram ruptura dos africanos em relação à dependência do Ocidente, apesar destes ainda exercerem maior influência na região, e influenciaram diretamente na votação na ONU. Por último, os atos xenofóbicos presenciados na guerra ilustram que a luta contra o racismo sempre foi uma luta transnacional que merece olhares críticos.

 

Referências Bibliográficas

INSTITUTE FOR GLOBAL DIALOGUE. PROCEEDINGS REPORT Dialogue Russia-Africa Summit. Sochi: [s. n.], 2020.

LYAMMOURI, R.; EDDAZI, Y. Russian Interference in Africa: Disinformation and Mercenaries. Policy Brief for the new South, Rabat, no. June, p. 6, 2020.

 

* Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp, Unicamp, PUC-SP), membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e pesquisador do Observatório de Conflitos.

Imagem: Sessão emergencial da Assembleia Geral da ONU. Por: UN Photo/Cia Pak.

 

Israel e a guerra na Ucrânia: visita de Bennett à Rússia e discurso de Zelensky ao Knesset

Karina Stange Calandrin*

 

No dia 20 de março, o Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky proferiu um discurso ao parlamento israelense (Knesset). O pronunciamento compõe uma série de aparições públicas que Zelensky vem realizando no intuito de angariar apoio às forças ucranianas. O Congresso dos Estados Unidos, a Casa dos Comuns na Grã-Bretanha, o Bundestag alemão e o parlamento europeu são outros exemplos de fóruns aos quais o presidente discursou acerca do atual conflito que se arrasta há mais de um mês.

Nos discursos feitos até então, o ucraniano criticou países, sobretudo aqueles que compõem a esfera ocidental, por não providenciarem apoio militar suficiente à Ucrânia. Em relação aos estadunidenses e aos europeus, Zelensky denunciou a relutância em impor uma zona de exclusão aérea sobre o território de seu país. Já para os israelenses, perguntou por quê Israel não teria ainda fornecido à Ucrânia o sistema de defesa antimísseis, por ele chamado de “melhor do mundo”, cunhado de “Iron Dome” ou “Domo de Ferro” em tradução livre.

Diferentemente dos demais discursos, que continham um elevado tom de crítica, para o parlamento israelense, Zelensky, que tem origem judia, deu ênfase à decepção que porventura sentia, como se esperasse um pouco mais por conta da história dos dois países. Ele afirmou que ucranianos escolheram salvar judeus durante o Holocausto, exagerando os fatos de forma a utilizar a emoção com o intuito de criar laços entre os dois países, como sugere a análise de Anshel Pfeffer

Em seu texto, Pfeffer afirma que Zelensky proferiu um discurso fortemente sionista, enfatizando que tanto Ucrânia quanto Israel são nações que buscam a paz para os seus povos e que querem apenas a “permissão para existir”, novamente ressaltando a carga emocional. Nesse contexto, referindo-se às intenções russas em relação à Ucrânia, o presidente citou com admiração uma frase da ex-Primeira-ministra Golda Meir: “nossos inimigos só querem acabar com a nossa existência”. 

Em 5 de março, dias antes do discurso proferido por Zelensky, o Primeiro-ministro israelense, Naftali Bennett, foi até a Rússia se encontrar com Putin com o intuito de mediar o conflito entre Rússia e Ucrânia. Israel, nesse momento, reiterou sua opção por não tomar um lado claro no conflito, decisão que se justifica por conta da relação entre Israel e Rússia no que tange:  (i) a Síria, país com o qual o território israelense faz fronteira; (ii) o Hezbollah, grupo que explicitamente se opõe ao regime israelita e que é apoiado por Moscou; (iii) e o Irã, país que mantém importantes parcerias estratégicas com o Kremlin em torno de seu programa nuclear e que é considerado o maior inimigo de Israel no Sistema Internacional. A adoção de uma certa neutralidade em relação ao conflito que se estende sobre a Ucrânia, assim, pode ser compreendida como um esforço de Israel no sentido de garantir que a Rússia não acionará seus parceiros para arquitetar retaliações contra Jerusalém.

Ademais, o governo israelense entende que a Rússia é responsável pela contenção do Irã e do Hezbollah na Síria, e por isso seria um parceiro importante e estratégico no que tange os interesse israelenses na região. Assim, aderir a uma posição anti-Rússia, ajudando diretamente a Ucrânia com aparatos militares, não seria interessante para Israel no momento, podendo agravar a situação na região, escalando para uma possível guerra, principalmente contra o Hezbollah. 

Zelensky compreende esta situação, por isso, diferente dos outros discursos que proferiu às demais casas legislativas ao redor do mundo, em Israel se utilizou de um discurso com forte carga emocional, visando não os parlamentares, mas sim a opinião pública israelense (a Praça Habima em Tel Aviv estava lotada e bandeiras da Ucrânia eram vistas aos montes). 

