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Dossiê ERIS: 60 Anos do Golpe Militar no Brasil

Nesta edição do Dossiê ERIS, intitulado “60 Anos do Golpe Militar no Brasil: Novas Perspectivas, Antigos Desafios” a participação de doutorandos, pós-doutorandos e docentes contribuiu para a compilação de textos publicados em nosso sítio eletrônico em 2024. Contando também com dicas de leitura, o dossiê se debruça sobre o período da ditadura militar e seus reflexos na  com o objetivo de fornecer ainda mais subsídio às/aos leitoras/es interessadas/os na temática.

Conteúdos:

  • 1964-2024: Da Reiteração à Superação do Atraso | Eduardo Mei, Héctor Luis Saint-Pierre e Samuel Alves Soares
  • Não Existe Democracia Sem Memória e Verdade | Nilmário Miranda
  • 1964 – O Ano que não Pode Ser Repetido | Frei Betto
  • Carlos Marighella: A Resistência Armada contra a Ditadura Militar Brasileira| Bárbara Campos Diniz
  • As Universidades e a Repressão da Ditadura Civil-Militar (1964-1985): A Cassação de 45 Docentes pela UFRJ | Lucas Barroso Rego
  • Anistia Migratória de 1981: Instrumento de Controle ou Ameaça à Segurança Nacional na Ditadura Militar?  | Guilherme Borges da Silva
  • Os 60 anos do golpe civil-militar no Brasil: ecos da grande imprensa | Camila Macedo Ruiz, Damaris de Jesus Santos, Danilo de Castro Papetti, Flora Peterle de Andrade e Iaritsa Jade Lima Freitas
  • “Pela memória do coronel Ustra”: A exaltação da ditadura militar por Jair Bolsonaro  | Guilherme Theodoro Gusson
  • Fronteiras que nos herman, limites que nos separam: O Rio Grande do Sul enquanto um espaço crítico à segurança nacional | Darlise Gonçalves de Gonçalves
  • Entrevista com Maria Cecília de Oliveira Adão | Ana Penido
  • Resenha A Casa da Vovó: Uma Biografia do Centro de Tortura da Ditadura de Marcelo Godoy | Bárbara Campos Diniz
  • Resenha Batismo de Sangue de Frei Betto | Bárbara Campos Diniz
  • Resenha Guerrilheiras: Memórias da Ditadura e Militância Feminina de Juliana Marques do Nascimento | Bárbara Campos Diniz
  • Indicações de Literatura e Audiovisual | Equipe ERIS

Em tempo, ressaltamos que todos os artigos publicados no ERIS expressam unicamente a opinião de seus autores. Eles não representam, necessariamente, a opinião dos editores ou da equipe do ERIS, do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES), ou das instituições associadas ao GEDES.

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Dia Internacional da Luta Contra a LGBTfobia: a violência sobre os corpos no Brasil e a contribuição das abordagens queer

Kimberly Alves Digolin*

Júlio Fernandes dos Reis**

 

O Dia Internacional da Luta Contra a LGBTfobia é celebrado em 17 de maio. A data foi escolhida em alusão ao dia em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou oficialmente a homossexualidade de sua lista internacional de transtornos mentais, no ano de 1990, o que possibilitou um grande avanço na luta pelos direitos civis dessa população. Segundo relatório de 2019 da ILGA World (International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association), cerca de 74% da população mundial vivia sob legislações que criminalizavam as práticas homossexuais em 1969; número que caiu para 27% em 2018. No entanto, não considerar mais a homossexualidade como uma doença foi apenas um passo inicial para garantir mais igualdade e dignidade para todos aqueles que se identificam com a comunidade LGBTQIA+. Nesse texto, abordaremos brevemente a forma como o Regime Internacional dos Direitos Humanos incluiu o combate à LGBTfobia, o lugar que o Brasil ocupa nesse cenário, bem como a contribuição das abordagens queer para compreender a segurança internacional e as raízes da violência sobre esses corpos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada durante Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) no ano de 1948, inicia-se com a frase “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. No entanto, décadas de sistemáticas discriminações motivadas por orientação sexual ou identidade de gênero deixaram à mostra a necessidade que o debate coletivo incluísse de modo mais específico os direitos das pessoas LGBTQIA+. Houve uma tentativa, embora fracassada, de incorporar os “Princípios de Yogyakarta” – documento elaborado por especialistas de 25 países e que reconhece a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero como violação aos direitos humanos – ao direito internacional em 2007. Mas a primeira resolução da ONU sobre direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero foi adotada apenas em junho de 2011, no âmbito do Conselho de Direitos Humanos[1], após diversos debates sobre leis discriminatórias, práticas em nível nacional e sobre as obrigações dos Estados em relação à proteção dos direitos da comunidade LGBTQIA+.

Em seguida, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) elaborou um relatório evidenciando “um padrão de violência sistemática e de discriminação dirigida às pessoas em todas as regiões em razão da sua orientação sexual e identidade de gênero – desde discriminação no emprego, na assistência médica e educação, à criminalização e ataques físicos seletivos” (ACNUDH, 2012). A partir desse relatório foi convocado um painel de discussão em março de 2012, quando, pela primeira vez, representantes de diversos Estados se reuniram na ONU para debater formalmente o assunto. No ano seguinte, a ONU lançou a campanha “Livres & Iguais” com o objetivo de promover direitos iguais e tratamento justo para pessoas LGBTQIA+ de todo o mundo, a partir da disponibilização de informação pública e do apoio de celebridades, líderes políticos e religiosos.

