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Os EUA no conflito em Gaza 2023/2024: a preservação da relação especial com Israel

Rodrigo Augusto Duarte Amaral *

“Os Estados Unidos (EUA) estão ao lado do Estado de Israel, tal como temos feito desde o momento em que os EUA se tornaram a primeira nação a reconhecer Israel, 11 minutos após a sua fundação, há 75 anos[1].” (BIDEN, 2023a, tradução nossa). Foi com este discurso inicial que o presidente dos EUA, Joe Biden, revelou o posicionamento sólido e imutável dos EUA que marcou sua posição diante da escalada de conflitualidade entre o Hamas[2] e Israel a partir do dia 7 de outubro de 2023.

Naquele dia, na voz do presidente, os norte-americanos anunciavam: “o povo de Israel está sob ataque, orquestrado por uma organização terrorista, o Hamas” (BIDEN, 2023b, tradução nossa). Não seria a primeira vez que os EUA acusariam o Hamas de ser uma organização terrorista. A primeira vez foi em 1997[3], durante a administração Clinton, após o estabelecimento dos Acordos de Oslo de 1993, que foram explicitamente rejeitados pelo Hamas, por considerá-los restritivos para a autonomia e territorialidade palestinas. Os Acordos de Oslo consagraram o papel do Hamas como uma resistência a Israel e a posição conformista da Organização pela Libertação da Palestina (OLP), inaugurando uma realidade que progressivamente amarraria as mãos do movimento islâmico palestino. De um lado o Hamas comandaria os maiores movimentos contra Oslo em Gaza, por outro lado Israel e os EUA com o endosso da Autoridade Palestina representada pela OLP iniciaram um processo de criminalização do grupo islâmico e opressão de protestos civis. Os atentados de bombardeamento suicida de fevereiro de 1996 comandados pelo Hamas foram a “gota d’água” para a designação do grupo enquanto terrorista (KRISTIANASEN, 1999).

Em 2005, com a inédita desocupação israelense (desde 1967) de Gaza, apoiada pelo presidente Bush à época crescera a expectativa de um território autônomo palestino de facto (ainda que muito reduzido se comparado com a Palestina pré-1948). No entanto, o que se assistiu em Gaza foi o predomínio do argumento contraterrorista que justificou o bloqueio israelense ao território palestino após a vitória do Hamas nas eleições legislativas. Naquele momento, EUA e União Europeia anunciaram que não apoiariam um território administrado por um “grupo terrorista”. Estabelecia-se, então, uma tendência de assimilação da identidade entre a Faixa de Gaza e o Hamas, supondo como um espaço que abriga o “terrorismo internacional” (DOS SANTOS, 2023).

Mas a quem interessa chamar o Hamas de grupo terrorista? Considerando, ou não, a perspectiva crítica de que “um terrorista para um, é um libertador nacional para outro” (ROBINSON, 2004, p.112), a posição oficial dos EUA em designar o grupo como terrorista deve ser lida como politicamente intencionada. Primeiramente, pois essa qualificação destaca os atentados comandados pelo braço paramilitar do grupo, enquanto esconde suas atividades sociais que ganha os corações e mentes de milhares, senão milhões de palestinos e simpatizantes. Em segundo lugar, pois ignora a concepção do terrorismo como tática e aponta como um atributo de determinado ator. Isso é conveniente estrategicamente para os EUA e Israel à medida que encaixa o Hamas em uma categoria de violência extrema que irracionaliza o inimigo, portanto “legitima” qualquer tipo de resposta (ROBINSON, 2004).

Historicamente, o objetivo norte-americano declarado oficialmente quanto ao Hamas consiste em “deter, transformar, marginalizar, ou neutralizar o grupo de tal forma que não represente uma ameaça para a segurança de Israel […] e outros interesses dos EUA – como um proxy do Irã, ou outros atores” (ZANOTTI, 2011, p.1)[4]. Portanto, cabe afirmar que a finalidade tática de acabar com o Hamas é elemento fundamental para solidificação do objetivo de fortalecer o maior aliado estratégico dos EUA no Oriente Médio: Israel; ao passo que enfraquece os inimigos regionais, o maior deles o Irã.

Após os ataques do Hamas a Israel, que de maneira inédita matou mais de 1.100 israelenses, os EUA não apenas se mobilizaram diplomaticamente em favor da autodefesa israelense como intensificaram seu apoio material ao contra-ataque de Israel em Gaza. Os EUA concordaram provisoriamente (por meio de um memorando de entendimento) em fornecer a Israel quase 4 bilhões de dólares por ano até 2028, considerando possíveis financiamentos suplementares para Israel em meio a sua guerra com o Hamas (MASTERS & MERROW, 2024).

Se inicialmente a comunidade internacional se mobilizou em favor de Israel em repúdio ao ataque do Hamas, conforme o conflito se estendeu, a questão do limite da guerra inverteu as interpretações acerca da legitimidade do contra-ataque israelense. Ao observar, por exemplo, a postura da comunidade internacional nas sequentes propostas de cessar-fogo em Gaza nota-se uma expressiva vontade geral pelo encerramento do conflito brecado pela postura relutante dos EUA. Na sua história, os EUA vetaram resoluções críticas a Israel mais do que qualquer outro membro do Conselho de Segurança da ONU. Os EUA vetaram ao menos 89 resoluções do Conselho desde 1945, sendo 45 dos seus vetos foram utilizados em resoluções críticas a Israel, e 33 diziam respeito à ocupação israelense dos territórios palestinos ou ao tratamento dado pelo país ao povo palestino.  Desde o início do conflito, os EUA vetaram três propostas para o cessar-fogo imediato. Na última oportunidade, Linda Thomas-Greenfield, embaixadora de Washington na ONU, disse que não era o momento certo para pedir um cessar-fogo imediato enquanto as negociações entre o Hamas e Israel não se encerrassem.

Mediante as respostas militares desproporcionais de Israel, novos fronts de batalha se abriram no Oriente Médio. Os principais atores que enfrentaram Israel contra os ataques em Gaza ficaram conhecidos como Eixo da Resistência. Trata-se de atores políticos e paramilitares que atacaram Israel como o Hezbolah libanês e os Houthis iemenitas, ou atacaram unidades militares norte-americanas como no caso dos mais de 150 ataques perpetrados pelas Unidades de mobilização popular iraquianas e grupos paramilitares sírios, ambos nos seus respectivos territórios. A resposta norte-americana a esses grupos revelou o envolvimento direto dos EUA no atual conflito no Oriente Médio. Tal cenário desenha linhas de alianças e inimizades claras, onde de um lado os EUA e Israel sustentam a guerra em Gaza ao passo que tentam inibir a insurgência reativa no resto do Oriente Médio. Por outro lado, revelam que o Hamas não está só, ao lado dele diversos grupos políticos islâmicos com braços paramilitares, apoiados (diretamente ou ideologicamente) pelo Irã preenchem o outro lado do campo de batalha.

A partir dos ataques contra unidades militares dos EUA no Iraque e os recorrentes ataques houthiscontra ao menos 10 navios de carga no mar vermelho, viu-se as primeiras incursões militares norte-americanas e britânicas no conflito, inaugurando a OperationProsperity Guardian destinada a responder os ataques houthis desde dezembro de 2023. Naquele instante, os EUA deixaram de ser agente passivo do conflito, atuando militarmente como aliado israelense contra os inimigos do “Eixo da Resistência”.

Seja como ator passivo ou ativo da guerra, os mais de seis meses de conflito revelam a sustentação da tradicional relação especial dos EUA com Israel. O país norte-americano se mostra como único porta-estandarte internacional de sustentação das ações militares israelenses em Gaza. Evidentemente, o papel americano é fundamental na manutenção do conflito. Faz vista grossa para os crimes de guerra israelenses que vitimam mais de 33 mil vítimas civis (13 mil crianças) palestinas que impedem não apenas um cessar-fogo da guerra, mas que se pautem novas discussões sobre autodeterminação e soberania palestina.