A relutância de Israel em se posicionar contra a Rússia decorre de uma série de cálculos que os israelenses consideram vitais para preservar a segurança do país. A Rússia atua como o principal intermediário de Israel na Síria, na qual os israelenses receberam liberdade para perseguir e atacar as milícias xiitas apoiadas pelo Irã, que são vistas como hostis. Esse arranjo único provou ser essencial para a estratégia de Israel em combater o Hezbollah e outros grupos apoiados pelo Irã que vêm se multiplicando na Síria, o que, por sua vez, aumentou as percepções de ameaça dos israelenses.

Israel é capaz de atuar na Síria graças à Rússia, que exerce controle quase total do espaço aéreo do país devastado pela guerra. Israel vê, assim, um grande incentivo em manter seu relacionamento com Moscou, daí a resposta silenciosa à situação na Ucrânia. Qualquer contratempo no relacionamento pode resultar no impedimento de Israel nas operações em território sírio, o que aumentaria a lista de preocupações de segurança israelitas.

Em segundo lugar, Israel passou a ver a Rússia como um ator importante no Oriente Médio para muito além do escopo da Síria. A Rússia exerce forte influência sobre as negociações nucleares iranianas, elevou seu relacionamento com as monarquias do Golfo e vem se posicionando constantemente na região no lugar da liderança estadunidense. Israel está, portanto, altamente motivado a manter seus laços com Moscou. A Rússia poderia indiretamente fortalecer o Irã, o Hezbollah e outros atores hostis se os israelenses se juntassem ao coro ocidental na condenação da Rússia. Portanto, a decisão de Israel de abster-se da condenação aberta, ao mesmo tempo em que busca o diálogo com ambas as capitais, faz parte de uma estratégia mais ampla que considera a cooperação com a Rússia essencial para a segurança israelense.

No que tange o aspecto da política doméstica em Israel, é importante ressaltar que o atual governo se formou recentemente, depois de uma crise política de dois anos que levou os israelenses a quatro eleições, mesmo durante as fases mais críticas da pandemia da Covid-19 no país. O Primeiro-ministro Bennett não possui o mesmo prestígio internacional que seu antecessor, Benjamin Netanyahu. Ele ainda é desconhecido para a maioria dos líderes globais, tem pouca experiência em fóruns multilaterais e com política internacional em geral. Netanyahu, por outro lado, tem não somente maior notoriedade internacional, mas também uma compreensão completa do sistema político estadunidense, uma vez que foi embaixador de Israel nos Estados Unidos antes de entrar para a política israelense, discursou no Congresso e é um veterano da Assembleia Geral da ONU. Esse forte contraste entre os dois desencadeou um debate em Israel, levando alguns especialistas a afirmar que Netanyahu teria sido um negociador muito mais eficaz ao lidar com Putin.

Dessa maneira, o conflito, para além das questões ligadas aos interesses nacionais de Jerusalém, transformou-se também em um impasse político de alto risco em Israel. Considerando o sistema político israelense, um parlamentarismo de coalizão, que atualmente conta com uma coalizão heterogênea (partidos de esquerda, direita e centro formam o atual governo), qualquer ação mais abrupta pode levar a uma crise política e a dissolução do parlamento (neste momento o governo de Bennett já passa por isso, por questões consideradas triviais em comparação a uma possível crise com a Rússia). Dadas as circunstâncias, Bennett tem a possibilidade de suplantar Netanyahu se conseguir balancear a crise de maneira positiva para Israel. Embora Israel seja um mediador improvável entre a Rússia e a Ucrânia, e Bennett seja um candidato ainda mais improvável para a negociação, a oportunidade parece ter chegado a ele. O encontro de Bennett com Putin e seus próximos encontros com os europeus poderiam muito bem se transformar em destaque da sua carreira política e levá-lo a um terreno muito mais seguro na política israelense.

A tomada de decisões pelo governo israelense em relação à guerra na Ucrânia é, em última análise, determinada por cálculos de segurança. Com a Rússia tendo se tornado tão central para a segurança israelense considerando o cenário de sua vizinhança imediata, seria irreal esperar que o país se envolvesse em esforços para antagonizar com Moscou. Em vez disso, ainda no início do conflito Israel optou por um curso de engajamento que busca transformar uma situação potencialmente contenciosa com o Kremlin em uma plataforma para diálogo, mediação e uma abertura para tentar emplacar esforços diplomáticos mais elevados. A manutenção da posição israelense atesta a prevalência do pragmatismo como norteador da política do país e demonstra que o lugar da Rússia na política de Israel se mantém a despeito do andamento da guerra.

* Karina Stange Calandrin é doutora em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), professora da Universidade de Sorocaba e pesquisadora do Observatório de Conflitos. Sua tese de doutorado discutiu o processo decisório em política externa israelense. 

Imagem: Prédio do Knesset. Por: James Emery.