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Amazônia Azul é a próxima Groenlândia? Brasil quer submarino nuclear para dissuasão, diz analista

No dia 4 de abril de 2025, o pesquisador do Centro de Investigação sobre Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético (CIRE), Pérsio Glória de Paula, comentou à Sputnik Brasil os desafios do programa de construção do submarino nuclear brasileiro e a importância estratégica da chamada “Amazônia Azul” frente ao cenário geopolítico internacional.

Segundo Pérsio, a lenta execução orçamentária e as limitações estruturais do PROSUB podem comprometer a capacidade de dissuasão do Brasil em um contexto de crescente competição global pelos recursos marítimos. Para o pesquisador, a Marinha tem avançado em marcos tecnológicos importantes — como o domínio do ciclo do combustível nuclear e a construção do complexo naval de Itaguaí —, mas ainda enfrenta gargalos críticos como a miniaturização segura de reatores para propulsão submarina.

Pérsio destacou que a ambição brasileira de integrar o seleto grupo de países com submarinos nucleares não é mero capricho, mas resposta à valorização estratégica do Atlântico Sul. “A Amazônia Azul pode se tornar, para as próximas décadas, o que a Groenlândia representa hoje para o Ártico: um território de projeção de poder e disputa tecnológica latente”, afirmou.

Ao abordar o orçamento da Defesa para 2025, Pérsio observou que a instabilidade dos recursos representa mais do que um obstáculo técnico — revela a ausência de uma política de defesa de Estado e não de governo. “A segurança marítima, energética e tecnológica brasileira passa por decisões estratégicas que não podem mais ser adiadas, sob pena de o país perder sua janela de inserção autônoma no sistema internacional”, concluiu.

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O uso de bombas cluster na guerra da Ucrânia: Análise da moral e do processo de legitimação do fornecimento estadunidense a Kiev

A decisão do governo Biden de fornecer bombas cluster para a Ucrânia, em meio ao conflito com a Rússia, levanta questões complexas sobre ética, moralidade e processos de legitimação no cenário internacional contemporâneo. Este tipo de armamento, estigmatizado pela Convenção sobre Munições Cluster de 2008, é alvo de críticas devido ao risco que representa para civis, mesmo após o término das hostilidades.

O artigo de Getúlio Alves de Almeida Neto, pesquisador do San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e membro do CIRE, oferece uma análise rigorosa desse processo, explorando os fatores morais, legais e políticos que possibilitaram a decisão estadunidense. Ao examinar o debate interno nos Estados Unidos, a pesquisa traça um panorama abrangente sobre como essa medida foi legitimada e aceita, apesar das críticas e controvérsias.

Leia o artigo completo aqui.

Te vira! ‘Desprezo de Trump’ força Europa a arcar com custos, embora continente já pague a conta

No dia 17 de fevereiro de 2025, o doutorando em Estudos Estratégicos de Defesa e Segurança, Tito Livio Barcellos Pereira, e membro pesquisador do Centro de Investigação sobre Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético (CIRE), analisou na Sputnik Brasil as implicações da política externa de Donald Trump sobre a segurança europeia e a gestão dos custos do conflito na Ucrânia.

Tito destacou que a postura de Trump reforça uma redistribuição de responsabilidades no cenário internacional, pressionando os aliados europeus a assumirem um papel mais ativo na sua própria defesa. Para o pesquisador, a mudança de abordagem dos Estados Unidos gera um dilema estratégico para a União Europeia, que precisa equilibrar seus interesses de autonomia com a realidade de uma infraestrutura de defesa ainda dependente da presença norte-americana.

Segundo o pesquisador, a falta de um consenso dentro da UE sobre como lidar com essa nova realidade pode levar a um cenário de fragmentação política ou, alternativamente, ao fortalecimento de iniciativas como a Cooperação Estruturada Permanente (Pesco) para reduzir a dependência de Washington. No entanto, ele ressalta que esse processo será lento e exigirá investimentos significativos, além de uma reformulação das relações transatlânticas.

“Os americanos não abrirão mão de sua presença militar no continente europeu, assim como os europeus não querem se desligar totalmente dessa segurança. O que está em jogo aqui não são laços de amizade, mas cálculos estratégicos e interesses nacionais”, afirmou Tito.

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Trump pode usar corrupção nos envios de ajuda à Ucrânia como cartada para encerrar o conflito?

No dia 17 de janeiro de 2025, o doutorando em Relações Internacionais na Universidade Estatal de São Petersburgo, Pérsio Glória de Paula, e a mestranda em Relações Internacionais do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, Puc-SP), Maria Eduarda Carvalho de Araújo, ambos pesquisadores do Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético (CIRE), analisaram na Sputnik Brasil o impacto da corrupção nos envios de ajuda à Ucrânia e como isso pode ser explorado por Donald Trump para pressionar Kiev a negociar a paz.

Pérsio destacou que a dependência ucraniana do apoio ocidental é um fator determinante para a continuidade do conflito e que a contenção desses recursos poderia forçar Kiev a dialogar com Moscou. Já Maria Eduarda ressaltou a crescente impopularidade do auxílio financeiro à Ucrânia nos Estados Unidos e na Europa, agravada por suspeitas de desvio de recursos. Segundo a pesquisadora, esse cenário fortalece partidos que defendem o fim desse suporte e levanta questionamentos sobre os reais interesses por trás da assistência internacional.