* Rodrigo Augusto Duarte Amaral, Doutor em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUCSP), Professor de Relações Internacionais na PUCSP, membro do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais da PUCSP (GECI).

Imagem: The Nation. Por:Brendan Smialowski /Getty

[1]Recomendamos ao leitor acessar a histórica relação entre EUA e Israel desde sua criação: BAR-SIMAN-TOV, Yaacov. The United States and Israel since 1948: a “specialrelationship”?.DiplomaticHistory, v. 22, n. 2, p. 231-262, 1998; SCHOENBAUM, David. The United States and the stateof Israel. Oxford University Press, 1993; CHOMSKY, Noam. FatefulTriangle: The United States, Israel and the Palestinians. Boston: South End Press, 1983; THIES, Cameron G. The United States, Israel, and the search for internationalorder: Socializingstates. Routledge, 2013; REICH, Bernard; POWERS, Shannon. The United States and Israel. In: The Contemporary Middle East. Routledge, 2012. p. 99-119.

[2] Organização política islâmica palestina que governa o território de Gaza e que tem um braço armado paramilitar.

[3]Para mais informações sobre os grupos considerados terroristas segundo os EUA, acessar: <www.state.gov/foreign-terrorist-organizations/> acesso em 04/03/2024.

[4] O relatório de Zanotti (2011) foi produzido como documento oficial do US Congressional Reasearch Service, uma agência do poder legislativo federal localizada na Biblioteca do Congresso, atua como equipe compartilhada exclusivamente para comitês e membros do Congresso dos EUA.

Uma tragédia anunciada: os ataques à Faixa de Gaza e o genocídio palestino

*Carolina Antunes Condé de Lima

Abordar os acontecimentos que começaram no dia 07 de outubro de 2023 na Faixa de Gaza com a apresentação de números e fatos não dá conta da dimensão da tragédia humana que os palestinos estão vivendo. Todos os dias somos assombrados com imagens de corpos sem vida e de destruição, histórias de fome e sede, de desespero e desamparo, ao mesmo tempo que chegam imagens de torturas, saques, humilhações e crimes contra a humanidade praticados pelo exército de ocupação israelense.

De acordo com o Artigo 7 do Estatuto de Roma, são considerados crimes contra a humanidade a “difusão ou ataque sistemático contra qualquer população civil” com o intuito de assassinato, extermínio, escravização, deportação ou transferência forçada de uma população, encarceramento ou severa privação da liberdade física, tortura, violências sexuais de vários tipos, perseguição de um grupo identificável por razões políticas, raciais, nacionais, étnicas, culturais, religiosas e de gênero, desaparecimento forçado de pessoas, apartheid, e outros atos desumanos que, intencionalmente, causam sofrimento, ferimentos contra a saúde física e mental (ICC, 2018).

Com base nos crimes cometidos desde o início desta  última ofensiva, a África do Sul apresentou à Corte Internacional de Justiça (CIJ) no dia 29 de dezembro de 2023, acusação formal contra o Estado de Israel pelo crime de genocídio. Este foi reconhecido pela ONU via Resolução 260 A, de dezembro de 1948, em que se  estabelece  genocídio como  todo “ato cometido com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, em tempos de guerra ou  de paz (UN, 1948). Os juristas sul-africanos listaram inúmeras ações dos últimos quatro meses para justificarem sua ação.

Infelizmente, contudo, esses episódios não tiveram início em outubro de 2023. O texto que segue tem a intenção de remontar esse processo. Desse modo, o texto resume brevemente o cenário atual e, em seguida, apresenta questões históricas que precedem os acontecimentos dos últimos cinco meses e nos ajudam a colocar em perspectiva diversas análises e ações referentes a esses ataques.

Era manhã de sábado, 07 de outubro de 2023, quando começaram a chegar as notícias do ataque do Hamas a cidades israelenses perto da barreira com a Faixa de Gaza, ao sul do país. Na ocasião, 1139 pessoas foram mortas e outras 240 foram feitas reféns pelo grupo palestino. O governo israelense, desde as primeiras horas após o ataque, acusou o Hamas de cometer crimes de guerra, como tortura, estupros e mutilações, acusações negadas pelos membros do grupo. Desde então já se passaram mais de quatro meses de ataques israelenses que vêm causando a destruição de prédios residenciais, hospitais, infraestrutura básica, sítios arqueológicos e monumentos históricos. Ao norte da Faixa de Gaza foi imposta uma política de destruição total, conhecida como “aparar a grama”, que tem como consequência tanto a devastação do território como o genocídio histórico.

A Faixa de Gaza, um dos locais de maior densidade populacional do mundo, se viu ainda mais sufocada com a ida de mais de um milhão de palestinos do norte da região em direção a Rafah, cidade mais ao sul. A situação na fronteira sul teve uma piora considerável após os ataques israelenses a Rafah, declarada zona segura em outubro, que tiveram início na madrugada do dia 12 de fevereiro de 2024. Esses são vistos por especialistas como parte de um plano maior do governo israelense de depopular a Faixa de Gaza por completo, o que abriria espaço para a reocupação da região pelo Estado de Israel.

Antes dessa nova fase de terror, a vida na Faixa de Gaza já era bastante difícil. A população vive sob cerco desde 2007 e era alvo constante de ações militares, racionamento de água, energia e comida, além de ser impedida de circular livremente – ambas as saídas, tanto a de Rafah como a de Erez há anos ficam fechadas por longos períodos e, quando abertas, a passagem é bastante restrita. O cerco a Gaza teve início após o Hamas vencer as eleições representativas da região em 2006, o que não foi aceito pelo governo israelense. No ano seguinte, a Faixa de Gaza foi fechada para o mundo, tornando-a uma grande prisão a céu aberto.

Para entender a situação em Gaza e em toda a Palestina ocupada é preciso voltar na história e reviver um instrumento de dominação bastante conhecido: o colonialismo. Processo histórico que teve início com a expansão europeia no século XV, a qual permitiu a invasão, conquista e exploração dos territórios não-europeus e a violência contra corpos não-brancos desde a imposição dessa organização de mundo. A mesma lógica é reproduzida hoje na Palestina ocupada: em que o Estado de Israel é o colonizador, e a população nativa palestina é a colonizada.

Parte importante da colonização é a percepção de que a colônia é um espaço no qual reina o estado de exceção, dessa forma, ali é permitido que qualquer ato seja praticado, sem que haja julgamento de valor moral sobre o mesmo (Mbembe, 2016). A isso soma-se o recurso da objetificação do colonizado (Fanon, 2021; Said, 2007), a partir do qual as populações não-brancas são relacionadas a animais, doenças ou objetos que podem ser eliminados. A consequência é a percepção de que alguns corpos são descartáveis e indignos de comoção e solidariedade internacional quando grandes crises os afetam. Isso tem impacto direto, por exemplo, na maneira como a grande mídia, nacional ou internacional, aborda questões que envolvem populações não-brancas.

O racismo é elemento central de todo processo de colonização, empregado para justificar violências cotidianas. A violência subjetiva, impulsionada pelos ideais de superioridade racial do branco frente às demais populações do mundo, abre espaço para a violência física contra corpos e territórios. Outra característica é a ocupação e transformação do espaço, com a imposição de barreiras físicas que restringem o movimento livre das populações colonizadas, o que cria espaços restritos aos colonizados. Na Palestina, os checkpoints são uma realidade constante, assim como o impedimento da livre circulação e a construção de barreiras físicas de separação.

A colonização da Palestina pode ser configurada como um colonialismo de substituição e assentamento, ou seja, o objetivo central é deslocar e/ou eliminar a população nativa para que o território seja ocupado pelos colonos, tais quais assistimos nas colonizações da América do Norte, Austrália e Nova Zelândia, por exemplo. Há, contudo, um elemento central para entender a colonização dos territórios palestinos: o sionismo.