Em suma, o direito internacional[2] aponta que os Estados devem cumprir cinco medidas práticas para salvaguardar os direitos das pessoas LGBTQIA+: proteger as pessoas da LGBTfobia; prevenir a tortura e o tratamento cruel, desumano e degradante contra pessoas dessa comunidade; revogar as leis que criminalizam pessoas a partir de suas orientações sexuais ou identidades de gênero; proibir a discriminação a essas pessoas; e proteger as liberdades de expressão, associação e reunião pacífica das pessoas que se identificam como LGBTQIA+. Entretanto, apesar de serem frutos de debates coletivos importantes, essas determinações seguem sendo descumpridas. O mapa abaixo destaca em vermelho os países em que a homossexualidade ainda é criminalizada.

No caso do Brasil, o país possui um Movimento LGBTQIA+ bastante forte e atuante desde 1978. O grupo Somos – Grupo de Afirmação Homossexual e o GGB (Grupo Gay da Bahia) são exemplos de organizações de resistência e luta pela preservação e garantia dos direitos dessa parcela da população. A luta dessas e outras associações produziu efeitos na legislação nacional que, já em 1985 – cinco anos antes da OMS –, conseguiu que a homossexualidade não fosse mais considerada uma doença pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps).

Ademais, o Movimento também conquistou o estabelecimento de políticas públicas focadas no auxílio desse contingente populacional, que sempre esteve em situação de vulnerabilidade, como os Programas Nacionais de Direitos Humanos de 1996, 2002 e 2010. Nessa linha do tempo de conquistas, o casamento civil entre casais do mesmo sexo foi legalizado em 2013; o direito das pessoas de alterarem seu gênero e nome civil nos cartórios, agora sem a obrigatoriedade do indivíduo já ter passado por uma cirurgia de redesignação de sexo, foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2018; e, por fim, em 2019, o STF também concedeu a possibilidade dos crimes de LGBTfobia serem enquadrados na lei do racismo, enquanto uma legislação específica para esse tipo de discriminação não é elaborada.

Porém, apesar de tantos avanços em favor do Movimento LGBTQIA+ no Brasil, o Estado ainda figura como aquele que mais mata os indivíduos dessa população entre os países nos quais a homossexualidade não é criminalizada. Os dados do GGB mostram que, em 2021, foram registrados 300 casos de mortes de pessoas dessa comunidade, o que significa a ocorrência de uma morte a cada 29 horas no país. Esses dados são um reflexo do preconceito estrutural na sociedade nacional, que ainda discrimina e marginaliza esses indivíduos, principalmente a parcela transsexual, que registrou 80 assassinatos no primeiro semestre de 2021.

Embora o grau de violência seja inegável, vale destacar que a posição ocupada pelo Brasil nesse ranking também pode estar associada ao fato de existirem dados divulgados sobre a violência contra a população LGBTQIA+ no país, especialmente coletados por ONGs ou organizações da sociedade civil. Ou seja, é possível que outros países, ainda que não possuam uma legislação específica que caracterize a homossexualidade como prática ilegal, possuam taxas maiores que as brasileiras e apenas não existam dados suficientemente divulgados.

A partir disso, é possível notar que, além de motivações étnicas e de nacionalidade, a violência também envolve os corpos, as orientações sexuais e identidades de gênero. Durante séculos a comunidade LGBTQIA+ foi pejorativamente denominado como queer – termo que remete à Queer Street, que no século XVI abrigava aquelas pessoas entendidas como “a escória britânica”. No entanto, mais recentemente houve um processo ativo para ressignificar o termo queer; distanciando-o da ideia pejorativa de retratar “os estranhos” e aproximando-o da concepção crítica de “estranhamento”, de problematização dos padrões binários e preconceituosos que embasam as discriminações.

As abordagens queer sobre política internacional, e mais especificamente sobre segurança internacional, nos ajudam a compreender a forma como as questões de gênero, sexualidade, raça, nacionalidade e classe são elementos centrais para o processo de formação do Estado e do próprio aparato militar-burocrático, uma vez que são estruturas moldadas a partir da percepção de masculinidade. Em outras palavras, nos ajudam a compreender a forma como a heterossexualidade branca traz consigo valores e práticas que não apenas estão incluídas, mas que estruturaram a segurança internacional; e, portanto, a própria noção de segurança e inimigo.

A partir dessas abordagens queer podemos analisar as contradições históricas e a forma como esses padrões político-econômicos estão baseados no discurso binário de um modelo a ser seguido e de um contraponto abjeto a ser perseguido ou exterminado. O Dia Internacional da Luta contra a LGBTfobia é um marco para lembrarmos a importância de se analisar as raízes desiguais do sistema internacional e a forma como elas buscam legitimar as violências contra corpos que representam luta e resistência.

 

* Professora de Relações Internacionais na Universidade Paulista (UNIP), mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, Puc-SP) e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Iaras-GEDES. Contato: kimberly.alves.digolin@gmail.com

** Graduando de Relações Internacionais na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e integrante do Núcleo de Estudos de Gênero Iaras-GEDES. Contato: julio.reis@unesp.com

Imagem em destaque: Pride 2018. Por: Miguel Discart/Flickr.

Imagem no corpo do texto: Mapa sobre criminalização de relações entre pessoas do mesmo sexo. Por: Nações Unidas.

[1] O Conselho de Direitos Humanos da ONU foi criado em 2006 e, até aquele momento, os debates sobre direitos LGBTQIA+ eram tratados apenas de modo específico, em casos pontuais. Além disso, os principais atores políticos a chamarem atenção para o tema no âmbito da ONU ainda eram as organizações não-governamentais dedicadas à prevenção e tratamento do HIV-AIDS.