Para saber mais, clique aqui: Corrupção na Ucrânia pode ser arma de Trump para encerrar conflito, dizem especialistas.

União Econômica Eurasiática é caminho para Brasil diversificar parcerias e aproximar-se da Rússia

No dia 3 de janeiro de 2025, Danielle Makio, professora de Relações Internacionais da UNESP e membro do Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético (CIRE), concedeu uma análise ao Sputnik Brasil sobre as oportunidades econômicas para o Brasil ao diversificar suas parcerias internacionais, com destaque para a União Econômica Eurasiática (UEE). Danielle discutiu os potenciais benefícios da relação crescente entre o Brasil e os países da UEE, incluindo a Rússia, especialmente no agronegócio e no desenvolvimento tecnológico, além de abordar a importância dessa estratégia para a segurança econômica do Brasil em tempos de incertezas políticas e comerciais.

Para saber mais, clique aqui: União Econômica Eurasiática é caminho para Brasil diversificar parcerias e aproximar-se da Rússia

O novo governo Trump e a guerra na Ucrânia: possíveis indícios e cenários

Getúlio Alves de Almeida Neto*

Maria Eduarda Carvalho de Araujo**

 

Como citar este artigo: ALMEIDA NETO, Getúlio Alves de; ARAUJO, Maria Eduarda Carvalho de. O novo governo Trump e a guerra na Ucrânia: possíveis indícios e cenários. CIRE – Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético, 26 dez. 2024. https://doi.org/10.5281/zenodo.14552263.

DOI: 10.5281/zenodo.14552263

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RESUMO

A vitória de Donald Trump contra Kamala Harris para a presidência dos Estados Unidos traz novas especulações sobre o futuro da guerra na Ucrânia. Neste artigo analisamos o impacto dessa transição política, com base no histórico do primeiro mandato de Trump e suas declarações desde 2022. Utilizando análise documental e bibliográfica, examinamos as possíveis mudanças no apoio estadunidense à Ucrânia e os efeitos na dinâmica do conflito. Concluímos que a postura ambígua de Trump e seu possível foco em interesses domésticos sugerem uma redução no apoio, o que pode impactar as negociações de paz e a posição militar ucraniana.

Palavras-chave: Rússia, Estados Unidos, Donald Trump, Guerra na Ucrânia, política externa.

Introdução

A vitória do candidato Republicano Donald Trump contra a atual vice-presidente Kamala Harris, então candidata à Presidência dos Estados Unidos da América (EUA) pelo Partido Democrata, tem repercutido nas análises e projeções sobre o futuro da guerra na Ucrânia. Desde o início do conflito, os Estados Unidos têm sido o principal apoiador do governo de Volodymyr Zelensky através do envio de recursos que somam aproximadamente 175 bilhões de dólares aprovados pelo congresso estadunidense. Mais recentemente, a decisão do governo de Joe Biden de permitir o uso de mísseis de longo alcance (Sistema de Mísseis Táticos do Exército, ATACMS, na sigla em inglês) contra o território russo, contribuiu para a escalada da guerra. Em resposta, a Rússia atacou a Ucrânia com míssil hipersônico de médio alcance, Oreshnik, utilizado pela primeira vez.

Desde então, tem-se especulado os motivos que levaram a Administração Biden  a autorizar o uso dos mísseis ATACMS pela Ucrânia somente após ter sido derrotado nas eleições presidenciais. Uma das principais hipóteses debatidas é que a vitória de Donald Trump acarreta uma possível diminuição do apoio estadunidense a Kiev a partir de janeiro de 2025, em razão de declarações de Trump de que “acabaria com o conflito em 24 horas”. Tal declaração poderia significar uma possível pressão sobre o governo ucraniano para ceder parte de seu território à Rússia, o que consagraria o governo de Vladimir Putin como politicamente vitorioso na guerra. Nesse sentido, uma possível explicação para a escalada da guerra a partir do uso de armamentos estadunidenses contra a Rússia é a tentativa do governo Biden de avançar alguma vitória militar no conflito e aumentar o espaço de manobra da Ucrânia – sobre influência dos interesses estadunidenses – em possíveis negociações de paz futuras. 

Portanto, neste texto, buscamos entender os primeiros indícios de uma possível mudança de postura do governo dos EUA sob Trump e projetar cenários no contexto da guerra entre Rússia e Ucrânia. Para isso, analisamos a postura de Donald Trump em relação à Rússia durante seu primeiro mandato, inserindo as declarações do recém-eleito presidente dos Estados Unidos desde a eclosão do conflito em fevereiro de 2022 – principalmente durante a campanha de 2024 –, e as indicações de nomes para cargos-chave na condução da política de Washington em relação à guerra. Com esta análise, temos como objetivo compreender os possíveis impactos dessa transição de governo nos desdobramentos da guerra russo-ucraniana. Argumentamos que a eleição de Donald Trump, marcada por sua postura ambígua e de priorização dos interesses domésticos dos EUA, abre possibilidades de mudanças significativas na condução da guerra na Ucrânia, especialmente no que diz respeito à vantagem militar e a condução da política da Rússia em um contexto complexo de uma ordem mundial em transição.

