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Terras conquistadas e terras a conquistar: o xadrez do ministério da defesa

Lis Barreto*

Já há alguns anos nós assistimos a crescente militarização dos cargos políticos ligados à  União, sejam eles ministérios ou empresas subordinadas ao Governo Federal. O ministério da defesa não foi exceção a este movimento, tendo iniciado um ciclo de ministros militares a partir do governo do Presidente Temer e se mantendo desta forma até hoje (outubro de 2022)[1].

Estas não são notícias felizes. Para quem está familiarizado com a história brasileira e, em especial, aos debates acadêmicos em torno da importância do ministério da defesa, sabe que uma das maiores expectativas em torno da criação deste órgão esteve e está no seu papel na construção de relações civis-militares democráticas. Isto ocorreria através de várias mudanças, sendo um ponto essencial a própria presença de um ministro civil, que teria o papel de reduzir o contato direto entre os militares e o Presidente da República, como também o de evitar que as decisões políticas do ministério pendessem para um corporativismo (FEAVER, 2003). É controverso – e, creio eu, incorreto – afirmar que em algum momento já tenhamos atingido um controle civil dos militares, mesmo antes de vivenciarmos a militarização dos ministros. Apesar disso, o MD segue sendo a representação de uma vitória importante para a democracia. Imperfeito e criticado como é e sempre foi, ele logrou criar bases para que um dia possamos estabelecer – de jure e fato – relações civis-militares democráticas (BARRETO, 2021). São essas mudanças conquistadas a partir de 1999 que eu gostaria de chamar atenção, afinal somente entendo o quanto avançamos podemos entender o que está em jogo.

Antes de prosseguirmos nesta linha, faz-se necessário um pequeno adendo. Os avanços e mudanças que citarei adiante são de caráter institucional. Isso quer dizer que estou apresentando alterações que foram feitas nas regras do jogo, as quais influenciam as ações das personagens envolvidas e mudam o custo das suas ações. De uma forma simples, adoto aqui a visão de que quanto mais regrado é um jogo, mas custoso se torna jogar fora das regras. O aumento do custo deriva da previsibilidade que vem junto com o aumento de regras. Por exemplo, se todas as pessoas sabem que para comprar um artefato nós utilizamos dinheiro, seja ele físico ou virtual, torna-se custoso para uma pessoa querer comprar ou vender algo utilizando livros como meio de troca. Isso exigiria uma negociação a cada rodada de compra para se chegar em uma troca. Quando se implanta um padrão regrado, quanto menos espaços houver para dúvidas ou interpretações, mais previsível ele o é para os atores, que podem moldar suas ações e/ou expectativas com base nisso (NORTH, 1990).

Dito isto passamos aqui a destacar como o MD passou a delinear e circunscrever as relações civis-militares a partir de sua criação através da consolidação de padrões que se mantém até hoje, mesmo com os ministros militares. Ao final, aponto para o que acredito que precise ser a nova trincheira, sem perder de vista a necessidade de preservar e manter consciência daquilo que já conquistamos.

Oficialmente criado em 1999, o MD foi o resultado de longas e complexas sequências de jogadas e negociações envolvendo o Poder Executivo, as Forças Armadas e o Legislativo. Teve de tudo. Desde a criação da figura de um Ministro Extraordinário da Defesa para pressionar o Legislativo e as Forças, chegando às incríveis cessões ao estamento militar, o qual além de ter sido retirado da reforma previdenciária que acontecia em paralelo, recebeu aumentos salariais e manteve o status jurídico dos ministros para os seus Comandantes (MARTINS FILHO, 2006; FUCCILE, 2006).

No momento em que o ministério foi criado, o cargo de ministro da defesa não dispunha de funções formalizadas, sendo denunciado pela academia como um tipo de “Rainha da Inglaterra”, cuja existência era constantemente percebida como uma falsa liderança civil em um ministério fortemente militarizado (ZAVERUCHA, 2005). Neste contexto, tudo apontava para criação de uma instituição vazia, sem poder de alterar a relação próxima e direta entre os militares e o poder público. Contudo, instituições são coisas curiosas.