Esse movimento político surgiu no centro da comunidade judaica europeia no final do século XIX e sua vertente mais conhecida, capitaneada por Theodor Herzl, defendia a criação de um Estado nacional no território palestino como solução para a perseguição e o antissemitismo milenar dos quais judeus eram vítimas. O sionismo de Herzl partia da premissa de que a colonização deveria ser por e para os judeus, com o deslocamento da população palestina.

Essa característica é determinante para entender a dinâmica de violência que se perpetua na região desde antes da inauguração do Estado de Israel, em maio de 1948. Durante o Mandato Britânico da Palestina (1920-1948), o número de imigrantes judeus na região cresceu de 1.806 imigrantes em 1919 para 8.223 em 1920 (Basel, 2007, p. 215-217). Na década seguinte, entre 1919-1939, 364.519 judeus imigraram para os territórios da Palestina, passando a representar um terço da população na região (no começo do Mandato Britânico, representavam menos de 10% da população total) (Basel, 2007).

Soma-se a isso o processo de compra de terras por agências sionistas de incentivo a imigração, como a Jewish Colonization Association, que passaram a adquirir terras por todo o território palestino com o objetivo de criar cinturões de propriedades que seriam repassadas para o cultivo para aqueles que tivessem interesse em imigrar para o território (Lockman, 2012; Wolfe, 2012). O contexto acabou se tornando um barril de pólvora e deu início a anos de violências entre a população autóctone e aqueles que chegavam com fins de colonização. Desse modo, diferentemente do disseminado, podemos notar que o conflito entre palestinos e israelenses não começa em 1948, mas trinta anos antes, quando o Estado de Israel era apenas uma ideia.

Dentre todos os anos de conflito, dois momentos são os mais conhecidos no contexto pré-1948: a Revolta Árabe de 1936-1939 e o Plano Dalet, iniciado após a  Resolução 181 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em novembro de 1947, que recomendou a partilha do território do Mandato Britânico (Bose, 2017; Pappé, 2006).

A Revolta Árabe de 1936-1939 foi a primeira revolta armada organizada que os palestinos fizeram desde o início do processo de colonização sionista e, desde sua eclosão, tem sido importante referência para os movimentos e mobilizações nacionais palestinos. Em poucos meses, aproximadamente mil árabes já haviam sido mortos pelas forças britânicas. Entre 1937 e 1939, 8.958 palestinos foram presos em campos de detenção (Barat; Chomsky; Pappé, 2016; Bose, 2017). Os britânicos iniciaram um processo punitivo de destruição de casas de insurgentes palestinos, prática utilizada pelo exército israelense até hoje. Em 1939, britânicos e colonos sionistas saíram vitoriosos, além de minar as lideranças políticas palestinas, o que contribuiu para a implementação do plano de partilha em 1947.

Entre a decisão pela partilha, em novembro de 1947, e a instituição do Estado de Israel, em 14 de maio de 1948, uma série de ataques promovidos por ambos os lados resultou na morte de centenas de civis. No contexto do Plano Dalet um dos acontecimentos mais marcantes foi o massacre de Deir Yassin pela milícia sionista Irgun (mais tarde usada como base para formação do exército israelense), que resultou no assassinato de 254 palestinos.

A Nakba, conhecida como a tragédia palestina, representa não apenas a fundação do Estado de Israel e a expulsão de quase oitocentos mil palestinos de suas terras, mas o início de uma história de conquista de território pela violência e a ocupação ilegal de territórios palestinos pelo Estado de Israel (Pappé, 2006). Além disso, a Nakba marca a criação do território da Faixa de Gaza. Com uma extensão de 360 km², até o início das ofensivas de outubro de 2023, a região era lar de quase dois milhões de palestinos, sendo que, aproximadamente, 70% deles são descendentes de refugiados de 1948 (Finkelstein, 2018; Salamanca, 2011).

A Faixa de Gaza foi ocupada pelo Estado de Israel após a Guerra de 1967 e permaneceu com presença militar e de colonos israelenses na região até 2005 quando, após decisão unilateral do então Primeiro Ministro Ariel Sharon, foi ordenada a saída de todos os ocupantes. A retirada, contudo, não significou o fim da ocupação. As fronteiras externas da Faixa de Gaza ficaram controladas pelo exército israelense, responsável por regular a entrada e saída de pessoas e bens; além do Estado de Israel ser o responsável pelo acesso a água, energia e internet na região. Essa situação se agravou após a vitória do Hamas nas eleições de 2006, o que levou à instauração do bloqueio à Faixa de Gaza que perdura desde 2007.

Após o bloqueio, ocorreram as chamadas Operação Chumbo Grosso (2008-2009), Operação Pilar Defensivo (2012), Operação Margem Protetora (2014) e Operação Guardiões do Muro (2021). Até o início da atual escalada de conflito, a operação de 2014, também conhecida como Guerra dos 51 dias, era tida como a mais destrutiva desde a Guerra de 1967: foram mais de dois mil mortos e onze mil feridos, de acordo com dados da ONU. Em comparação com os números das operações de 2014, a perda humana nas ofensivas iniciadas em outubro de 2023 é mais de dez vezes maior.

Quando colocados em perspectiva, portanto, fica claro que os atuais acontecimentos são uma tragédia anunciada, decorrente de uma política de Estado vigente desde antes do próprio surgimento do Estado israelense em 1948. Há de se apontar as tentativas de alguns membros da sociedade internacional de responsabilizar Israel pelo que vem acontecendo nos últimos quatro meses, como a acusação de genocídio contra o país feita pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça, os rompimentos de relações diplomáticas feitos por alguns países e as constantes e expressivas manifestações civis realizadas em vários países do mundo pedindo pelo cessar fogo.

Apesar de todas as manifestações de apoio aos palestinos e os pedidos pelo fim do bombardeio que já matou quase trinta mil pessoas (um terço delas, crianças) o fim das atrocidades cometidas em Gaza não parece próximo. Há poucos dias, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu afirmou que a ofensiva contra Gaza não vai cessar até que a “vitória completa” seja alcançada. O ataque ao campo de refugiados de Rafah, na madrugada do dia 12 de fevereiro (horário do Brasil) e a política de fome e morte imposta aos palestinos que ali estão é uma clara demonstração de que o plano de Netanyahu é destruir a tudo e a todos. O nome disso é genocídio.

*Carolina Antunes Condé de Lima é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação em RI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), bolsista CAPES e pesquisadora no IARAS-GEDES.

Imagem: Destruição em Gaza após ataques israelenses em Outubro de 2023. Por: Wilimedia Commons.

 

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O uso de drones militares israelenses dentro das fronteiras nacionais pela Força Aérea Brasileira

Murilo Motta*

 

Os drones são dispositivos de vigilância aérea, isto é, câmeras voadoras mobilizadas estrategicamente para coletar dados a partir do alto – que, em alguns casos, podem ser armadas com mísseis. Conforme Fernanda Bruno, a vigilância pode ser definida como “a observação sistemática e focalizada de indivíduos, populações ou informações relativas a eles, tendo em vista produzir conhecimento e intervir sobre os mesmos, de modo a conduzir suas condutas”. A vigilância permanente instaurada pela presença constante desses “olhos no céu” permite a coleta de diversos tipos de dados, que podem ser mobilizados em prol de estratégias de controle à distância sobre as populações que são seus alvos.

Desde 2010, a FAB emprega drones militares fabricados por empresas israelenses. Atualmente, quatro drones do modelo Hermes 450 (designado RQ 450 ao ser incorporado pela FAB) e um do modelo Hermes 900 (RQ 900), ambos fabricados pela Elbit Systems, são operados pelo Primeiro Esquadrão do Décimo Segundo Grupo de Aviação (1º/12º GAV), o Esquadrão Hórus, situado na base aérea de Santa Maria (RS). Além deles, dois Heron I (RQ 1150), fabricados pela Israel Aeroespace Industries (IAI), são operados desde 2020 pelo Esquadrão Orungan (1º/7º GAV), situado na base aérea de Santa Cruz (RJ).