 O primeiro governo Trump e as relações com a Rússia

Eleito em 2016, Donald Trump foi o 45ª Presidente dos Estados Unidos entre 20 de janeiro de 2017 e de 20 de janeiro de 2021. Desde a campanha presidencial em 2016, especulou-se sobre a interferência russa nas eleições estadunidenses com objetivo de favorecer o então candidato Donald Trump. Investigações foram conduzidas inicialmente por agências de inteligência dos Estados Unidos e, em 2017, passaram a ser lideradas pelo Departamento de Justiça, que nomeou Robert Mueller, ex-diretor do FBI, como Conselheiro Especial para as investigações sobre a interferência russa nas eleições do país. Em março de 2019, Robert Mueller publicou o relatório final no qual afirmava que, apesar de não poder inocentar totalmente Donald Trump e sua equipe de campanha das acusações, não encontrou provas suficientes de que estes teriam conspirado com agentes russos e/ou tentado obstruir as investigações e a justiça estadunidense. 

O possível conluio entre a equipe de Trump com agentes russos foi alimentado, principalmente, pela suposta admiração pessoal de Trump em relação a Putin – atribuída a suas falas sobre o presidente russo – e de que Putin teria preferência por um governo republicano em detrimento da alternativa democrática para fazer avançar seus interesses em regiões que considera de sua primazia, como a Ucrânia e Geórgia. Ainda, durante a campanha presidencial, Trump afirmou o interesse de reaproximar Rússia e Estados Unidos, considerando a cooperação entre os dois países necessária no combate ao terrorismo. 

Não obstante, o que se observou sobre as relações Washington-Moscou durante o primeiro mandato de Donald Trump foi a continuidade do distanciamento entre os dois países que havia se iniciado desde a Guerra da Geórgia, em 2008, e se intensificado sobretudo após a anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014. Embora uma possível tendência de reaproximação entre os dois países pautadas pela alegada simpatia pessoal entre os dois líderes, as diferenças entre os interesses de política externa – em especial na Ucrânia e Síria – impediram que, de fato, pudesse haver uma reaproximação mais robusta. 

Assim, a Administração Trump ampliou as sanções impostas à Rússia durante o governo de Barack Obama em resposta à anexação da Crimeia, continuou o apoio financeiro e militar às forças ucranianas contra os separatistas pró-Rússia no contexto da Guerra do Donbass iniciada em 2014. No entanto, Donald Trump já se mostrava crítico ao fato de que os Estados Unidos eram os maiores apoiadores do governo de Kiev na ocasião, alegando não ser justo que o país carregasse essa responsabilidade mesmo estando longe do continente europeu, e que os outros países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) deveriam ser mais ativos na questão ucraniana do que os EUA (KELLOGG; KEITZ, 2024).

Para além da guerra na Ucrânia, as relações entre EUA e Rússia durante o primeiro governo Trump foi marcada por outros elementos de distanciamento. Trump criticou a Alemanha – e a Europa como um todo – por sua dependência energética em relação à Rússia, e impôs sanções contra o projeto Nord Stream II, gasoduto ligando a Rússia e a Alemanha. Na Síria, Washington e Moscou se mantiveram em lados opostos no contexto da guerra civil, havendo inclusive um ataque aéreo estadunidense contra mercenários russos do Grupo Wagner após estes terem avançados contra bases dos EUA (KELLOGG; KEITZ, 2024). 

O maior exemplo da contínua desconfiança estratégica entre EUA e Rússia foi a retirada unilateral dos EUA em 2018 do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF, na sigla em inglês), muito embora esse movimento provavelmente tenha mais a ver com a necessidade de incluir a China em um novo acordo, do que apenas uma preocupação em relação à Rússia. O tratado havia sido assinado entre Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev, em 1987, e previa a eliminação dos mísseis balísticos de alcance intermediária, nucleares ou convencionais. Ao anunciar a retirada dos EUA do acordo, Trump alegou que a Rússia havia abandonado as regras do acordo há muito tempo. Em agosto de 2019, o tratado foi oficialmente encerrado entre as partes. Trump também retirou os Estados Unidos do Tratado de Céus Abertos, em 2020, seguido pela denúncia russa do mesmo tratado no ano seguinte. 

Fora da presidência, Trump acumulou uma série de declarações sobre a guerra na Ucrânia reiterando o fato de que a decisão de Vladimir Putin de invadir a Ucrânia teria sido inteligente, uma vez que a Rússia estaria incorporando uma grande extensão de território estratégico, ao passo que as sanções impostas pela Administração Biden seriam brandas; reafirmou sua boa relação pessoal com Putin; afirmou que seria capaz de encerrar o conflito em 24 horas após se reunir com Putin e Zelensky; e criticou os países europeus por não contribuírem para o auxílio à Ucrânia no mesmo montante que os Estados Unidos, novamente se referindo à proximidade geográfica dos países europeus com a Ucrânia como elemento que justificasse o auxílio, ao passo que a distância em relação ao Washington demonstraria como a questão ucraniana não é tão relevante para os interesses estadunidenses. Por fim, em debate presidencial em setembro deste ano, Trump se recusou a responder se deseja que a Ucrânia vença a guerra, afirmando que seu objetivo é acabar com o conflito e salvar vidas. Também afirmo que caso fosse o presidente dos Estados Unidos em 2022, Putin jamais teria invadido a Ucrânia.