Um conceito famoso no estudo das instituições é o de consequências imprevistas. Ele é aplicado para explicar situações em que uma instituição tem um impacto não previsto. Normalmente a imprevisibilidade acontece porque nenhuma instituição é criada no vazio, e um novo arranjo institucional interage com os já existentes criando interações nem sempre previstas (PIERSON, 2004). No caso do MD, da forma como foi criado, pouco inspirava afetar democraticamente as relações civis-militares, mas acabou sendo a base para que a relação se tornasse mais regrada, mais previsível, ou seja, mais institucionalizada.

Destaco duas principais razões para o ocorrido. O primeiro é que, diferentemente da grande maioria dos ministérios, o MD não pode deixar de existir através de um Decreto Presidencial, pois o ministro consta na Constituição Federal[2]. Esta façanha conquistada em meio às negociações para a criação do MD, tornou o ministro da defesa uma figura constitucional, só podendo ser excluído com anuência de 3/5 do Congresso Nacional, tornando sua existência resistente aos humores políticos. O caráter mais perene do ministério ajuda a circunscrever o palco para o debate da questão militar e das políticas, transformando-o no grande centro da disputa de poder entre militares e políticos eleitos (BARRETO, 2021).

O segundo ponto é que, com o tempo – e com o timing certo –, o ministro da defesa conquistou funções. Entre 1999 e 2006, a ausência de diretrizes relacionadas ao cargo de ministro fazia com que este competisse internamente sobre suas próprias atribuições e, neste ambiente de disputa, ganhava quem tinha mais poder. No entanto, com a crise aérea de 2006 e a decorrente posse de Nelson Jobim, muda-se o perfil de quem ganhava este jogo (BARRETO, 2016). De 2006 até 2010, Jobim atuou com destacada liberdade no ministério, elaborando documentos de alto impacto, como a Estratégia Nacional de Defesa e a Política Nacional de Defesa, chegando, inclusive, a ser a peça-chave na construção de um arranjo regional de defesa (VAZ, 2013). Tudo isso sem que um único pedaço de papel formal atribuísse a ele estas capacidades. Esta força política de Jobim criou a base para os seus sucessores pudessem dispor de tais atribuições, pois a Lei Complementar 136 de 2010 formalizou as primeiras atribuições do ministro da defesa onze anos após a sua criação (BARRETO, 2021).

Estes dois pontos nos ajudam a entender como o MD circunscreveu o espaço de debate da questão militar, ao legitimar o ministério como centralizador dos temas ligados as FA, como o campo a ser disputado. O MD também formalizou as formas de ação e interação, estipulando diretrizes e os temas que o são pertinente, através da figura que gradualmente se legitima a falar em nome do ministério, que é o ministro da defesa. Esta normatização criada em torno do MD oferece alguma previsibilidade no formato da interação do ministério com o governo, de forma razoavelmente estável.

No entanto, como todos sabemos, nem tudo são flores e há ainda um longo caminho pela frente. Se observarmos o trajeto aqui descrito, podemos notar que quando o MD se tornou o objeto de disputa de poder, em especial devido à dificuldade que seria extingui-lo, ocupá-lo se tornou essencial. A formalização das atribuições do ministro auxiliou no fortalecimento deste ator, mas dificilmente seria capaz de ir muito além se este andasse sozinho em um ministério completamente militarizado.

Nesta questão, foram realizadas alterações importantes no organograma do ministério da defesa, durante os mandatos dos ministros Nelson Jobim e Celso Amorim. Elas não reduziram a ala exclusivamente militar – que infelizmente se expandiu – porém criaram cargos diretamente subordinados aos ministros que dispunham de funções que, muitas vezes, concorriam com outras que existiam na parte já militarizada do MD[3]. Dito de outra forma, foi realizada uma duplicação de funções no ministério que – interpreto eu – ajudaram a manter a centralizar nas mãos dos ministros parte importante das decisões políticas do ministério.