[2] Para mais informações sobre os direitos das pessoas LGBTQIA+ na ONU, recomendamos o artigo de Renata Nagamine (2019).

Dia Internacional da Mulher: vozes em movimento pela proteção dos direitos sexuais e reprodutivos na América Latina

Laís Gomes Sartori*

Maria Eduarda Kobayashi Rossi **

No dia 08 de março é celebrado o Dia Internacional da Mulher. A criação desta data foi oficializada em 1975, pela Organização das Nações Unidas (ONU), e as explicações acerca de sua origem comumente afirmam que se trata de uma homenagem às 129 mulheres operárias que, no ano de 1857, foram mortas em um incêndio criminoso em uma fábrica têxtil localizada na cidade de Nova Iorque. Para além desta história, é importante ressaltar a origem desta data em lutas anteriores, notadamente àquelas lideradas por feministas socialistas como a alemã Clara Zetkin (1857-1933) e a russa Alexandra Kollontai (1872-1952), cujas ações contestavam o funcionamento do capitalismo industrial emergente, bem como o preconceito cotidiano enfrentado por mulheres tanto nos locais de trabalho, quanto no ambiente doméstico.

Os corpos queimados em Nova Iorque contam a história de uma enorme quantidade de vidas que trabalhavam de forma precária para sustentar um sistema capitalista que, por sua vez, precisa da destruição da vida humana, bem como da natureza, para sobreviver e se fortalecer (ALLIEZ; LAZZARATO, 2021; FEDERICI, 2019). Em reação, a conscientização das mulheres incita à luta por mudanças não apenas nas suas formas de trabalho, como também na forma de organização social. Surgem os movimentos organizados em prol do sufrágio universal, da igualdade salarial, e de diversas outras pautas, como os direitos sexuais e reprodutivos[1].

Para além de um dia de homenagem às mulheres e de reflexão acerca de suas lutas por direitos e oportunidades sociais, esta data encoraja inúmeras mobilizações feministas.  Muitas vezes essas mobilizações estão alinhadas à luta antirracista, à busca pelo fortalecimento democrático com mais representatividade na política, bem como aos esforços para a preservação do meio ambiente e  para o desenvolvimento sustentável – como ressaltado pela ONU na campanha do 8M de 2022. Além disso, algumas pautas históricas continuam presentes, como a busca contínua por maior equidade de gênero e pela garantia e proteção de direitos . Este texto traz um panorama do contexto e das lutas recentes na América Latina, ressaltando o tema dos direitos sexuais e reprodutivos.

 

Direitos reprodutivos como direitos humanos

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), ocorrem cerca de 73 milhões de abortos induzidos no mundo a cada ano, muitos deles realizados por mulheres e meninas que sofreram violações sexuais. Os procedimentos clandestinos para a realização do aborto podem causar sérios riscos à saúde das gestantes, levando a diversas mortes que, muitas vezes, são subnotificadas e impedem a efetivação de ações pela salvaguarda da saúde e bem-estar de tantas vidas. Um exemplo disso ocorre no Brasil. De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto realizada em 2016, “cerca de metade das mulheres que abortam precisam ser internadas” (DINIZ et al, 2016). Dados mais recentes afirmam que no ano de 2019, o SUS contabilizou aproximadamente 195 mil internações por aborto, sejam eles espontâneos ou consentidos.

Vale mencionar que os temas como aborto e saúde sexual das mulheres são, em muitos países, negligenciados. Violências como o estupro e o feminicídio são apenas a ponta de um iceberg de uma cultura patriarcal que esconde diversas violações estruturais e culturais, como assédios e preconceitos que, consequentemente, privam as mulheres do controle de seus corpos. Para lutar contra isso, as primeiras movimentações para a garantia dos direitos das mulheres ocuparam espaço nos sistemas internacional e nacional, principalmente, a partir da década de 1990.

A associação dos direitos reprodutivos aos direitos humanos é fruto da era contemporânea e das diversas frentes de lutas feministas ao redor do globo, que passaram a discutir a sexualidade e a reprodução humana de maneira ampla, contestando os padrões socioculturais vigentes na época. A Conferência Mundial de Direitos Humanos, de 1993, declarou, pela primeira vez, que os direitos das mulheres e meninas eram inalienáveis e compreendiam parte integral e indivisível dos direitos humanos universais. Essa discussão foi o pontapé inicial para que as reflexões acerca do direito reprodutivo tomassem forma e ganhassem espaço em meio ao discurso internacional. Posteriormente, durante a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD), em 1994, que se conceituou o termo “direito reprodutivo”[2] como conhecemos hoje.

Em relação ao cenário americano, é possível observar o posicionamento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), composto por dois órgãos, a Comissão e a Corte. O primeiro é responsável por assegurar e observar o cumprimento dos direitos humanos no continente americano realizando recomendações aos Estados, por exemplo. Já o segundo é um órgão judicial autônomo que visa salvaguardar as exigências da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e julgar possíveis violações. Em alguns relatórios temáticos[3], a CIDH destacou a importância do direito à saúde reprodutiva às mulheres, principalmente aquelas em situação de vulnerabilidade social, reconhecendo que o aborto inseguro viola esse direito, a integridade e a privacidade femininas. Além disso, a Comissão também ressaltou que a criminalização do aborto afeta negativamente diversas esferas da realidade dos corpos que têm a capacidade de gestar, sendo obrigação dos Estados prezarem por serviços de assistência eficientes em casos de abortos inseguros. A Corte IDH já admitiu casos envolvendo a questão do aborto, o último ficou conhecido como o Caso Manuela e familiares vs. El Salvador. Em dezembro de 2021[4], o Estado salvadorenho foi condenado internacionalmente pela criminalização de uma jovem que buscava assistência de saúde em meio a uma emergência obstétrica – a jovem havia sofrido um aborto espontâneo, porém a médica que atendeu Manuela denunciou-a por ter abortado voluntariamente, o que gerou uma condenação da 30 anos de prisão por homicídio qualificado.