Não obstante, não se deve tomar as declarações de Trump fora do cargo de Presidente como verdades absolutas sobre sua postura em relação à guerra na Ucrânia. Enquanto oposição ao governo Democrata, é de se esperar de qualquer candidato críticas à forma como o atual governo estadunidense tem conduzido as ações desde fevereiro de 2022. A figura de Trump, sobretudo, é marcada por falas hiperbólicas que tendem a causar um impacto entre seus apoiadores maior do que a realidade das ações práticas revelam. Em especial no contexto de campanha eleitoral, suas falas devem ser analisadas mais como um discurso ao ambiente doméstico com objetivos eleitoreiros do que uma garantia de seu posicionamento externo quando assumir o cargo.

 

Primeiros indícios

Sobre a postura inicial de Trump em relação à guerra na Ucrânia, o máximo que se pode conjecturar, por hora, baseia-se nos indícios que temos a partir dos nomeados para cargos-chave em seu governo, e considerando que o Partido Republicano terá maioria nas duas casas do Legislativo. Em primeiro lugar, J.D. Vance, então senador de Ohio e eleito vice-presidente na chapa de Donald Trump, é um ávido crítico da ajuda militar dos EUA à Ucrânia, em especial devido aos custos financeiros envolvidos. Durante a campanha, Vance defendeu a necessidade de negociar com o governo de Vladimir Putin, caracterizando-o como um adversário e competidor, mas não como um inimigo dos Estados Unidos. Ainda, Vance defende uma zona desmilitarizada entre Rússia e Ucrânia e adoção do status de neutralidade pela Ucrânia, que se absteria de sua intenção de aderir à OTAN. Outro nome é do senador da Flórida, Marco Rubio, apontado para Secretário de Estado, que deu declarações defendendo que a Ucrânia busque um acordo negociado com Moscou, ao invés de tentar recuperar todo o território ocupado por tropas russas. Em abril, Marco Rubio foi um dos 15 senadores a votar contra o pacote de ajuda de 61 bilhões de dólares à Ucrânia. Em setembro, afirmou que: “não está do lado da Rússia”, mas que “a realidade é que o modo como a guerra na Ucrânia vai terminar é com um acordo negociado”.  Em 6 de novembro, Marco Rubio declarou: “Eu acho que os ucranianos foram incrivelmente corajosos e fortes ao enfrentar a Rússia, mas, no final das contas, o que estamos financiando aqui é uma guerra em um impasse, e ela precisa ser trazida a uma conclusão, ou aquele país será jogado para trás 100 anos.”

Para o cargo de Secretário da Defesa, Trump nomeou Pete Hegseth, veterano do Exército e apresentador da Fox News. Hegseth tem sido crítico da OTAN, considerando os aliados europeus dos Estados Unidos “ultrapassados, superados belicamente, invadidos e  impotentes” em seu livro The War on Warriors: Behind the Betrayal of the Men Who Keep Us Free. Além disso, em entrevista ao Podcast “Shawn Ryan Show”, em 7 de novembro de 2024,  Hegseth afirma ser contra uma intervenção direta dos Estados Unidos na guerra da Ucrânia em razão da possível escalada nuclear do conflito. O ex-militar, que atuou no Afeganistão e no Iraque, afirmou que os Estados Unidos desperdiçaram 20 anos de dinheiro nestes países, e que estão seguindo os mesmos passos na Ucrânia.

Por fim, um dos nomes mais importantes que indica um possível posicionamento do governo Trump em relação à guerra na Ucrânia é Keith Kellogg, nomeado como enviado especial para a Ucrânia e Rússia, cargo criado por Trump. Kellog é um tenente-general aposentado do Exército estadunidense que foi chefe de gabinete do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca durante o primeiro mandato de Trump de 2017 a 2021, e Conselheiro de Segurança Nacional do então vice-presidente Mike Pence. A princípio, acredita-se que o plano a ser apresentado por Kellogg para a solução do conflito tem suas bases no artigo publicado por ele, em conjunto com Fred Fleitz, pela organização America First Policy Institute, criada em 2021 para promover a agenda de políticas trumpistas  nos Estados Unidos. No texto, intitulado America First, Russia and Ukraine, os autores criticam a Administração Biden pela ocorrência e prolongamento da guerra, afirmando que o conflito poderia ter sido evitado, e que acabou se transformando numa guerra de procuração dos Estados Unidos contra a Rússia sem uma estratégia definida dos objetivos a serem alcançados. Consequentemente, os Estados Unidos se abstiveram de promover qualquer tentativa de cessar-fogo e negociações de paz.

Kellogg e Fleitz constatam a improvável vitória ucraniana no campo militar, afirmam que o envio contínuo de armamentos dos EUA para a guerra está drenando os estoques de armas estadunidenses, e que o governo dos Estados Unidos tem outras prioridades domésticas mais importantes do que os interesses na guerra da Ucrânia. Sobretudo, afirmam que o prolongamento da guerra colabora para a crescente aproximação russa com a Coreia do Norte, o Irã e a China. 