Contudo, diferentemente das outras modificações citadas neste texto, esta não possui uma alta capacidade de sobrevivência, pois o organograma pode ser modificado por Decreto Presidencial e porque todos os cargos do MD são cargos comissionados. Isso quer dizer que a estrutura do ministério é completamente modificável e que não é possível criar uma memória institucional. Por esta razão, era de se esperar que, a partir de 2016, com os ministros militares, ocorresse um esvaziamento da estrutura frágil que fora criada nos anos anteriores. Contudo, poder é uma coisa muito séria e pouca gente abriria mão dele, uma vez que o possuísse. Então, ao invés de assistirmos ao fim do organograma duplicado, assistimos a sua militarização.

Para quem não sabe, os quadros militares do MD são divididos de forma bastante equitativa entre as três Forças[4]. Porém a escolha dos ministros da defesa é política e, dentre os militares, só o Exército foi contemplado. Por que o Exército iria destruir a duplicação se ele dispunha do 1/3 que lhe cabia e agora adicionava o puxadinho que antes cabia aos civis? A manutenção da desigualdade indica que a estrutura civil dispunha de alguma robustez. Esta não foi destruída – ainda – e mesmo que seja, esta poderá ser facilmente recuperada, enquanto outra forma de ação não seja criada e implantada. Contudo, esta dinâmica mostra a necessidade de garantir alguma sobrevivência civil dentro dela.

Não é nenhuma demanda nova. A primeira proposta formal para o estabelecimento de uma carreira civil para a defesa é anterior a criação do próprio ministério[5] e segue ecoando nas falas acadêmicas. Ninguém está supondo que será fácil ou que serão criados vários cargos ou, menos ainda, imaginando que isto poderá ocorrer sem concessões. Mas no jogo de xadrez institucional que se move lentamente ao longo das duas últimas décadas e, uma vez preservadas as movimentações anteriores, esta parece ser a próxima jogada lógica. Acredito eu que é chegada a hora de tentar criar uma memória civil dentro do ministério da defesa.

 

* Lis Barreto é doutora em Ciência Política em regime de cotutela entre a Universidade Federal de São Carlos e a Universidade de Lisboa. Lis recebeu o Prêmio Capes de Tese 2022 na área de Ciência Política e Relações Internacionais, com trabalho sobre a institucionalização das relações civis-militares no Brasil.

Imagem: Esplanada dos Ministérios. Por: Mariordo/Wikimmedia Commons.

 

[1] Ver o jornal O Globo: <https://oglobo.globo.com/brasil/temer-oficializa-primeiro-militar-no-comando-doministerio-da-defesa-22776031>; Ver Folha de S. Paulo: < https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/03/bolsonaro-multiplica-por-10-numero-de-militares-no-comando-de-estatais.shtml >.

[2] Através da Emenda Constitucional 23 de 1999.

[3] Informações disponíveis nos Decretos Presidenciais 3080 de 1999; 3466 de 2000; 4735 de 2003; 5201 de 2004; 6224 de 2007; 7364 de 2010; 7974 de 2013; 8978 de 2017; 9570 de 2018; 10076 de 2019; 10293 de 2020; 10806 de 20211; 0998 de 2022. Disponíveis no site do Planalto: <http://www.planalto.gov.br>.

[4] Com base nos decretos citados acima, quando não há divisão em três, há rodízio para a ocupação dos cargos.

[5] Foi proposto pelo então deputado José Genoíno em 1998, durante o tramite da PLP 250/1998. Ver Barreto,2021, p. 94-96.

 

Referências Bibliográficas

BARRETO, Lis. A Dimensão da Defesa na Política Externa dos Governos de Lula da Silva (2003-2010) e Rousseff (2011-2014). Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais), 2016. Disponível em: < https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/144188/barreto_l_me_mar.pdf>.

BARRETO, Lis. A institucionalização das relações civis-militares no Brasil (1988-2014): o papel das prerrogativas presidenciais. Tese (Doutorado em Ciência Política), 2021. Disponível em: < https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/14842>.

FEAVER. Armed servants: agency, oversight, and civil–military relations. Harvard University Press, 2003.