Cabe ponderar as possíveis implicações da incorporação dos drones militares importados de Israel pela FAB, uma vez que podem ser estabelecidas conexões entre a ocupação dos Territórios Palestinos por Israel e a ocupação de favelas cariocas por Unidades de Polícia Pacificadoras (UPP), a partir de 2008, e por Forças de Pacificação, entre 2010 e 2015. Além disso, as Forças Armadas brasileiras têm atuado crescentemente em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), tanto em territórios urbanos, notadamente no Rio de Janeiro, quanto em terras indígenas na região Norte do país, como na Operação Samaúma (2021). 

Entre 2016 e 2020, Israel foi responsável por 3% do comércio global de armas, sendo o 8° maior exportador de armas do planeta. As empresas produtoras dos drones empregados pela FAB se destacam nesse mercado: a Elbit Systems é a maior empresa privada de armamentos de Israel, enquanto a IAI é a maior empresa estatal do setor. 

A indústria de segurança israelense se desenvolveu simultaneamente aos conflitos com seus vizinhos árabes e às tentativas de ocupação dos Territórios Palestinos. Nas últimas décadas, o país se tornou um grande exportador de tecnologias militares, como os drones, notadamente desenvolvidas com base em suas experiências no controle e vigilância constantes sobre populações enquadradas como “ameaças à ordem social” nos Territórios Palestinos. 

A “ocupação aérea” dos Territórios Palestinos por aviões, helicópteros e drones é crucial na ocupação colonial contemporânea da Palestina, já que a maior parte do policiamento é feita a partir do ar, através da mobilização dos sensores a bordo de veículos aéreos não tripulados, por exemplo. Nos Territórios Palestinos, a vigilância constante visa uma “condução de condutas” que objetiva subordinar a população palestina para que Israel possa explorar sua mão de obra e os recursos naturais dos Territórios da forma mais rentável possível. 

No Brasil, os drones militares israelenses foram originalmente incorporados pela Força Aérea Brasileira (FAB) para integrar sua divisão de Aviação de Reconhecimento, que é responsável por fornecer dados para o Sistema de Inteligência das Forças Armadas. As principais justificativas para sua importação foram seus menores custos e sua maior versatilidade em relação a aeronaves tradicionais. Segundo estimativas de 2010, uma hora de voo de um drone custaria apenas um décimo do que custa uma hora de voo de uma aeronave tripulada. À época, representantes das Forças Armadas ressaltaram que os drones poderiam ser empregados tanto para fins militares, em missões de reconhecimento, designação de alvos, busca e resgate, vigilância urbana, costeira e de fronteiras, quanto em operações de segurança pública, de controle do desmatamento e em operações de defesa civil. 

De fato, o emprego de drones pela FAB entre 2010 e 2022 aconteceu tanto em exercícios militares de simulação de conflitos, quanto em operações na faixa de fronteira e em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Nos exercícios de simulação de conflitos, seu emprego objetiva a captação de imagens que auxiliam no planejamento das missões, permitindo um melhor direcionamento das ações militares. Na faixa de fronteira terrestre, esse emprego acontece no contexto das operações Ágata, visando a coleta de informações com o objetivo de combater o narcotráfico e outros ilícitos transfronteiriços. Nas operações de GLO, os drones foram empregados na segurança de grandes eventos, no controle do desmatamento e em operações de ocupação em favelas cariocas, por exemplo. 

É importante que a sociedade civil esteja atenta e seja crítica às formas de emprego desses drones, uma vez que eles foram desenvolvidos para emprego em contextos militares, mas são crescentemente empregados pela FAB dentro das fronteiras nacionais, o que contribui para borrar os limites entre a defesa nacional e a segurança interna, podendo levar ao uso de equipamentos inadequados, à ineficácia de resultados e até mesmo à violação de direitos civis.

 

Imagem: Ilustração do conceito de drone militar. Por Freepik. 

Murilo Motta é Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/Pucsp), bolsista CAPES (PROCAD-DEFESA) e membro da Rede de Pesquisa em Autonomia Estratégica, Tecnologia & Defesa (PAET&D)

Este ensaio é um resumo do artigo “Olhos no céu: a incorporação de veículos aéreos não tripulados israelenses pela Força Aérea Brasileira” publicado pela Revista Hoplos, v. 6, n. 11, 2022. A versão completa está disponível no site da revista.

40 anos da primeira invasão israelense ao Líbano: consequências e lições

Karina Stange Calandrin*

Texto publicado originalmente no Estado de S. Paulo

 

Há 40 anos, especificamente em seis de junho de 1982, as forças armadas israelenses atravessaram sua fronteira norte e invadiram o Líbano. A operação militar, cunhada como “Paz para a Galiléia”, foi anunciada ao público como uma operação rápida que supostamente duraria  no máximo 48 horas, com o objetivo de expulsar as bases da Organização para Libertação da Palestina (OLP) que haviam se instalado no Líbano, próximo à fronteira com Israel. 

Todavia, a operação durou anos. As forças armadas israelenses se envolveram na guerra civil libanesa (1975-1990), enfrentaram o exército sírio que estava em solo libanês com o objetivo de levar a guerra civil a um cessar-fogo e entraram em combate com as forças paramilitares da OLP. Ainda, as tropas israelenses avançaram para além de Beirute, capital do Líbano, envolvendo palestinos, libaneses e sírios em batalhas. O que deveria ter sido uma operação de curta duração, com uma rápida vitória, acabou sendo a pior guerra de Israel até os dias atuais, contando com perdas materiais, humanas, políticas e econômicas não vistas antes pelo país. 

Passados 40 anos do início do conflito e olhando em perspectiva, quais as consequências da operação “Paz para a Galiléia”, não apenas imediatas, mas também contemporâneas?

Primeiro, parece que sua memória foi praticamente apagada da agenda nacional israelense. Quando a mídia local fala sobre o Líbano, ela tende a se concentrar em outros marcos: a Segunda Guerra do Líbano de 2006 e os anos de combate na zona de segurança, estabelecida na fronteira com Israel. Apesar de todos os eventos que sucederam a primeira invasão israelense ao Líbano – como a comissão de inquérito Kahan que levou a condenação do então Ministro da Defesa Ariel Sharon, os protestos que promoveram a queda do governo e a convocação de novas eleições, os massacres de Sabra e Chatila (1982), a criação do Hezbollah, entre outros -, a Primeira Guerra do Líbano nunca teve o mesmo lugar na consciência israelense que outros conflitos. Ainda hoje, gerações que não viveram a guerra de 1982 não a veem como uma derrota, ou até mesmo como uma operação que não atingiu os  seus objetivos propostos.

No entanto, em muitos aspectos, a guerra de junho de 1982 incutiu ideias e conceitos que ecoam nos debates militares israelenses atualmente. Foi a primeira guerra que despertou uma verdadeira controvérsia política em Israel, pois não só gerou uma reação da opinião pública que levou à queda do governo e o estabelecimento de uma comissão de inquérito, como também expôs as informações incorretas que estavam sendo utilizadas pelo governo israelense para legitimar a invasão. Uma das razões foi que a Primeira Guerra do Líbano foi noticiada amplamente pela mídia israelense e internacional, o que influenciou a opinião pública internacional e doméstica. Ademais, a guerra ilustrou para os israelenses problemas sérios no alto comando das Forças Armadas de Israel e do governo, como a noção de superioridade moral e invulnerabilidade.