Ao final do artigo, os autores propõem os seguintes pontos que poderiam levar ao fim da guerra: 1) os Estados Unidos continuariam a armar a Ucrânia e fortalecê-la a fim de evitar novos avanços russos. No entanto, essa ajuda estaria condicionada à participação ucraniana em negociações de paz com a Rússia; 2) a fim de convencer Putin a participar das negociações, os líderes da OTAN deveriam oferecer o adiamento indefinido da entrada da Ucrânia na aliança; 3) Moscou poderia receber algum alívio das sanções em troca de cumprir um cessar-fogo, estabelecer uma zona desmilitarizada e participar de negociações de paz; 3) a Ucrânia não seria obrigada a renunciar ao objetivo de recuperar seu território, mas teria de aceitar que essa passa por uma solução diplomática e não bélica e que dificilmente ocorreria enquanto Putin estiver no poder; 4) os Estados Unidos e seus aliados ocidentais só suspenderiam por completo as sanções contra a Rússia e normalizariam as relações com Moscou após um acordo de paz final assinado pelas partes que fosse aceitável para Kiev; 5) a reconstrução da Ucrânia seria financiada através de taxas aplicadas sobre as vendas de energia russa. 

Ademais, suas relações com líderes europeus acentuam a dubiedade de seus objetivos. Em fevereiro, o presidente francês, Emmanuel Macron, sugeriu a possibilidade de a Europa enviar tropas à Ucrânia após discussões entre líderes europeus em Paris. Na ocasião, a proposta foi rejeitada pela OTAN e outros atores. No entanto, o esforço de Trump por um cessar-fogo reacendeu este debate. Autoridades francesas enfatizaram que a iniciativa dependeria de algum tipo de apoio dos EUA, mas permanece incerto se o governo Trump estaria disposto a considerar tal medida. Assim, a possível postura de priorização dos interesses domésticos dos EUA parece ser um fator que adicionaria complexidade às possibilidades de atuação do Ocidente na guerra em curso. Essa postura reflete-se nas relações com líderes europeus e com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. Durante a reabertura de Nôtre-Dame, em 7 de dezembro, Trump afirmou a Zelensky e a Macron de que não apoiava a adesão da Ucrânia à OTAN, argumentando que a Europa deveria assumir o papel principal na defesa e no apoio à Ucrânia.

A despeito das intenções do novo governo Trump de iniciar negociações de paz com a Rússia, é necessário ponderar o posicionamento russo neste contexto. Segundo o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, Putin não estaria disposto a congelar as linhas atuais de combate, e só aceitaria participar de negociações quando seus objetivos forem atingidos. Nesse caso, as demandas russas contemplam, atualmente: 1) o abandono das ambições ucranianas d e entrar na OTAN; 2) retirada das tropas ucranianas das quatro zonas ocupadas parcialmente pela Rússia: Donetsk, Luhansk, Kherson and Zaporizhzhia; 3) reconhecimento Crimeia enquanto parte da Federação Russa.

 

Possíveis cenários

A partir do exposto, consideramos que quatro cenários podem se desenvolver a partir de 2025:

1 – Trump cessa por completo o apoio à Ucrânia e as tropas russas continuam a avançar sobre território ucraniano antes de iniciarem negociações de paz, com o objetivo de obter maior quantidade de território possível;

2 – Trump cessa por completo o apoio à Ucrânia, há o congelamento do conflito, e Rússia e Ucrânia aceitam participar de negociações de paz; 

3 – Trump propõe o congelamento do conflito, mas Rússia e Ucrânia não aceitam as condições e o conflito continua nos moldes atuais;

4 – Não há o início de negociações de paz e a guerra continua a escalar;

Em qualquer um destes cenários, no entanto, o status da Ucrânia em relação à OTAN é a questão fundamental para a solução do conflito. A expansão da aliança militar ocidental para o leste é o tema mais sensível para a segurança russa desde o processo de dissolução do Pacto de Varsóvia e da União Soviética. Muito antes das falas de Trump e de outros membros do seu governo, essa percepção já era clara para muitos dentro do próprio Estados Unidos da América, como é o caso do teórico John Mearsheimer, crítico desde os anos 1990 da contínua incorporação de países que anteriormente compunham a URSS, sobretudo da perspectiva de adesão da Ucrânia ao bloco.

No entanto, a incerteza sobre as intenções de ambos os lados sobre esta questão será, provavelmente, a principal dificuldade em um possível processo de negociação de paz. Do lado russo, qualquer solução momentânea e que não deixe explícito em acordo oficial e escrito o status de neutralidade e de renúncia do pleito ucraniano de entrar para a OTAN é insatisfatória. Afinal, é de interesse primário russo evitar que o mesmo cenário se repita após as promessas feitas à Gorbachev, no final da Guerra Fria, de “nenhum centímetro para o leste”. Já do lado ucraniano e da OTAN, há o receio de que garantir a neutralidade ucraniana e a renúncia do país aderir à aliança irá possibilitar a Putin continuar com o ímpeto expansionista e, futuramente, tentar controlar todo o território ucraniano. 