FUCCILLE, Luís Alexandre. Democracia e questão militar: a criação do Ministério da Defesa no Brasil. 2006. 282 f. Tese (Doutorado de Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, 2006.

MARTINS FILHO, João Roberto. O governo Fernando Henrique e as Forças Armadas: um passo à frente, dois passos atrás. Revista Olhar. Nº 4, 2000.

NORTH, Douglass. Institutions, institutional change and economic performance. Cambridge University Press, 1990.

PIERSON, Paul. Politics in Time: History, institutions and social analysis. Princeton: Princeton University Press, 2004.

VAZ, Alcides. A Ação Regional Brasileira sob as Ópticas da Diplomacia e da Defesa: Continuidades e Convergências. In: FAUSTO, Sergio; SORJ, Bernardo. (Orgs.) O Brasil e a governança da América Latina: Que tipo de liderança é possível? Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2013. São Paulo: Fundação Instituto Fernando Henrique Cardoso (iFHC), 2013.

ZAVERUCHA, Jorge. A Fragilidade do Ministério da Defesa Brasileiro. Revista de Sociologia e Política. Curitiba, V. 25, nov. 2005.

Referências midiáticas

BRASIL. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>.

FERNANDES, Leticia. Temer oficializa primeiro militar no comando do Ministério da Defesa. O Globo, 13 de jun. 2018. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/temer-oficializa-primeiro-militar-no-comando-doministerio-da-defesa-22776031>.

SEABRA, Catia; GARCIA, Diego. Bolsonaro multiplica por 10 o número de militares no comando de estatais.  Folha de S. Paulo, 6 de mar. 2021. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/03/bolsonaro-multiplica-por-10-numero-de-militares-no-comando-de-estatais.shtml >.

O “bolsonarismo” como elo e como amálgama

Jorge M. Oliveira Rodrigues*

 

A compreensão da crise política e social brasileira exige uma análise que adote como ponto de partida o reconhecimento de sua complexidade. Se é certo que o desenrolar da crise se sustenta em aspectos muito bem arraigados de nossa sociedade, é certo também que se insere no contexto mais amplo da crise do capitalismo global. Nesse sentido, a ascensão de Jair Bolsonaro ao poder, reflexo e resultado da crise que se instaurou no país, deve ser encarada como elo e como amálgama nesse processo histórico amplo e complexo.

Com efeito, a chegada de Bolsonaro à Presidência e o movimento que se convencionou nomear de “bolsonarismo” são fenômenos que encontram equivalentes em nível global. O governo de Donald Trump nos Estados Unidos, Jeanine Áñez na Bolívia e de Viktor Orbán na Hungria são exemplos da ascensão da extrema direita, pela via eleitoral ou pela ruptura institucional. Todavia, o ecossistema da extrema direita global não se resume a movimentos que assumiram poder em seus respectivos países.

Na França, a presença da extremista de direita Marine Le Pen no segundo turno das eleições presidenciais se tornou recorrente, resultando na formação de uma espécie de cordão de contenção por parte dos demais grupos políticos para evitar sua vitória – cordão este que não se sabe até quando perdurará. Em 2022, a novidade foi a presença de Eric Zemmour na disputa presidencial, com um discurso reacionário virulento e angariando 7,07% dos votos no primeiro turno das eleições francesas – o equivalente a 2.485.226 de votos.

Na América Latina o cenário político tampouco está livre de grupos e atores políticos de extrema direita. Na Bolívia, para além da auto-proclamada – e agora presa – presidente Jeanine Áñez, o empresário Luis Fernando Camacho participou ativamente do golpe que levou à renúncia de Evo Morales e à posterior instauração de um governo repressivo e de agenda neoliberal antipopular. No Peru, a recusa da candidata de Keiko Fujimori, de extrema direita, em reconhecer a vitória de seu adversário, Pedro Castillo, agravou a crise política no país, gerando ainda maior instabilidade.