Todos esses marcos estão conectados entre si. A falsa promessa que o Ministro da Defesa Ariel Sharon, em 1982, fez de limitar o avanço do exército a uma linha de 40 quilômetros da fronteira israelense foi dirigida mais ao público e seus colegas de gabinete no governo de Menachem Begin (1977-1983) do que à liderança da OLP. A enorme lacuna entre os discursos dos políticos e o que os soldados relataram quando voltaram para casa, gradualmente, fez com que a opinião pública israelense condenasse a guerra. 

Além de Israel, a invasão de 1982 ao Líbano levou ao envolvimento de outras potências na guerra civil libanesa, como Estados Unidos e a União Soviética, que acabaram por agravar a situação de segurança regional. Em resposta ao envolvimento israelense na guerra civil libanesa, um grupo paramilitar, que futuramente se tornaria também um partido político no Líbano, foi fundado: o Hezbollah. O grupo é visto por Israel como uma ameaça até hoje, tendo levado a mais uma invasão de Israel ao Líbano em 2006. Ainda hoje, o Hezbollah tensiona as relações com Israel, principalmente através de sua atuação na guerra civil síria (2011-presente). 

Dessa forma, a Primeira Guerra do Líbano é um conflito com importância ainda imensurável, tanto para a região em geral, quanto para Israel em particular. Vale destacar que Israel passou por mudanças políticas importantes, que levaram a um tensionamento ainda maior entre o partido Likud (de Menachem Begin) e o partido trabalhista que retornou ao poder em 1984, mudando inclusive as diretrizes das Forças Armadas em futuras operações. Ainda, mudou a dinâmica das potências no Oriente Médio, tanto as super potências, como Estados Unidos e União Soviética, quanto as potências regionais, como a Síria, e a inclusão de novos atores, como o Hezbollah. Logo, os efeitos dessa guerra ainda são percebidos hoje na conjuntura política do Oriente Médio e reverberam na política israelense.

* Karina Stange Calandrin é doutora em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), professora da Universidade de Sorocaba e pesquisadora do Observatório de Conflitos. Sua tese de doutorado discutiu o processo decisório em política externa israelense.

Imagem: foto aéra de Beirute, capital do Líbano. Por: Jo Kassis/Pexels.

Israel e a guerra na Ucrânia: visita de Bennett à Rússia e discurso de Zelensky ao Knesset

Karina Stange Calandrin*

 

No dia 20 de março, o Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky proferiu um discurso ao parlamento israelense (Knesset). O pronunciamento compõe uma série de aparições públicas que Zelensky vem realizando no intuito de angariar apoio às forças ucranianas. O Congresso dos Estados Unidos, a Casa dos Comuns na Grã-Bretanha, o Bundestag alemão e o parlamento europeu são outros exemplos de fóruns aos quais o presidente discursou acerca do atual conflito que se arrasta há mais de um mês.

Nos discursos feitos até então, o ucraniano criticou países, sobretudo aqueles que compõem a esfera ocidental, por não providenciarem apoio militar suficiente à Ucrânia. Em relação aos estadunidenses e aos europeus, Zelensky denunciou a relutância em impor uma zona de exclusão aérea sobre o território de seu país. Já para os israelenses, perguntou por quê Israel não teria ainda fornecido à Ucrânia o sistema de defesa antimísseis, por ele chamado de “melhor do mundo”, cunhado de “Iron Dome” ou “Domo de Ferro” em tradução livre.

Diferentemente dos demais discursos, que continham um elevado tom de crítica, para o parlamento israelense, Zelensky, que tem origem judia, deu ênfase à decepção que porventura sentia, como se esperasse um pouco mais por conta da história dos dois países. Ele afirmou que ucranianos escolheram salvar judeus durante o Holocausto, exagerando os fatos de forma a utilizar a emoção com o intuito de criar laços entre os dois países, como sugere a análise de Anshel Pfeffer

Em seu texto, Pfeffer afirma que Zelensky proferiu um discurso fortemente sionista, enfatizando que tanto Ucrânia quanto Israel são nações que buscam a paz para os seus povos e que querem apenas a “permissão para existir”, novamente ressaltando a carga emocional. Nesse contexto, referindo-se às intenções russas em relação à Ucrânia, o presidente citou com admiração uma frase da ex-Primeira-ministra Golda Meir: “nossos inimigos só querem acabar com a nossa existência”. 

Em 5 de março, dias antes do discurso proferido por Zelensky, o Primeiro-ministro israelense, Naftali Bennett, foi até a Rússia se encontrar com Putin com o intuito de mediar o conflito entre Rússia e Ucrânia. Israel, nesse momento, reiterou sua opção por não tomar um lado claro no conflito, decisão que se justifica por conta da relação entre Israel e Rússia no que tange:  (i) a Síria, país com o qual o território israelense faz fronteira; (ii) o Hezbollah, grupo que explicitamente se opõe ao regime israelita e que é apoiado por Moscou; (iii) e o Irã, país que mantém importantes parcerias estratégicas com o Kremlin em torno de seu programa nuclear e que é considerado o maior inimigo de Israel no Sistema Internacional. A adoção de uma certa neutralidade em relação ao conflito que se estende sobre a Ucrânia, assim, pode ser compreendida como um esforço de Israel no sentido de garantir que a Rússia não acionará seus parceiros para arquitetar retaliações contra Jerusalém.

Ademais, o governo israelense entende que a Rússia é responsável pela contenção do Irã e do Hezbollah na Síria, e por isso seria um parceiro importante e estratégico no que tange os interesse israelenses na região. Assim, aderir a uma posição anti-Rússia, ajudando diretamente a Ucrânia com aparatos militares, não seria interessante para Israel no momento, podendo agravar a situação na região, escalando para uma possível guerra, principalmente contra o Hezbollah. 

Zelensky compreende esta situação, por isso, diferente dos outros discursos que proferiu às demais casas legislativas ao redor do mundo, em Israel se utilizou de um discurso com forte carga emocional, visando não os parlamentares, mas sim a opinião pública israelense (a Praça Habima em Tel Aviv estava lotada e bandeiras da Ucrânia eram vistas aos montes). 

A relutância de Israel em se posicionar contra a Rússia decorre de uma série de cálculos que os israelenses consideram vitais para preservar a segurança do país. A Rússia atua como o principal intermediário de Israel na Síria, na qual os israelenses receberam liberdade para perseguir e atacar as milícias xiitas apoiadas pelo Irã, que são vistas como hostis. Esse arranjo único provou ser essencial para a estratégia de Israel em combater o Hezbollah e outros grupos apoiados pelo Irã que vêm se multiplicando na Síria, o que, por sua vez, aumentou as percepções de ameaça dos israelenses.

Israel é capaz de atuar na Síria graças à Rússia, que exerce controle quase total do espaço aéreo do país devastado pela guerra. Israel vê, assim, um grande incentivo em manter seu relacionamento com Moscou, daí a resposta silenciosa à situação na Ucrânia. Qualquer contratempo no relacionamento pode resultar no impedimento de Israel nas operações em território sírio, o que aumentaria a lista de preocupações de segurança israelitas.

Em segundo lugar, Israel passou a ver a Rússia como um ator importante no Oriente Médio para muito além do escopo da Síria. A Rússia exerce forte influência sobre as negociações nucleares iranianas, elevou seu relacionamento com as monarquias do Golfo e vem se posicionando constantemente na região no lugar da liderança estadunidense. Israel está, portanto, altamente motivado a manter seus laços com Moscou. A Rússia poderia indiretamente fortalecer o Irã, o Hezbollah e outros atores hostis se os israelenses se juntassem ao coro ocidental na condenação da Rússia. Portanto, a decisão de Israel de abster-se da condenação aberta, ao mesmo tempo em que busca o diálogo com ambas as capitais, faz parte de uma estratégia mais ampla que considera a cooperação com a Rússia essencial para a segurança israelense.