 

Considerações finais

Após a eleição de Donald Trump como novo presidente dos Estados Unidos, muito tem se especulado sobre o futuro posicionamento do governo estadunidense em relação à guerra da Ucrânia, e a possibilidade de, após quase três anos de conflito, terem início negociações de paz entre Moscou e Kiev. A forma como Trump expressa seus posicionamentos, ao mesmo tempo categóricos e hiperbólicos, mas também dúbios e sem maiores detalhes, colabora para que diferentes interpretações e análises sejam feitas acerca do que esperar de seu segundo mandato como presidente. Contudo, afirmações de que Trump será capaz de pôr um fim imediato à guerra são ingênuas e carecem de uma visão holística que engloba os interesses não somente de Donald Trump e de seus apoiadores, mas também os interesses russos, ucranianos e a compreensão sistêmica de uma ordem mundial em processo de transição.

Naturalmente, a postura de Trump de priorizar os interesses estadunidenses domésticos em detrimento uma presença maior externamente, epitomizada pelo discurso America First, e de seu círculo de conselheiros mais próximos, em especial o enviado Keith Kellogg, faz com que seja possível conjecturar uma diferença na condução da guerra em relação ao governo de Joe Biden. Nesse sentido, a simples menção a negociações de paz traz um indício mais promissor para o fim do conflito do que a postura atual estadunidense de auxílio financeiro e bélico constante à Ucrânia, a tentativa de isolar Putin e sancionar pesadamente a economia russa. 

Assim, é possível afirmar que o governo Trump pode, por iniciativa própria, pressionar a Ucrânia e a Rússia ao início às negociações de paz. Isso não implica, no entanto, no sucesso destas negociações, muito menos em acreditar na possibilidade de resolução do conflito em 24 horas como propagado por Trump. Enquanto divergências estratégicas entre as partes não forem resolvidas – sobretudo no que tange à disputa territorial e a participação ou não-participação da Ucrânia na OTAN, o conflito continuará a se estender, podendo se tornar ainda mais complexo, uma vez que surgem discussões entre os membros da OTAN sobre a possibilidade de enviar tropas europeias em solo ucraniano em uma iniciativa de manutenção de paz, que não configuraria uma operação da própria OTAN. Estes aspectos e divergências contribuem para a permanência e aprofundamento do impasse militar que, por hora, parece mais favorável ao avanço russo do que a capacidade de defesa ucraniana. Por sua vez, a vantagem atual russa pode implicar em uma maior necessidade da Ucrânia de renunciar a seu território do que Moscou fazer concessões. 

Consequentemente, Putin parece ter a vantagem de uma vitória política em uma possível resolução diplomática do conflito. Ironicamente, esse cenário é o que torna mais improvável o abandono completo do futuro governo Trump em relação a Kiev, como aventado por aqueles que argumentam que Trump, por admiração pessoal por Putin e seu pouco interesse na continuidade de auxílio estadunidense à Ucrânia, cessaria, de imediato, o apoio de Washington. No caso de uma vitória política de Putin, pode-se afirmar se tratar de uma grande derrota dos Estados Unidos em um conflito com traços de transição hegemônica, que poderia sacramentar o fim da hegemonia estadunidense e da ordem internacional liberal característica do período pós-Guerra Fria.

 

Referências

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SPIRLET, Thibault; JANKOWICZ, Mia. Trump’s Pentagon pick criticized US involvement in Ukraine, said Putin probably wouldn’t go ‘much further’ if he wins. November 13, 2024. Business Insider. Disponível em: https://www.businessinsider.com/trump-pentagon-pick-pete-hegseth-criticized-us-involvement-ukraine-aid-2024-11. Acesso em: 23 dez. 2024.

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WATCH: TRUMP SAYS as President He’d Settle Ukraine War Within 24 Hours. May 10, 2023. Wall Street Journal. https://www.wsj.com/video/watch-trump-says-as-president-hed-settle-ukraine-war-within-24-hours/0BCA9F18-D3BF-43DA-9220-C13587EAEDF2?embed=true. Acesso em: 23 dez. 2024.

 

 

*Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUCSP). Contato: getulio.neto@unesp.br

**Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Contato: mec.araujo@unesp.br

Agenda do governo Biden para a América Central e a reestruturação da hegemonia dos EUA

João Estevam dos Santos Filho* 

Texto publicado originalmente no Le Monde Diplomatique.

 

Na primeira semana de maio de 2022, no marco da Cúpula das Américas, os governos dos EUA e do México anunciaram o planejamento de um plano bilateral de assistência à América Central, em virtude tanto da crise migratória que tem se dado na região desde o final da década passada, quanto da revogação de medidas anti-imigração tomadas pelo governo de Donald Trump (2017-2021). Esse é um dos eventos que têm marcado as relações entre EUA e América Central durante o governo de Joe Biden, um dos pontos mais importantes na agenda do presidente democrata para a América Latina desde a sua campanha presidencial. No entanto, mais do que uma mera resposta à crise migratória, essas relações também compõem uma série de mudanças na política externa norte-americana, voltada para uma reestruturação de sua hegemonia na região latino-americana.

Atenção renovada à América Central

Desde sua campanha presidencial, as prioridades que Biden definiu para as relações com a América Latina incluíam a intensificação da assistência à América Central – inclusive a partir de uma abordagem diferente daquela que vigorou durante a administração de seu antecessor – mais focada na implementação de medidas anti-imigração, inclusive por meio da militarização da fronteira com o México.