É importante ressaltar, ainda, que o debate e o reconhecimento desses direitos em plataformas e conferências não significa, necessariamente, que eles serão aplicados na prática, em políticas públicas, leis ou ações governamentais. O percurso para a conquista dessas questões é longo e desafiador, e inúmeras mulheres sofrem diariamente devido à negligência de órgãos nacionais e internacionais, principalmente quando o assunto envolve o aborto e a autonomia do corpo feminino.

Certamente, há inúmeros casos como o de Manuela, alguns foram julgados em cortes internacionais, já outros, a maioria, são silenciados e provocam diariamente violações aos direitos reprodutivos femininos, destruindo a realidade de milhares de mulheres ao redor do mundo. Assim, ainda que as comissões internacionais auxiliem na ampliação de um ativismo em prol da garantia dos direitos das mulheres, a América Latina continua sendo uma região com altos índices de abusos e violações (SEGATO, 2016; CEPAL, 2021). Diante deste cenário, os movimentos sociais e feministas continuam vivos e em transformação, (re)inventando-se e fortalecendo-se pela arte[5], e pela (re)ocupação das ruas, pressionando por políticas públicas que promovam justiça social.

 

Mudanças recentes e mobilizações em 2022

Neste ano, diversas ações pelo Dia Internacional da Mulher (8M) ocorrem na América Latina. No Brasil, muitas ativistas lutam contra a violência sexista, fome, desemprego, fragilidade democrática e insatisfação política, com destaque para os movimentos liderados pela Marcha Mundial das Mulheres. No México, as movimentações coletivas buscam por ações concretas em favor dos direitos das mulheres e o fim da repressão dos movimentos feministas no país. Na Argentina, que alcançou a legalização do aborto no final de 2020, as mobilizações já começaram em 2 de março, em protestos contra o abuso grupal de uma jovem em um carro. As atividades foram lideradas pelo coletivo feminista Ni una a menos.

Em outros países da região, os avanços são mais lentos e custosos como, por exemplo, no Chile, onde o aborto era proibido em qualquer circunstância até meados de 2017. Após essa data, foi permitido apenas em casos de estupro, risco de vida da mulher e má formação do feto. Em 2021 houve iniciativas para a descriminalização do aborto na Câmara dos Deputados chilena, no entanto, o processo foi arquivado no fim do ano. Para o 8 de março de 2022, em meio a um duro processo constitucional, os movimentos feministas chilenos estão nas ruas com o objetivo de conter a ascensão da extrema direita no país.

De modo semelhante, no Equador, a situação enfrentada pelas feministas é desafiadora: apenas em janeiro deste ano a Assembleia Nacional descriminalizou o aborto em casos de estupro. Esse avanço, entretanto, ainda pode ser vetado pelo presidente do país. Assim, as ações das mulheres equatorianas para o 8 de março estão centralizadas, principalmente, na luta por uma lei mais abrangente e justa para a descriminalização do aborto.

É da Colômbia que vem os ventos mais recentes de mudança. No país, o aborto até a 24ª semana de gestação foi descriminalizado em 21 de fevereiro de 2022 e, ademais, foi reafirmada uma lei de 2006 que permitia o aborto legal em casos de estupro, riscos à saúde da gestante ou má formação fetal. O processo analisado na Corte Constitucional Colombiana contou com 5 votos favoráveis e 4 contrários. Além disso, as atividades foram protagonizadas pelos movimentos feministas, que clamaram por políticas públicas capazes de auxiliar a saúde das mulheres, oferecendo métodos contraceptivos, atendimentos médicos, acesso à informação e aos serviços de aborto seguro, bem como à educação sexual.  As ações feministas na América Latina pretendem juntar forças para atuar ativamente em tempos tão turbulentos, em que as destruições causadas pela pandemia, bem como ao aumento das violações, instabilidades políticas e a contrarresposta conservadora ameaçam diariamente a vida das meninas e mulheres latino-americanas.

 

* Laís Gomes Sartori é graduanda em Relações Internacionais pela UNESP, bolsista FAPESP. Pesquisadora do GEDES.

** Maria Eduarda Kobayashi Rossi é graduanda em Relações Internacionais pela UNESP, bolsista FAPESP. Pesquisadora do GEDES.

Imagem: Ativistas participam de marcha contra a violência de gênero no Equador. UN Women/Johis Alarcon.

 

Notas:

[1]De acordo com o Instituto Nacional da Saúde da Mulher, o direito reprodutivo faz referência ao direito das pessoas escolherem livremente “se querem ou não ter filhos, quantos filhos vão ter e em que momento da vida”. As políticas para a promoção deste direito também devem garantir informações sobre os métodos contraceptivos, educação sexual e planejamento familiar. Já os direitos sexuais, referem-se ao “Direito de viver e expressar livremente a sexualidade sem violência, discriminações e imposições e com respeito pleno pelo corpo do(a) parceiro(a)” bem como “direito ao sexo seguro para prevenção da gravidez indesejada e de DST/HIV/AIDS. Direito a serviços de saúde que garantam privacidade, sigilo e atendimento de qualidade e sem discriminação”. Para mais informações, acesse: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/direitos_sexuais_reprodutivos_metodos_anticoncepcionais.pdf.