No que tange o aspecto da política doméstica em Israel, é importante ressaltar que o atual governo se formou recentemente, depois de uma crise política de dois anos que levou os israelenses a quatro eleições, mesmo durante as fases mais críticas da pandemia da Covid-19 no país. O Primeiro-ministro Bennett não possui o mesmo prestígio internacional que seu antecessor, Benjamin Netanyahu. Ele ainda é desconhecido para a maioria dos líderes globais, tem pouca experiência em fóruns multilaterais e com política internacional em geral. Netanyahu, por outro lado, tem não somente maior notoriedade internacional, mas também uma compreensão completa do sistema político estadunidense, uma vez que foi embaixador de Israel nos Estados Unidos antes de entrar para a política israelense, discursou no Congresso e é um veterano da Assembleia Geral da ONU. Esse forte contraste entre os dois desencadeou um debate em Israel, levando alguns especialistas a afirmar que Netanyahu teria sido um negociador muito mais eficaz ao lidar com Putin.

Dessa maneira, o conflito, para além das questões ligadas aos interesses nacionais de Jerusalém, transformou-se também em um impasse político de alto risco em Israel. Considerando o sistema político israelense, um parlamentarismo de coalizão, que atualmente conta com uma coalizão heterogênea (partidos de esquerda, direita e centro formam o atual governo), qualquer ação mais abrupta pode levar a uma crise política e a dissolução do parlamento (neste momento o governo de Bennett já passa por isso, por questões consideradas triviais em comparação a uma possível crise com a Rússia). Dadas as circunstâncias, Bennett tem a possibilidade de suplantar Netanyahu se conseguir balancear a crise de maneira positiva para Israel. Embora Israel seja um mediador improvável entre a Rússia e a Ucrânia, e Bennett seja um candidato ainda mais improvável para a negociação, a oportunidade parece ter chegado a ele. O encontro de Bennett com Putin e seus próximos encontros com os europeus poderiam muito bem se transformar em destaque da sua carreira política e levá-lo a um terreno muito mais seguro na política israelense.

A tomada de decisões pelo governo israelense em relação à guerra na Ucrânia é, em última análise, determinada por cálculos de segurança. Com a Rússia tendo se tornado tão central para a segurança israelense considerando o cenário de sua vizinhança imediata, seria irreal esperar que o país se envolvesse em esforços para antagonizar com Moscou. Em vez disso, ainda no início do conflito Israel optou por um curso de engajamento que busca transformar uma situação potencialmente contenciosa com o Kremlin em uma plataforma para diálogo, mediação e uma abertura para tentar emplacar esforços diplomáticos mais elevados. A manutenção da posição israelense atesta a prevalência do pragmatismo como norteador da política do país e demonstra que o lugar da Rússia na política de Israel se mantém a despeito do andamento da guerra.

* Karina Stange Calandrin é doutora em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), professora da Universidade de Sorocaba e pesquisadora do Observatório de Conflitos. Sua tese de doutorado discutiu o processo decisório em política externa israelense. 

Imagem: Prédio do Knesset. Por: James Emery.

Israel-Palestina: permanecem as velhas perguntas sem novas respostas

Maitê Pereira Lamesa, mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). E-mail: maitelamesa@gmail.com 

O Conflito Israel-Palestina foi deflagrado a partir da aprovação pela Assembleia Geral da ONU, em 29 de novembro de 1947, do Plano de Partilha da Palestina em dois estados (Resolução 181), elaborado pela Comissão Especial das Nações Unidas para a Palestina (UNSCOP). Logo após a declaração de independência do Estado de Israel pela Agência Judaica, teve início a guerra de 1948. 

Entretanto, suas raízes históricas e contextos geopolíticos, remontam ao fim do século XIX, a partir do atraso tecnológico do Império Otomano, o surgimento do Movimento Sionista [1], e os arranjos hegemônicos que se consolidam com o término da Primeira Guerra Mundial. Como reflexo, foram firmados uma série de compromissos contraditórios em relação às aspirações dos povos árabes e judeus (Declaração de Balfour e a Correspondência Hussayn-McMahon), bem como ajustes velados entre França e Inglaterra em relação aos territórios do Império Otomano (Acordo de Sykes-Picot), extinto a partir da assinatura do Tratado de Sèvres (1920). Tais ações seguiram o pano de fundo do contexto neocolonialista da época. 

No pós-Segunda Guerra, o ambiente político tornou-se favorável à questão judaica, em virtude do reconhecimento do holocausto e de resultados consistentes das negociações sionistas junto às grandes potências. Como consequência, houve a autorização formal para a divisão das terras palestinas – que até então estavam sob o julgo da Inglaterra (mandato britânico) desde 1917 – e a conseguinte instituição do estado judeu.  

Na guerra em 1948, as forças árabes compostas por milícias palestinas, o Exército de Liberação Árabe (Jaysh Al Inqadh) da Liga Árabe, e contingentes de exércitos do Egito, Síria, Iraque, Jordânia, Líbano e Arábia Saudita, concentraram esforços para responder à declaração de independência de Israel, e engajaram em conflito com as forças judaicas, integradas pelas forças militares da Hagana, às quais se somaram as forças paramilitares da Irgun (Etzel) e Stern Gang (Lehi), com auxílio decisivo da Palmach (PAPPE, 2007, p. 45). A disparidade das forças era evidente e acabou levando não apenas à vitória da guerra por Israel, com ampliação do território para além do plano original (chegando a 78% do território do mandato britânico), mas também à “Al-Nakba”, ou “A Catástrofe” palestina. Esse acontecimento  indica tanto o período de êxodo e expulsão da população palestina dos territórios onde foi estabelecido o Estado de Israel, quanto todos os eventos que afetaram os palestinos entre dezembro de 1947 a janeiro de 1949.  

Durante a Nakba, calcula-se que entre 750.000 e 800.000 palestinos deixaram suas terras e vilas ou foram delas expulsos, representando cerca de 50% de toda a população palestina (árabe) da época (FLÜCHTLINGSKINDER; ZOCHROT, 2013). Muitos daqueles que deixaram suas terras agiam em resposta a massacres planejados e levados a cabo pelas milícias israelenses. O ataque israelense mais expressivo desse período foi o massacre de Deir Yassin, executado em abril de 1948 pela Irgun e Lehi e, posteriormente, com auxílio da Palmach,  resultou na morte de 254 palestinos [2]. Em 1949, foi criada a “United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees” (UNRWA), agência da ONU cuja responsabilidade era atuar junto aos refugiados palestinos, que se espalharam para Gaza, Cisjordânia e países vizinhos, primordialmente Líbano, Síria, Jordânia. 

Na década subsequente, Israel envolveu-se nos embates contra o Egito, em torno de tensões na região do Sinai, que se desenrolam até culminar na Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967. As consequências foram ainda mais desastrosas para a Palestina: perda expressiva de território, que passaram então a ter controle militar israelense, sendo elas: (a) Colinas do Golã (Síria); (b) Cisjordânia; (c) Jerusalém Oriental (Jordânia); (d) Gaza (Egito) e a Península do Sinai (Egito) [3]. 

Com exceção do Sinai, os demais territórios palestinos conquistados foram ocupados por Israel, com a imediata intensificação de construção de assentamentos – questão que representa atualmente um dos imbróglios centrais para a resolução do conflito –, maior controle da vida quotidiana dos palestinos, com a consequente precarização das condições dessa população, e crescimento da população refugiada. 

Nesse período, também se estruturou a resistência palestina, basicamente a partir da criação da OLP em 1964 pela Liga Árabe, cuja liderança de Yasser Arafat, a partir de 1968, é a mais emblemática, com melhor organização da luta armada palestina, bem como criação de estruturas de assistência em campos de refugiados, reforçando e até substituindo a atuação da UNRWA, que era insuficiente para prover as condições mínimas necessárias de sobrevivência. Ao prover serviços sociais à população refugiada, que era numerosa e sofria com sérias restrições de trabalho, vedações à aquisição de terras e outros direitos nos países de refúgio, essa aproximação atraía combatentes (os “fida´iyyun”) à sua esfera de gravitação (PAPPE, 2007, p 229).  