Ao mesmo tempo, na Argentina, Javien Milei vem se mostrando um ator político relevante, articulando uma agenda ultraliberal[1] no país. Enquanto no Uruguai as eleições de 2020 foram marcadas pela presença de Guido Manini Ríos, um general de extrema direita, entre os postulantes à Presidência. Ex-comandante do Exército destituído pelo então presidente Tabaré Vázquez e atualmente senador, Ríos teve como companheiros de partido naquele pleito eleitoral candidatos acusados de tortura a prisioneiros políticos durante a ditadura uruguaia, de acordo com a cientista política da Universidad de la República, Alexandra Lizbona.

Nesse ecossistema, do qual destacamos apenas alguns eixos, merecem atenção as relações estabelecidas entre os diversos grupos que o compõem. Tomemos por foco o “bolsonarismo”. É fundamental ter em mente a participação de Eduardo Bolsonaro e de outros políticos aliados do “bolsonarismo”, como Carla Zambelli e Tarcísio de Freitas, na Conferência de Ação Política Conservadora – CPAC, por sua sigla em inglês. De fato, o filho do presidente não apenas participou de diversas edições do evento, como trabalhou ativamente para que o Brasil passasse a sediar edições da conferência.

Ademais, são conhecidos os laços da família Bolsonaro com o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, bem como com o extremista de direita, Steve Bannon. Eduardo Bolsonaro, inclusive, teve seu nome aventado em investigações no Congresso estadunidense, que, no esforço de desvendar os laços da extrema direita no país, cogita averiguar a participação do parlamentar brasileiro na invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021.

No âmbito regional, é sintomático o rápido reconhecimento do governo de Jeanine Áñez, na Bolívia, por Jair Bolsonaro. Os laços da extrema direita latino-americana são explicitados ainda pela proximidade de Eduardo Bolsonaro e Javier Milei, da Argentina. Milei, assim como Trump, chegou a declarar apoio à campanha de reeleição de Jair Bolsonaro. Os vínculos, entretanto, não se limitam à família presidencial. Em setembro de 2021, Guido Manini Ríos manteve reunião com o vice-presidente brasileiro, Hamilton Mourão, tendo também se encontrado com Luiz Carlos Heinze, senador pelo Rio Grande do Sul, aliado de Bolsonaro e notório negacionista.

Configura-se, assim, uma cadeia mais ampla da qual o “bolsonarismo” é um dos elos constitutivos. Sua análise enquanto fenômeno político deve levar em consideração suas relações externas e sua inserção numa cadeia global. Concordamos com a cientista social Sabrina Fernandes que mesmo não sendo possível falar numa “aliança unificada da extrema direita global”, é certo que esses grupos se comunicam, estabelecendo parcerias que vão além de relações institucionais de eventuais governos que ocupem. Todavia, também em conformidade com a pesquisadora, é preciso ir além da mera busca por paralelos ou similaridades.

Com efeito, a análise do “bolsonarismo” como fenômeno exógeno, elo numa cadeia que vai além de si, embora relevante, é incompleta. O “bolsonarismo” enquanto fenômeno político que culminou na vitória eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018 deve ser entendido também como um amálgama. Alinho-me aqui ao argumento apresentado pelo historiador Odilon Caldeira Neto, para quem a vitória de Bolsonaro simbolizou o aglutinamento de “uma série de grupos tradicionais da extrema direita brasileira”. Para o autor, o “bolsonarismo” se insere na tradição desses movimentos históricos da extrema direita, a exemplo do integralismo.

Todavia, é possível ainda ir além. Ao tomarmos como referência o governo Bolsonaro, o amálgama é ainda mais amplo. Se é certo que o “bolsonarismo”, em si, se insere na tradição da extrema direita brasileira, como argumenta Caldeira Neto, é certo também que o governo Bolsonaro não se restringe a tais grupos – e não se viabilizaria, é seguro afirmar, apenas a partir deste eixo de sustentação.

Tem-se, portanto, grupos de direita e extrema direita que encontraram no agora ocupante da Presidência o eixo de galvanização de seus interesses, numa lógica de desenvolvimento predatória e com uma concepção de país altamente excludente e desigual. Todos, enfim, com poder de agência que por vezes supera a própria figura de Jair Bolsonaro e seu ciclo de apoiadores mais próximos.