[2]Os direitos reprodutivos “baseiam-se no reconhecimento do direito básico de todos os casais e indivíduos decidirem livre e responsavelmente sobre o número, espaçamento e quando devem ter os seus filhos e de terem acesso à informação sobre a forma como fazê-lo, bem como o direito de beneficiarem de saúde sexual e reprodutiva do mais alto nível. Também incluem o direito de todos tomarem decisões sobre a reprodução sem discriminação, coerção nem violência.” (CIPD, 1995)

[3]https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2015/10240.pdf

https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2011/7512.pdf

[4]El Salvador é um dos poucos países americanos que ainda penaliza o aborto em qualquer situação.

[5]É importante salientar, ainda que em nota complementar, que a arte (expressa por meio de cartazes, danças, teatros e muitas outras formas) é um elemento constante nos coletivos e ações feministas. Um exemplo disso é o movimento One Billion Rising, ativo não apenas na América Latina, como também em diversos países do globo.

 

Referências

ANIS – Instituto de Bioética. Aborto: por que precisamos descriminalizar? Argumentos apresentados ao Supremo Tribunal Federal na Audiência Pública da ADPF 442. Brasília. Letras Livres. 2019. Disponível em: <https://anis.org.br/wp-content/uploads/2020/07/RELATORIO-ABORTO-PT.pdf>. Acesso em 6 de março de 2022.

ALLIEZ, Éric; LAZZARATO, Maurizio. Guerras e Capital. Editora Ubu. 2021.

DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2017, v. 22, n. 2, pp. 653-660. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1413-81232017222.23812016>. ISSN 1678-4561. Acessado 5 Março 2022.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Editora Elefante. São Paulo. 2019.

SEGATO, Rita Laura. La guerra contra las mujeres. Traficantes de sueños, 2016.

Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher: Reflexões acerca das raízes da violência contra as mulheres e a questão do Estado (Parte II)

Gabriela Aparecida de Oliveira *

Maria Eduarda Kobayashi Rossi **

 

No artigo “Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher: avanços e retrocessos na América Latina e no Brasil sob a pandemia” oferecemos um panorama sobre os efeitos da criação do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher sobre as vidas de mulheres latino-americanas e brasileiras. Embora haja avanços significativos, principalmente no que se refere a uma maior visibilidade das desigualdades de gênero e ao estímulo a ações de prevenção e combate às violências contra mulheres e meninas, não podemos perder de vista o fato de que a América Latina continua a ser a região mais perigosa para elas fora de uma zona de guerra. E por que isso ocorre?

De acordo com autoras feministas como Rita Segato (2014, 2016), os corpos das mulheres são espaços onde as múltiplas violências foram naturalizadas desde a colonização. A cultura patriarcal tem disseminado ações de enorme crueldade, que se fazem presentes até hoje. Nas palavras de Segato: “O acesso sexual está contaminado pelo universo do dano e da crueldade — não apenas apropriação dos corpos, sua anexação enquanto territórios, mas sua destruição. Como os danos, conquista, roubo e estupro estão associados, eles permanecem, portanto, como ideias correlatas ao longo do período de instalação das repúblicas e até a atualidade[1]” (SEGATO, 2016, p. 21, tradução nossa).

No atual contexto de pandemia e ascensão de governos mais autoritários na região, a violência contra mulheres ganha requintes de crueldade. Desamparadas pelo Estado, elas sofrem uma sobrecarga com os serviços domésticos e de cuidado ⎼ aderindo a jornadas duplas ou triplas de trabalho, e ficando mais expostas à violência doméstica por passarem mais tempo em casa. Observa-se, portanto, uma forte relação entre a perpetuação da violência e exploração dos corpos feminilizados ⎼ principalmente de mulheres não brancas e periféricas, como ressaltado por Françoise Versés (2021) e, na realidade brasileira, por autoras como Sueli Carneiro (2011), Lélia Gonzalez (2020) ⎼ e a lógica capitalista de  histórica acumulação de capital.

Como ressaltado por Silvia Federici (2019), o trabalho não-remunerado ou “trabalho reprodutivo” refere-se a uma série de atividades relacionadas à educação, ao cuidado e à reprodução biológica, os quais são imprescindíveis para a reprodução da força de trabalho que mantém as engrenagens do capitalismo funcionando.

A lógica neoliberal também cria seu próprio discurso acerca do trabalho feminino, salientando que a solução para libertar-se da opressão está no abandono das tediosas tarefas domésticas e na inserção das mulheres no mercado de trabalho. Entretanto, estes discursos conhecidos como “feminismo liberal” escondem o fato de que a sua “libertação” só pode acontecer mediante a exploração da mão-de-obra feminina não-branca, e muitas vezes migrante, que passa a desempenhar essas tarefas indesejadas (HOOKS, 2020). Em contextos de crise socioeconômica e desamparo do Estado, as mulheres não-brancas são as mais afetadas, pois devem ocupar-se de atividades reprodutivas e de cuidado que, em outros momentos, poderiam ser desempenhadas pelo próprio Estado por meio de políticas públicas. Como exemplo, podemos citar as políticas públicas para a concessão de apoios financeiros, além do oferecimento e melhoria de serviços públicos de cuidado, como asilos para idosos, creches e escolas integrais para crianças (ILO, 2018). No que se refere às questões reprodutivas, as políticas oferecidas pelo Estado contam com a oferta de anticoncepcionais, capacitação dos profissionais de saúde para assistência em planejamento familiar, programas de saúde e prevenção nas escolas, bem como a garantia de uma boa saúde e atendimento (BRASIL, 2005).