A elaboração de estratégias para a libertação palestina, sobretudo após a nomeação de Arafat para a liderança da OLP levou a dissidências internas, distanciando a organização da visão inicial pan-arabista e aproximando-a das ideologias de guerras de libertação popular, com inspiração socialista. Foram ainda formadas outras organizações: a Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) por George Habash e Naif Hawatmeh, e a Frente Democrática Popular de Libertação da Palestina (FDPLP), por iniciativa de Hawatmeh. 

Foi a partir desse período que a luta palestina adquiriu o caráter de resistência e necessidade de libertação popular, sendo que a atuação da OLP se estruturou inicialmente a partir da Jordânia, tendo sido transferida ao Líbano na década de 1970, após crise deflagrada com o líder jordaniano, rei Hussein, conhecida como “Setembro Negro”.  

Em 1977, uma série de fatores determinaram a eleição do líder israelense Menachem Begin, representante do Likud, partido que ele próprio fundara. Nesta época, evoluiu-se a construção de assentamentos, sendo que em 1987 existiam já 110 assentamentos na Cisjordânia, e 15 assentamentos em Gaza (HUBERMAN, 2014, p. 96), além das estradas para interconectá-los. A lógica de construção seguiu a ótica militarizada que refletia a experiência de Ariel Sharon na guerra do Yom Kippur (1973). Com Begin, a OLP passou a ser mais perseguida, tendo sido classificada como um elemento subversivo. O combate à organização levaria à primeira invasão no Líbano por Israel em 1982, a fim de conter os ataques lançados a partir da base da OLP junto a campos de refugiados palestinos na região sul do país. 

Com o advento da Primeira Intifada, em dezembro de 1987, concretizou-se a resposta da população dos Territórios Palestinos Ocupados (TPOs), frustrada ante a insuficiência das estratégias da OLP, as tentativas de acordos malfadadas e à falta de resposta da comunidade internacional, enquanto Israel ignorava diversas resoluções aprovadas pela ONU. Além disso, os efeitos da expansão do livre-mercado, seguindo a lógica neoliberal da época, acentuava a precarização da mão-de-obra palestina, cada vez mais dependente dos empregadores israelenses. 

A insurgência palestina teve início junto aos campos de refugiados de Gaza, ganhando adesão generalizada da população sob ocupação, bem como dos palestinos em Israel. A desigualdade de armas era patente e resultou em 1551 mortes do lado palestino, e 421 do lado israelense, dentre eles 271 civis (B´TSELEM, [2020]). Tal processo conduziu às tratativas dos Acordos de Oslo [4], na década seguinte, período de grande otimismo em torno da resolução do conflito. 

Os resultados obtidos dos acordos não conduziram à criação do Estado palestino, nem conseguiram pôr fim à ocupação israelense, sendo que a onda otimista rapidamente dissolveu-se no início do século XXI. A subdivisão territorial da Cisjordânia nas áreas A, B e C (KAPELIOUK, 2004, p. 369-370), por exemplo, foi uma das graves consequências de Oslo, permitindo o alargamento da presença israelense no território palestino para além dos assentamentos construído ao longo das décadas anteriores, fazendo da Cisjordânia um território fragmentado em pequenas ilhas desconexas.  

Com efeito, no alvorecer do novo milênio, a ocupação tornou-se sistemática, ganhando aspecto legítimo e os projetos de assentamento e de anexação de terras palestinas avançaram. O controle de Israel da “área C” deu vazão às demolições de casas, fosse por falta de permissão para construir, fosse para “fins militares”. Desde 2006 até 30 de junho de 2020, Israel demoliu 1.584 casas palestinas na Cisjordânia por falta de permissão para construir, deixando 6.880 pessoas desabrigadas (B´TSELEM, [2020]). Já entre 2004 até 2011, Israel demoliu 5.494 casas palestinas para “fins militares” incluindo Cisjordânia e Gaza. Em Gaza, durante a Operação Margem Protetora (2014), foram destruídas 18.000 casas palestinas, resultando em 100.000 palestinos desabrigados (B´TSELEM, [2020]).  

Além disso, após a Segunda Intifada, o governo israelense deu início à construção de muros que cercam Jerusalém Oriental e a Cisjordânia, sendo que a barreira isolou vilas, cidades, áreas rurais, e segregaram a população e suas economias locais, além de anexar mais terras palestinas. Os postos de comando (“checkpoints”) estabelecidos para controlar o fluxo de pessoas autorizadas a transitarem geraram ainda mais violações ao direito de locomoção e de acesso a serviços básicos como a saúde, e permanecem como uma grave violação de direitos fundamentais. 

Assim, medidas que trariam maior segurança à população israelense contra atentados palestinos produzem, na realidade, maior violência, incertezas e impedimentos a iniciativas para a construção da paz de forma consistente. A militarização crescente da sociedade israelense também não oferece a resposta adequada ao conflito, e perpetua o ciclo de revoltas, além de minar possibilidades de desenvolvimento da sociedade civil palestina. 

Desde 2005, Israel retirou suas tropas da Faixa de Gaza, que passou então a ser administrada pelo grupo Hamas em 2007. Em contrapartida, Israel impôs um bloqueio das fronteiras, com exceção da entrada de Rafah, administrada pelo Egito, controlando também o espaço aéreo e a saída para o mar. Dessa forma, a locomoção de pessoas, mercadorias, incluindo assistência humanitária, depende de prévia autorização israelense, a qual é extremamente limitada, sendo quase impossível a saída dos residentes. 

Desde a ascensão do Hamas ao poder em Gaza, a região passou a ser vista como um território inimigo, o que levou a diversas incursões militares, com a finalidade de desestruturar as redes dessa liderança ou em resposta a ataques de mísseis do grupo. Contudo, as incursões resultaram em altas perdas civis, inclusive de mulheres e de crianças. Desde a saída de Israel, foram feitas 3 incursões: (a) Operação Chumbo Fundido (2008); (b) Operação Pilar Defensivo (2012); e (c) Operação Margem Protetora (2014).  

Os desdobramentos do conflito têm, portanto, agravado um conflito já bastante longevo, tornando a paz uma “miragem” (FLINT, 2009). Os prejuízos de tantas hostilidades reverberam na sociedade israelense, e na sociedade palestina eles são sentidos de forma ainda mais severa, criando-se um sistema de precarização generalizada, dependência econômica acentuada, detenções injustificadas (inclusive de crianças e adolescentes), mortes, falta de acesso à infraestrutura adequada, restrições no acesso à água, ordens de demolição ou despejo, campos de refugiados, desemprego e restrições severas ao direito de locomoção (OCHA-OPt, [2020]). As mortes aproximadas desde o advento da Segunda Intifada até junho de 2020 eram de 10.564 palestinos e de 1.271 israelenses (B´TSELEM, [2020]).  

De modo geral, é possível concluir que o conflito Israel-Palestina tem características multidimensionais, diversas fases, e uma multiplicidade de atores envolvidos, tanto estatais quanto não-estatais. De qualquer forma, conforme dados da Uppsala Conflict Data Program  (UCDP), cerca de 80% das mortes registradas decorrem de ações de atores estatais.  

Mais recentemente, a maior aproximação ideológica entre Estados Unidos (sob a liderança de Donald Trump) e Israel (comandado por Netanyahu), bem como as eleições de 2019 e a estrutura do sistema político permitiram a reeleição de Netanyahu e a perpetuação do Likud no poder. A permanência de conservadores sionistas tem permitido a evolução e desenvolvimento de projetos de anexação de terras palestinas, o que dificulta ainda mais as possibilidades de diálogo e mina a solução de dois Estados, princípio norteador em Oslo e em negociações posteriores. O decurso do tempo pesa contra a população palestina, que vê diuturnamente suas condições de vida reduzidas, sem alternativas ante a ocupação israelense. É preciso destacar que os prejuízos também são sentidos pela população israelense, posto que a inviabilidade do diálogo adia as perspectivas de uma vida menos militarizada, belicosa e violenta.  