É a partir deste viés que é possível dar algum sentido ao caldeirão ideológico e de interesses que gravitam em torno do Planalto. De ultraliberais como Paulo Guedes, a setores do agronegócio mais reacionário e predatório, passando por rentistas e evangélicos, não são poucos os grupos que encontraram nesse governo uma oportunidade de impor sua agenda – ou ao menos lutar para tal. Dentre esses grupos, um chama atenção pelo peso que mostrou no governo, inclusive ao se sobrepor a outros setores considerados estruturantes do “bolsonarismo” – como é o caso dos chamados olavistas. Trata-se, aqui, dos militares egressos das forças armadas.

A atenção recente que tem recebido a presença de militares na política não pode nos fazer esquecer do descaso de pouco tempo atrás. A leniência do sistema político e dos meios de comunicação com esse grupo específico permitiu que, ao longo dos anos, a anistia de outrora se perpetuasse como permissividade, dando espaço e por vezes legitimando o intervencionismo histórico dos militares brasileiros. Nesse sentido, é fundamental destacar que o alinhamento de militares a Bolsonaro não se dá por cooptação ou tampouco por mera perspectiva de ganhos corporativos. Há, aqui, uma relação complexa que se estrutura também num relevante alinhamento ideológico entre militares e os chamados “bolsonaristas”.

Ao longo desse texto propôs-se uma compreensão do fenômeno que convencionou-se chamar “bolsonarismo” a partir de dois aspectos: de um lado, sua inserção num ecossistema mais amplo da extrema direita global, como um elo; de outro, seu caráter de amálgama, não apenas de movimentos de extrema direita, mas também de uma série de interesses difusos à direita do espectro político.

Assim, e novamente em concordância com Caldeira Neto, nos parece cada vez mais importante olhar para as causas sistêmicas do que representa o bolsonarismo, em seus laços internacionais, mas principalmente nas bases históricas em que se sustenta. E é nesse sentido que faço aqui uma última consideração.

Para além de elo e amálgama, o “bolsonarismo” carrega consigo outro traço fundamental para sua compreensão. Seu surgimento na política nacional reflete aspectos muito arraigados na formação do Brasil enquanto país. Do passado escravista ao racismo presente, passando pela ditadura anistiada e por uma sociedade estruturada no machismo e na desigualdade de classes. O “bolsonarismo” surge, enfim, na esteira das violências estruturais constitutivas da sociedade brasileira e cuja superação, como argumentado por Rodrigues e Mathias, é essencial.

[1] Para uma discussão acerca das nuances do liberalismo enquanto ideologia ver ROCHA, Camila. Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil. São Paulo: Todavia, 2021. Adotamos aqui, conforme a autora, o termo “ultraliberal” para indicar a radicalidade desta corrente específica do liberalismo econômico.

 

*Jorge M. Oliveira Rodrigues é pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança (GEDES). Doutorando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP).

 

Imagem: Manifestação “Todos com Bolsonaro”, 2018. Por Editorial J/Flickr.

 

 Ação e intervenção militar contemporânea

Mariana da Gama Janot*

 

O intervencionismo militar no Brasil é de longa data. No entanto, é a partir da década de 1930 via Góes Monteiro e, principalmente, após a criação da Escola Superior de Guerra, que o mesmo se transforma em uma doutrina de ação política das Forças Armadas com o objetivo de garantir a Segurança Nacional. Em linhas gerais, a Doutrina de Segurança Nacional pode ser descrita como uma ideologia norteadora das elites políticas, econômicas e militares rumo à conservação e promoção da ordem e de um dado tipo de progresso, partindo de interpretações conservadoras e autoritárias sobre a formação sociológica nacional. A Doutrina, expressando o pensamento militar, dimensiona a população brasileira como uma massa desgarrada, carente de condução forte rumo à coesão política e ao patriotismo, ao amadurecimento dos valores sócio-culturais, ao crescimento econômico, industrial e tecnológico, que, em linhas gerais, se traduzem na associação de prover segurança e desenvolvimento, ou, progresso e aprimoramento da nação de maneira controlada