Segundo a Oxfam Brasil (2020), durante a pandemia, o desemprego atingiu principalmente mulheres negras (babás, empregadas domésticas, motoristas, profissionais da saúde) que não tiveram a opção de ficar em casa e seguiram trabalhando sob condições insalubres e com alto risco de contaminação. Não à toa, a primeira vítima do coronavírus detectada no Brasil foi uma mulher negra de 57 anos e empregada doméstica. A ONU Mulheres (2021) observa que, na região Norte do Brasil, as mulheres indígenas foram as mais impactadas, pois “são elas que acessam políticas públicas, vão à cidade e se expõem ao cuidar de vários assuntos da família, tendo que sair das aldeias”.

No que se refere à maior exposição à violência durante a pandemia, os índices de agressões, estupros e feminicídios aumentaram no Brasil e ao redor do mundo. Em 2019, três em cada dez mulheres foram violentadas e 1.326 feminicídios foram registrados no país (um aumento de 7,1% em comparação aos índices de 2018), além de um estupro a cada oito minutos. Em 2020, o número de feminicídios teve um pequeno acréscimo, o que não significa que seja um cenário menos alarmante: foram 1.350 casos que correspondem a uma mulher morta a cada seis horas.

Além de o fator étnico-racial ter uma importante influência sobre esses índices (as mulheres negras e indígenas são as mais expostas à violência), destacamos também a questão das mulheres transexuais e travestis. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), aproximadamente 70% da população trans do país não conseguiu acesso às políticas emergenciais do Estado, por conta da sua situação de vulnerabilidade social que inclui a falta de documentos e acesso à moradia e serviços básicos de saúde e educação. Muitas mulheres trans continuaram se prostituindo para manter sua renda, ficando mais expostas ao vírus. O isolamento social tampouco evitou violências, pois é dentro de suas casas – que deveriam ser, a princípio, o lugar mais seguro – que muitas mulheres são agredidas e mortas. No caso das mulheres trans, houve um acréscimo de 43% de assassinatos no ano de início da pandemia. Essa situação evidencia como a vulnerabilidade socioeconômica de mulheres está profundamente relacionada à violência sofrida por elas.

 

Realidades latino-americanas e perspectivas futuras

Perante a ineficiência dos Estados latino-americanos em promover boas condições de vida para a sua população (sobretudo feminina, negra, indígena e LGBTQIA+) em um contexto de crise econômica e pandemia, movimentos feministas da Argentina, Brasil, Chile, Uruguai, Venezuela, Colômbia, Equador, Bolívia e México têm resistido e se organizado para cobrar ações dos governos, além de recorrer a redes de apoio comunitário. Na realidade, tratam-se de demandas históricas que se tornaram ainda mais urgentes, senão, inadiáveis.

Nas manifestações do Dia Internacional da Mulher (8 de Março de 2021), as argentinas pediam a visibilização e a elaboração de políticas públicas para diminuir a superexploração das mulheres; o direito a uma lei trabalhista para travestis e transexuais e uma reforma judicial feminista contra a violência. Em complemento, sob o lema “A pandemia não é desculpa”, as uruguaias tomaram as ruas, mostrando o protagonismo das mulheres na mitigação da pobreza na pandemia. As chamadas “ollas populares” (“panelas populares”), refeitórios populares coletivos, atenderam milhares de pessoas em situação de vulnerabilidade no país.

Também se destacam movimentações no Chile, onde mulheres percorreram as ruas de Santiago em um movimento pela construção coletiva de uma nova constituinte, buscando enterrar a constituição neoliberal, autoritária e excludente da ditadura de Augusto Pinochet. Uma das características da nova constituição seria a “criação de um governo feminista que combata a violência de gênero e garanta o direito de cada mulher decidir sobre o seu corpo”. Nos dias atuais, as perspectivas são positivas para o Chile, onde o segundo turno das eleições presidenciais, realizado no dia 19 de dezembro, foi disputado por José Antonio Kast, um candidato pinochetista e ultraliberal (o conhecido “Bolsonaro chileno”), e Gabriel Boric,  representante da esquerda política nacional, terminando com a vitória desse último. A presença da extrema direita no país aparenta ser uma reação conservadora (ou “backlash”) a uma constituição que, dentre outras coisas, pretende incorporar uma perspectiva de gênero e objetivos feministas que podem abalar as estruturas vigentes. A conquista da esquerda, porém, traz esperança para outras eleições presidenciais, como a que ocorrerá no Brasil em 2022.

Tanto no Chile, quanto no Brasil e outros lugares do mundo, presenciamos a precarização das vidas de milhões de mulheres que continuam resistindo dentro de um sistema patriarcal, machista, misógino, racista e que ainda cultiva uma série de preconceitos contra a população LGBTQIA. Portanto, o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra a Mulher nos suscita reflexões que vão além da conscientização da sociedade e operacionalização de medidas a curto prazo: nos faz questionar toda a dinâmica capitalista que tem o poder de decidir quais corpos são dignos de viver e quais são matáveis (MBEMBE, 2016; BUTLER, 2020), e vislumbrar alternativas dentro e fora do Estado.

 

* Mestranda em Paz, Defesa e Segurança Internacional pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e pesquisadora do IARAS – Núcleo de Estudos de Gênero do GEDES.

** Graduanda em Relações Internacionais pela UNESP, bolsista FAPESP (processo 2021/04480-3).

Imagem por: UN WOMEN.

 

[1] No original “El acceso sexual se ve contaminado por el universo del daño y la crueldad —no solo apropiación de los cuerpos, su anexión a territorios, sino su damnación —. Conquista, rapiña y violación como damnificación se asocian y así permanecen como ideas correlativas atra- vesando el periodo de la instalación de las repúblicas y hasta el presente” (SEGATO, 2016, p. 21).