Assim, ainda enquanto candidato, dentre os objetivos estabelecidos, foram apontados o desenvolvimento de uma estratégia regional de quatro anos com recursos equivalentes a US$ 4 bilhões para os países do Triângulo Norte (Guatemala, Honduras e El Salvador – a principal fonte dos imigrantes para os EUA e países com alto índice de violência e corrupção institucional) e a mobilização de investimentos privados para a região. Nesse segundo caso, a proposta incluía a ação conjunta com instituições financeiras internacionais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para desenvolver projetos de infraestrutura e promover investimentos diretos estrangeiros; criação das condições jurídico-institucionais necessárias para tornar o funcionamento de seus mercados eficiente e transferência de recursos financeiros para bancos privados da região, a fim de garantir capital para microempreendedores. Portanto, já em sua campanha, Biden afirma a importância de os EUA consolidarem sua posição na América Central, não apenas por meio de mecanismos de segurança, mas também através de maior presença de capitais públicos e privados estadunidenses na região.

Já nos primeiros meses de seu mandato, o novo governo norte-americano, através da vice-presidente Kamala Harris, encarregada de tratar as questões referentes à América Central anunciou um pacote de assistência no montante de US$ 310 milhões, a fim de ajudar no combate à insegurança alimentar no Triângulo Norte. Ademais, em dezembro de 2021, também foram anunciados pela vice-presidente um pacote de investimentos diretos no valor de U$ 450 milhões, realizado por empresas como Microsoft, Cargill, PepsiCo, dentre outras. Além disso, a administração tem aumentado os volumes de recursos destinados à região, através de dois programas centrais para a Estratégia dos EUA para Engajamento na América Central: a Iniciativa de Segurança Regional da América Central (CARSI, na sigla em inglês) e o Programa Regional da América Central da USAID – cujos orçamentos foram reduzidos severamente no governo Trump (MEYER, 2022).

Dois aspectos se destacam nesse renovado interessante pela América Central: em primeiro lugar, a tendência de diminuição da assistência especificamente militar iniciada ainda no governo de Barack H. Obama (2009-2017) foi mantida: entre 2010 e 2021, os valores totais para esse setor passaram de US$ 107,8 milhões para US$ 1,7 milhões. O segundo aspecto foi iniciado também durante a administração Obama e, apesar de ter sofrido um forte revés com a diminuição dos valores destinados à América Central pelo governo Trump, tem continuado com a administração de Biden, tratando-se da tendência crescente de destinar recursos para projetos socioeconômicos em conjunto com os Estados centro-americanos, o México e instituições financeiras internacionais (principalmente o BID) e a realização destes com significativa presença de capitais privados transnacionais – em sua maioria sediados nos EUA.

Dessa forma, desde a construção da Estratégia dos EUA para Engajamento na América Central em 2016, o foco da agenda norte-americana para a região tem sido o de aumentar sua presença não apenas por meio da assistência de segurança (ainda que esta se mantenha até hoje), mas principalmente por meio do fluxo de seus capitais privados para a região. Também é importante afirmar que, apesar da forte ênfase do governo Biden na América Central, essas duas tendências têm se verificado no conjunto das relações dos EUA com a região latino-americana, o que deixa implícito que essa tendência, mais do que uma mera resposta de médio prazo para a crise migratória, também faz parte de um contexto maior de reestruturação da hegemonia norte-americana na América Latina.

Relações com a América Central e a hegemonia dos EUA

A América Central e o Caribe foram as primeiras sub-regiões do chamado Hemisfério Ocidental a serem incorporados ao sistema de relações hegemônicas criadas pelos EUA na segunda metade do século XIX e início do XX. De um modo geral, desde então, as ações norte-americanas na região incluíram a exportação de capitais em diversos setores econômicos, principalmente nos ramos de agronegócio e extração mineral; intervenção direta (como no caso da Guatemala em 1954, da República Dominicana em 1965, de Granada em 1983 e do Panamá em 1989); financiamento de paramilitares (como no caso dos Contras, criados para desestabilizar o governo sandinista da Nicarágua na década de 1980), dentre outras medidas (SMITH, 2008). Dessa forma, a América Central – bem como a Bacia do Caribe – têm sido consideradas as zonas de influência dos EUA “por excelência”.

Entretanto, a partir do fim da Guerra Fria, as relações hegemônicas entre EUA e América Latina passaram por mudanças, uma vez que, além do desmantelamento do bloco soviético, essa hegemonia passou a se basear fortemente na implementação de um projeto neoliberal de poder, fundamentado não apenas no desenvolvimento de uma “economia de mercado” (que incluía o fim de barreiras comerciais, desregulamentação das leis trabalhistas, privatização de empresas estatais, flexibilização dos fluxos de capitais financeiros), mas também na criação de um ambiente político-institucional que favorecesse a presença de empresas transnacionais (ROBINSON, 2005). O apoio norte-americano a esse projeto foi visto tanto por meio das negociações entre os diferentes Estados latino-americanos com o governo e os bancos privados dos EUA nas décadas de 1980 e 1990, quanto também por meio de acordos regionais, sobretudo os de livre-comércio, como foram os casos do Acordo de Livre-Comércio da América do Norte (NAFTA, na tradução em inglês) e dos acordos firmados com Colômbia, Peru, Chile e com a América Central.