Recentemente, a presença castrense maciça na administração pública e a publicização de seus projetos políticos para o futuro evidenciaram que esta ideologia permanece arraigada no estrato político-militar. O fato de as Forças Armadas terem controlado a transição, investido na sua versão sobre o Golpe de 1964 e sobre a Ditadura, e terem conservado grande parte de sua autonomia, inclusive para manter sua própria educação alheia à autoridade civil, são alguns dos motivos para esta preservação. Além desta conservação dentro da caserna e em seus círculos, é possível observar que o ímpeto militar de intervir sobre a população se manifesta, se reoxigena e reorganiza nas missões domésticas, que são a principal forma pela qual as Forças Armadas exercitam sua profissão de administrar e aplicar a violência estatal. 

Na região sul-americana, muito se debate sobre a necessidade e efetividade dessas missões para lidar com as questões complexas de segurança que se apresentam para as populações, como a violência urbana, crimes ambientais, crime organizado e narcotráfico, e quais seus ônus e bônus para as organizações militares. Parte da literatura concorda que o engajamento nessas missões é uma forma de responder pragmaticamente às demandas globais e locais de segurança, restando ajustá-lo com as expectativas e normas de um regime democrático, negociando seus limites e extensões junto às Forças Armadas. Em contrapartida, pesquisadores apontam que este engajamento pode ser extremamente nocivo às democracias, pois conserva o histórico interventor, mantendo uma compreensão militar de que as ameaças estão mormente localizadas no âmbito doméstico, e reforçando o militarismo na região. 

Concordando com estes últimos alertas, é preciso chamar a atenção para as muitas formas de engajamento militar doméstico no Brasil. Ancoradas no artigo 142, as Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) são as mais conhecidas entradas de acionamento militar para lidar com assuntos internos, e podem abarcar as mais diversas atividades, desde a segurança de determinadas estruturas físicas até cobrir a segurança pública durante paralisação de Polícias Militares, realizar a segurança durante eleições e atuar em conflitos no campo. Ainda, algumas operações de GLO voltadas para coibir a violência urbana se transformaram em operações de Pacificação, como as Operações Arcanjo (2010-2012) e São Francisco (2014-2015), realizadas durante o programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro, no contexto de combate ao crime organizado e guerra às drogas, bem como em operações de estabilização sob a égide das Nações Unidas, como no Haiti, República Centro-Africana e República Democrática do Congo. As GLOs também se desdobraram na condução da segurança durante grandes eventos internacionais, como a Copa do Mundo (2014) e os Jogos Olímpicos (2016)

Uma diferença importante nesse escalonar das GLOs está no alcance de suas atividades: enquanto uma operação de GLO para cobrir o pleito eleitoral é pontual e bem definida temporalmente, e as Forças Armadas estão essencialmente cumprindo atividades de patrulha e policiamento das ruas, GLOs que se transformam em Pacificação e as Operações para os Grandes Eventos são mais extensas. Apesar de também envolverem os militares em ações policiais, o principal elemento nestas operações é posicionar as Forças Armadas em centros administrativos, onde ocupam espaços privilegiados no planejamento estratégico das operações, enquanto coordenam atividades com outras agências – outras forças policiais e órgãos civis, governamentais e não-governamentais, incluindo empresas e organizações privadas, e realizam mais atividades junto à população, como programas de comunicação, educação e assistência. 