 

Referências Bibliográficas

BIROLI, Flávia; VAGGIONE, Juan Marco; MACHADO, Maria das Dores Campos. Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina. Boitempo Editorial, 2020.

BUTLER, Judith. Corpos Que Importam: os limites discursivos do” sexo”. n-1 edições, 2020.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo Afrolatinoamericano. Zahar; 1ª edição. 2020.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva. Editora Elefante: Coletivo Sycorax, 2019. Disponível em: http://coletivosycorax.org/wp-content/uploads/2019/09/CALIBA_E_A_BRUXA_WEB-1.pdf

HOOKS, bell. Teoria feminista. Editora Perspectiva SA, 2020.

MBEMBE, Achille.  Necropolítica. In: Arte & Ensaios. Revista do PPGAV/EBA/UFRJ. n. 32. 2016.

SEGATO, Rita Laura. La guerra contra las mujeres. Traficantes de sueños, 2016.

SEGATO, Rita. Las nuevas formas de la guerra y el cuerpo de las mujeres. Revista Sociedade e Estado – Volume 29, Número 2,  Maio/Agosto 2014.

VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. Ubu Editora, 2020.

ZARAGOCIN, Sofía. La Geopolítica del Útero: hacia una geopolítica feminista decolonial en espacios de muerte lenta. IN: Cruz, D y Bayon, M. (Eds.), Cuerpos, territorios y feminismos. Quito: AbyaYala y Estudios Ecologistas del Tercer Mundo, 2018.

Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher: origens, avanços e retrocessos na América Latina e no Brasil sob a pandemia (Parte I)

Gabriela Aparecida de Oliveira *

Maria Eduarda Kobayashi Rossi **

 

O Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra a Mulher (25 de novembro) foi instituído em 17 de dezembro de 1999, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, e homenageia as irmãs Pátria, Minerva e Maria Teresa Mirabal. Elas foram assassinadas por seu ativismo contra a ditadura de Rafael Leónidas Trujillo (1930-1961), na República Dominicana. A criação da data pode ser vista como um reflexo dos esforços de movimentos feministas, os quais objetivam operacionalizar transformações sociais pelo fim da violência de gênero ⎼ que atinge não apenas mulheres e meninas, mas também homens, meninos e a população LGBTQIA +.

O contexto de sua criação foi marcado por uma série de avanços sobre as questões de gênero na agenda internacional. Destaca-se, em ordem cronológica: a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw, 1979), a Declaração sobre Eliminação da Violência Contra a Mulher (1994), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994), a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim (1995), bem como a elaboração da Resolução 1325/2000. Essa última originou a Agenda Mulheres, Paz e Segurança, ressaltando a necessidade da participação de mulheres nos espaços políticos, nos processos de resolução de conflitos e construção da paz.

Desde sua origem, a data objetiva mobilizar a consciência social crítica, estimulando a efetivação de projetos, políticas públicas e planos de ação nacionais para prevenir as violências contra as mulheres e meninas, bem como proporcionar a igualdade de gênero na política[1]. Incentiva-se, também, a realização de pesquisas e a difusão de dados sobre o tema em questão. Vale mencionar que, no âmbito da ONU, muitos projetos são financiados pelo Fundo internacional para a eliminação da violência contra as mulheres e pelo Fundo para a Igualdade de gênero, os quais foram criados, respectivamente, em 1996 e 2009.

No Brasil, desde 1997, tais órgãos contribuíram para o financiamento de diversos projetos como o “Iyà Àgbá – Rede de Mulheres Negras Contra a Violência”, realizado pela Fundação Criola em 2005, e o projeto “Juventude e Arte para qualquer parte: pelo fim da Violência contra as Mulheres” realizado pela Casa da Mulher Trabalhadora – CAMTRA, em 2017. Além disso, há cada vez mais iniciativas que buscam envolver os homens nas ações transformativas, incentivando a construção de masculinidades positivas. Nesse sentido, uma das instituições brasileiras que mais se destacou foi o Promundo, com os projetos “Engajando Homens para Acabar com a Violência Baseada em Gênero: um Estudo de Intervenção e Avaliação de Impacto em Vários Países” (2008) e “Envolvendo os jovens para acabar com a violência contra mulheres e meninas no Brasil e na República Democrática do Congo” (2016-2017).

No ano de 2021, em homenagem às pautas trazidas pelo dia 25 de novembro, a ONU Mulheres criou a campanha “Una-se pelo Fim da Violência contra as Mulheres”, realizada entre os dias 20 de novembro e 10 de dezembro. As ações buscaram reduzir as violências que se manifestam das formas: direta (agressão física), estrutural, psíquica, sexual (como o estupro, mutilação genital), obstétrica e política. Tais violações cresceram durante o período da pandemia de COVID 19, e merecem atenção nacional e internacional. De acordo com a ONU Mulheres (2021): “A pandemia exacerbou fatores de risco para a violência contra mulheres e meninas, incluindo desemprego e pobreza, e reforçou muitas das causas profundas, como estereótipos de gênero e normas sociais preconceituosas. Estima-se que 11 milhões de meninas podem não retornar à escola por causa da COVID-19, o que aumenta o risco de casamento infantil. Estima-se também que os efeitos econômicos prejudiquem mais de 47 milhões de mulheres e meninas vivendo em situação de pobreza extrema em 2021, revertendo décadas de progresso e perpetuando desigualdades estruturais que reforçam a violência contra as mulheres e meninas”.