Por outro lado, esse novo esquema de relações hegemônicas esteve centrado em um forte estímulo ao emprego interno das forças militares latino-americanas – agora não mais contra os agentes do comunismo internacional, mas contra as chamadas “novas ameaças”, cuja maior expressão era o crime organizado transnacional e o terrorismo internacional. Desse modo, foram criados programas de assistência de segurança com forte viés militarizado, como o Plano Colômbia, a Iniciativa Regional Andina, a Iniciativa Mérida e até mesmo o CARSI. Suas principais características eram: aumento do volume de recursos destinados às forças armadas desses países; maior transferência de armamentos para uso interno; intensificação do treinamento de militares latino-americanos e propagação de doutrinas de operações especiais entre as forças de segurança da região.

No entanto, a partir de meados da década de 2000 e 2010, a hegemonia norte-americana experimentou algumas contrarreações, dentre as quais se destacaram: a ascensão de governos de esquerda na região (evento que ficou conhecido como “Onda Rosa”) e a maior presença chinesa na América Latina. Em relação ao primeiro caso, foi visto a criação de uma série de projetos nacionais e regionais direcionados a minar algumas das bases do projeto neoliberal na região (CHODOR, 2015). Por outro lado, a presença chinesa passou a preocupar as elites políticas estadunidenses, dado o aumento do volume de fluxos comerciais, de investimentos diretos (inclusive, em áreas em que a presença norte-americana ainda é deficiente) e empréstimos financeiros. Importante também mencionar que essa aproximação chinesa tem se dado inclusive na América Central, com alguns países sendo incluídos na iniciativa One Belt, One Road (Panamá, Costa Rica, Nicarágua e El Salvador).

Em virtude dessas mudanças estruturais – além da própria crise econômica de 2008-2009 –, as relações hegemônicas entre EUA e a América Latina têm passado por algumas mudanças operacionais, ainda que sua consistência política (baseada principalmente no neoliberalismo e na financeirização) permaneça a mesma. Desde o governo de Barack Obama, tem havido um esforço das diferentes instituições estatais norte-americanas de adaptar os programas de assistência aos países latino-americanos para atividades mais focadas na construção de condições socioeconômicas de uma economia de mercado. Dessa forma, o próprio CARSI que foi criado como uma iniciativa de assistência de segurança aos países da América Central tem se convertido em um plano de direcionamento de investimentos para a região, principalmente, a partir do maior envolvimento da USAID no programa (MEYER; SEELKE, 2015). Além disso, a partir de 2015, foram criadas as chamadas Estratégias de Cooperação para Desenvolvimento do País para os Estados centro-americanos. Essas iniciativas têm como objetivo auxiliar na realização de projetos socioeconômicos de cada país (em parceria com os respectivos governos) e canalizar capitais privados para a realização de investimentos na região.

Por outro lado, mesmo com as restrições orçamentárias para a assistência à América Central levadas à cabo pelo governo Trump, essa tendência apresentada na administração anterior não foi totalmente abandonada, uma vez que também houve um foco no aumento do direcionamento de investimentos privados, orientados por instituições como a USAID e o novo banco de investimentos internacionais, a Corporação Financeira dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (DFC, na sigla em inglês). Desse modo, foram instituídos projetos como o América Cresce, focado em áreas como infraestrutura e telecomunicações em diversos países da América Latina – áreas em que os capitais norte-americanos ainda perdem para os chineses.

Tendência de longo prazo

Desse modo, os projetos criados nos três últimos governos norte-americanos para a América Central têm dado indicativos de serem mais do que meras respostas de curto prazo para a crise migratória no sul dos EUA. Ao que se demonstra, essa tem sido uma tendência de longo prazo nas relações hegemônicas com a América Latina, para as quais a presença de capitais privados (e públicos) estadunidenses passa a ser uma peça central. É importante mencionar que essa medida contribui para duas questões centrais: em primeiro lugar, oferece um contraponto à aproximação econômica e política chinesa na região, atuando em setores ainda pouco atendidos pelos capitais privados norte-americanos. E em segundo lugar, por meio dessas medidas – juntamente com a assistência militarizada que as elites políticas estadunidenses ainda oferecem aos países centro-americanos –, é criado um ambiente institucional que privilegia a construção de relações sociais especificamente neoliberais, garantindo a assim a continuação do processo de acumulação de capital nessa região.

 

João Estevam dos Santos Filho é doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, Puc-SP). Pesquisador pelo Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes).

Imagem: Biden assina declaração sobre migração. Por: Departamento de Estado (EUA)/Flickr.

Referências

CHODOR, T. Neoliberal hegemony and the Pink Tide in Latin America: breaking up with TINA? Basingstoke; New York: Palgrave Macmillan, 2015-.

MEYER, P. J. U.S. Foreign Assistance to Latin America and the Caribbean: FY2022 Appropriations. Washington, D.C.: CRS, 2022.

MEYER, P. J.; SEELKE, C. R. Central America Regional Security Initiative: Background and Policy Issues for Congress. Washington, D.C.: CRS, 2015.

‌ROBINSON, W. I. Gramsci and Globalization: From Nation‐State to Transnational Hegemony. Critical Review of International Social and Political Philosophy, [s. l.], v. 8, n. 4, p. 559–574, 2005.

‌SMITH, P. H. Talons of the eagle: Latin America, the United States, and the world. New York: Oxford University Press, 2008.‌