Em 2018, este posicionamento é elevado com o deflagrar da Intervenção Federal no Rio de Janeiro, na qual toda a administração da segurança pública do Estado ficou sob comando do Gabinete da Intervenção e seus oficiais – dentre os quais o Interventor, General Braga Netto (PL), que posteriormente se tornou Ministro-Chefe da Casa Civil, Ministro da Defesa, e candidato à vice-presidência junto a Jair Bolsonaro (PL) – a fim de promover uma reforma interna nos órgãos de segurança do estado e deixar um legado estratégico. No mesmo período, essa ação gestora também se manifestou na Operação Acolhida, em Roraima, marcada como uma operação de logística para gerir a crise migratória na fronteira com a Venezuela. Nessas operações, vigora uma compreensão de que a gestão militar, devido à expertise logística da organização, é mais bem-preparada para lidar com situações críticas e urgentes, como a segurança pública ou de fronteira. No caso da Intervenção Federal, esse posicionamento é bem explícito, na medida em que o próprio Gabinete declara que a Intervenção foi capaz de prover um legado estratégico para a gestão do Rio de Janeiro pois, ao contrário de administrações passadas, foi conduzida por profissionais verdadeiramente compromissados. Na prática, houve um conjunto de materiais – veículos, armas, drones, uniformes, computadores e outros equipamentos tecnológicos – entregues aos órgãos de segurança pública, e cursos realizados para capacitar os agentes policiais em uma série de atividades, bem como mudanças internas nas agências. Isto não se traduziu em melhorias no serviço de segurança, nem durante e logo após a Intervenção, tampouco no longo prazo, pelo contrário: houve um aumento exponencial da violência, sobretudo das mortes por agentes policiais, além de inúmeros casos de abusos contra a população e desvio de verba

Há, ainda,  outras formas de acionar as Forças Armadas domesticamente, em contextos que não envolvem o combate ou o uso mais robusto da força que, entretanto, também podem contribuir para um intervencionismo militar. Trata-se das Ações Cívico-Sociais (ACISOs), atividades realizadas cotidianamente pelos militares no Brasil e, também, em outros países quando engajados em operações das Nações Unidas, em áreas consideradas instáveis ou, de alguma forma, não-assistidas pelo serviço público. Estas ações costumam envolver algum tipo de entrega de serviço, como assistência médica ou sanitária, campanhas sócio-educativas, entre outros que, segundo o Exército brasileiro, contribuem para melhorar as relações entre governo, Forças Armadas e população, promovendo espírito cívico e dissuadindo comportamentos considerados contrários aos interesses das autoridades civis ou militares. Fica a cargo de cada Força deflagrar ACISOs e coordená-las com outros órgãos, o que dificulta a supervisão e controle civil sobre as mesmas, seja como ações pontuais ou mesmo dentro de operações, como as GLOs e Pacificações, e também ao longo da Intervenção Federal

Apesar de cumprirem objetivos diferentes, essas modalidades de ação militar doméstica parecem compartilhar de um denominador comum: a organização militar intervém sobre diferentes dimensões domésticas, incluindo a vida rotineira da população, na posição de administrar situações consideradas críticas e, portanto, ameaçadoras – ou potencialmente ameaçadoras – da ordem e estabilidade. É verdade que a construção de ameaças à segurança – como o crime organizado e narcotráfico, migrações, entre outros – envolve muitas dimensões e agentes, porém as Forças Armadas – e demais forças de segurança, de modo geral – ocupam uma posição central na condução desses processos porque estão diretamente envolvidas na organização e emprego da violência estatal. Afinal, faz parte do exercício da profissão militar procurar por potenciais riscos à segurança do Estado, e pensar meios para lidar com as situações elencadas. 

Entretanto, em democracias, não faz parte da competência militar procurar por estes riscos em meio à população, elencar segmentos sociais como espaços de dissenso que precisam ser civilizados, tampouco definir onde, como e quando empregarão a força contra as pessoas, ou exercer autoridade sobre outras agências civis e policias dentro de um regime democrático. Hoje, é possível recapitular diversos eventos nas duas últimas décadas que contribuíram para o atual quadro de militarização no país, e é essencial que se considere as missões domésticas neste levantamento como parte de um processo complexo de acúmulo de experiências de intervenção. 

 

* Mariana da Gama Janot é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP). Bacharel em Relações Internacionais e Mestre em Estudos Estratégicos pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Imagem:  Forças Armadas fazem operação conjunta com as polícias Civil e Militar em comunidades na zona oeste da cidade. Os militares estão apoiando ações nas comunidades de Vila Kennedy, Vila Aliança e Coreia (Tânia Rêgo/Agência Brasil).