As inúmeras tentativas falhas de resolução do conflito trazem à tona as debilidades da solução de dois Estados, que pode estar com seu prazo vencido. Porém, de outro lado, resta incerta a viabilidade de implantação de um único Estado que garanta, na prática, direitos iguais tanto aos israelenses quanto aos palestinos, uma vez que essa medida põe em xeque questões essenciais para Israel, como a manutenção da prevalência da demografia judia do estado israelense.  

Uma passagem do livro de Miko Peled (The General´s Son), reflete essas incertezas, ao relatar seus diálogos acerca da solução de um estado (PELED, 2016, p. 247): “Meu cunhado estava perdendo a paciência a cada minuto. ‘Você não entende nada! Você não vê que isso levará à guerra civil? Será outro Kosovo ou Líbano e o derramamento de sangue será irrefreável.’ Mas eu não podia deixar passar. ‘Ou Suíça ou Bélgica. Se você nos comparar com outros estados multinacionais, a nossa não é uma questão muito complicada’.” [5]  

Até o momento, o conflito se prolonga sem que tais respostas possam ser dadas com exatidão. Sem a perspectiva de uma via para a solução, perpetuam-se medidas questionáveis e contrárias às normas de Direito Internacional, como é o caso da possível anexação de terras palestinas por Israel, prevista no acordo anunciado pelo governo Trump no início deste ano (Acordo do Século).  

Esse acordo, formulado sem a consulta de qualquer representação palestina, tem sido muito criticado, já que previu a anexação de terras no Vale do Jordão, onde situam-se assentamentos israelenses, área que é essencial ao abastecimento de água e alimentos à Cisjordânia. Em 1º de julho estavam previstas as discussões sobre esse acordo no parlamento israelense (Knesset), contudo, foram adiadas face às pressões internas e internacionais. 

 

Fonte imagética: Mohamed Asad | Monitor do Oriente Médio. Disponível em:  https://www.monitordooriente.com/20191202-358022/. Acesso em 20.07.2020. 

NOTAS 

[1] O Movimento Sionista tem origem a partir das ideias de Theodor Herzl, defendidas no Primeiro Congresso Sionista Mundial, realizado em 1897 na Basileia (Suíça). O Sionismo, em sua origem, apresentou-se como movimento umbilicalmente atrelado a ideais nacionalistas, como necessidade de compor um Estado-nação para um povo composto por minorias distribuídas ao redor de todo o mundo, vivendo na “diáspora”, e compor tal Estado-nação significava uma população unida em um território pelo sentimento natural e, portanto, espontâneo de povo, o que se costuma denominar identidade. 

[2] O massacre de Deir Yassin, uma vila palestina nas proximidades de Jerusalém, estava inserido no escopo do Plano Dalet (Plano D), desenvolvido pela liderança sionista e colocado em prática antes mesmo da declaração de independência de Israel. De acordo com Ilan Pappe: “Em março de 1948, o Plano Dalet foi adotado. Os primeiros alvos eram os centros urbanos da Palestina, os quais haviam sido ocupados até o final de abril. Cerca de 250.000 palestinos foram expulsos nesta fase, além de diversos massacres postos em prática, o mais notável deles foi o massacre de Deir Yassin.“ (PAPPE, 2006, p. 40). [Tradução Livre] 

[3] Vale destacar que a Península do Sinai foi posteriormente devolvida ao Egitoincluída na negociação dos Acordos de Camp David, firmados entre Menachen Begin na Casa Branca, durante o governo Carter. O ato foi visto pela Organização pela Liberação da Palestina (OLP) como traição políticaposto que tornava a Palestina ainda mais vulnerávelalém de enfraquecer os demais países árabescomo Líbano e Síria (FISK, 2007, p. 208). 

[4] Os Acordos de Oslo foram firmados em 1993 e 1995 entre o Primeiro-Ministro israelense na época, Ytzhak Rabin e o líder da OLP, Yasser Arafat, mediados pelo governo de Clinton. A celebração desses acordos era vista pela comunidade internacional com tamanho otimismo, o que se reflete na edição pela Assembleia Geral da ONU da Resolução 49/88 aprovada em 16 de dezembro de 1994, a qual clamava a necessidade de se chegar à paz compreensível, justa e duradoura no Oriente Médio e expressava o apoio à rápida concretização do processo de paz em curso até aquele momento (ONU, 1994). 

[5] Na versão original em inglês: “My brother-in-law was losing his patience by the minute. ‘You don´t understand a thing! Can´t you see it will lead to civil war? It will be another Kosovo or Lebanon and the bloodshed will be unstoppable.’ But I couldn´t let it go. ‘Or Switzerland or Belgium. If you compare us to other multinational states, ours is not a very complicated issue.” 

 

REFERÊNCIAS 

ARIJ. Daily Report19.07.2020. Disponível em: https://www.arij.org/eye-on-palestine-arij/daily-report.html. Acesso em 20.07.2020. 

B´TSELEM. Fatalities in the First Intifada. Disponível em: https://www.btselem.org/statistics/first_intifada_tables. Acesso em 18.07.2020. 

________. Fatalities during the Operation Cast Lead. Disponível em: https://www.btselem.org/statistics/fatalities/during-cast-lead/by-date-of-event. Acesso em 18.07.2020. 

________. Fatalities since Operation Cast Lead. Disponível em: https://www.btselem.org/statistics/fatalities/after-cast-lead/by-date-of-event. Acesso em 18.07.2020. 

________. Statistics on Demolition for Alleged Military Purposes. Disponível em: https://www.btselem.org/razing/statistics. Acesso em 20.07.2020. 

________. Statistics on demolition of houses built without permits in the West Bank. Acesso em: https://www.btselem.org/planning_and_building/statistics. Acesso em: 20.07.2020. 

FISK, Robert. Pobre Nação: as guerras no Líbano no século XX. Tradução de Vitor Paolozzi. Rio de Janeiro: Record, 2007. 

FLINT, GuilaMiragem de Paz: Israel e Palestina: processos e retrocessos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 

FLÜCHTLINGSKINDER. The Nakba Exhibition Catalogue: Fight and Expulsion of the Palestinians in 1948. Disponível em: https://zochrot.org/en/article/56365. Acesso em 16.07.2020. 

MADRAZO, Mariano de. Palestina Medio Siglo: Acordes Historicos 1913-1958. Madrid: Editora Nacional, 1964. 

PAPPE, IlanThe Ethnic Cleansing of PalestineOxford: Oneworld Publications, 2007. 

_____História da Palestina Moderna: Uma Terra, Dois Povos. Tradução: Ana Saldanha. Lisboa: Editorial Caminho, 2007. 

PELED, MikoThe General´s Son: Journey of an Israeli in Palestine. Second Edition. Chalottesville: Just World Books, 2016. 

SHEHADEH, Raja. Occupier’s Law: Israel and the West Bank. Washington D.C.: Institute for Palestine Studies, 1985. 

OCHAOPt. Protected People Reports. Disponível em: https://www.ochaopt.org/reports/protection-of-civilians. Acesso em 19.07.2020. 

ONU. Resolução 49/88. Disponível em: http://mfa.gov.il/MFA/ForeignPolicy/MFADocuments/Yearbook9/Pages/TABLE%20OF%20CONTENTS.aspx. Acesso em 21.07.2020. 

UPSALA (Suécia). Uppsala Conflict Data Program. Disponível em: https://ucdp.uu.se/country/666. Acesso em 19.07.2020.