Na América Latina, o alto índice de violências de gênero e feminicídios – que coloca a região como o lugar mais perigoso no mundo para as mulheres – também sofreu um acréscimo durante a pandemia (TRICONTINENTAL, 2020). Em um contexto de crise econômica e ascensão de governos de direita e extrema direita na região, as violências contra mulheres e outros grupos marginalizados aumentam em número e crueldade. Observa-se, na América Latina, uma alta instabilidade política e econômica, bem como um acirramento do conservadorismo religioso (principalmente neopentecostal) e do neoliberalismo. Nesse contexto, atores de distintos perfis ideológicos coincidem no desprezo aos direitos humanos e aos tratados internacionais assinados para a garantia de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Ainda que o período anterior, marcado por governos de esquerda e centro esquerda, não tenha, necessariamente, promovido um avanço desses direitos, hoje vemos o fortalecimento da atuação de grupos conservadores religiosos e seculares. Assim, além da retirada de direitos de mulheres e outros grupos vulnerabilizados, presenciamos, em muitos países, a transformação de movimentos sociais em inimigos políticos. Como consequência, temos a deslegitimação de suas pautas e atos violentos dirigidos a ativistas (BIROLI et. al., 2020).

No Brasil, o projeto “Elas no Congresso” do Instituto AzMina, divulgou um levantamento das ações do governo de Jair Bolsonaro, constatando que os discursos misóginos, machistas, racistas e LGBTQIA+fóbicos do presidente de extrema-direita têm sido, de fato, colocados em prática. Em uma análise profunda de decretos, portarias, medidas provisórias, cartilhas de campanhas governamentais, direcionamento orçamentário, execução orçamentária e propostas legislativas, o AzMina concluiu que o ataque aos direitos das mulheres tem caracterizado as ações do atual governo.

Dentre essas ações, destacamos a perda de status ministerial por parte da antiga Secretaria de Políticas para Mulheres, a criação do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (cujos discursos restringem a concepção de “família” à família patriarcal e heteronormativa, também conhecida como “família triangular”: composta por pai, mãe e filhos, na qual a mulher deve desempenhar papéis de gênero tradicionais como cuidar da casa e dos filhos), e a extinção do programa “Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência” (que foi substituído pelo programa “Proteção à vida, fortalecimento da família, promoção e defesa dos direitos humanos para todos”). Também se destaca a má gestão dos recursos que seriam destinados às políticas voltadas para a promoção de direitos e oportunidades sociais para mulheres. Dados mostram que o governo deixou de usar um terço dos recursos aprovados entre 2019 e o primeiro semestre de 2021, uma cifra de quase R$ 400 milhões que poderiam ter sido gastos no combate à violência de gênero, incentivo à autonomia e saúde feminina.

Ainda que o panorama das lutas feministas mostrem um avanço de suas conquistas e impactos sobre a sociedade, os dados recentes deixam evidente que muitas ações e políticas públicas devem ser feitas. Nesse sentido, é importante refletir sobre o papel do Estado na promoção da igualdade de gênero. Essa questão é assunto do artigo “Reflexões acerca das raízes da violência contra as mulheres e a questão do Estado” (clique aqui para ler!).

 

* Mestranda em Paz, Defesa e Segurança Internacional pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e pesquisadora do IARAS – Núcleo de Estudos de Gênero do GEDES.

** Graduanda em Relações Internacionais pela UNESP, bolsista FAPESP (processo 2021/04480-3).

Imagem por: UN WOMEN.

 

[1] Sobre este tema, é importante ressaltar  que a ONU Mulheres da América Latina e Caribe publicou, em 2020,  o documento “Rumo à paridade e à participação inclusiva na América Latina e no Caribe”, o qual foi elaborado em preparação para a 65º Comissão da ONU sobre a Situação da Mulher (CSW), trazendo avanços e desafios sobre a participação das mulheres em espaços públicos. Além disso, em 2020, a ONU esquematizou um mapa sobre a participação das mulheres na política, o qual pode ser consultado pelo link: <https://lac.unwomen.org/en/digiteca/publicaciones/2020/03/women-in-politics-map-2020>. Acesso em dezembro de 2021.

 

A relação entre direitos humanos e segurança humana

 

Giovanna Ayres Arantes de Paiva*

Kimberly Alves Digolin **

 

No último dia 10 de dezembro celebramos o Dia Internacional dos Direitos Humanos. A data foi estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1950, em referência à Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada dois anos antes. Mesmo após sete décadas, ainda enfrentamos grandes desafios relacionados à defesa dos direitos humanos em âmbito internacional. Como exemplo, podemos citar o tráfico de pessoas, o trabalho escravo, a desigualdade de gênero, a prisão e perseguição de ativistas, o assassinato e assédio de jornalistas, o desrespeito e perseguição a minorias religiosas.

Por vezes, tais questões são abordadas sob o viés da segurança, sobretudo por meio da chamada segurança humana, cujo objeto referente é o próprio indivíduo e suas necessidades. Entretanto, é importante compreender o arcabouço dos direitos humanos e sua associação com a segurança de modo crítico, questionando sua frequente instrumentalização em prol de interesses individuais por alguns atores internacionais. Para isso, sugerimos uma análise que considere a relação entre direitos humanos e segurança humana, destacando a forma como se complementam, mas também os possíveis desafios e críticas a esses paralelos.

Embora a noção de que os seres humanos possuem direitos inalienáveis já existisse há bastante tempo, o esforço de sistematização e reconhecimento internacional desses direitos ocorreu apenas no século XX, culminando na assinatura de tratados e também na maior incorporação dessa temática nas agendas de política externa dos Estados. A percepção de urgência para se criar um regime internacional sobre os direitos humanos ganhou escala após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando o Holocausto e o posterior julgamento da Alemanha nazista mobilizaram as potências vencedoras em torno da proteção humana no Ocidente. Soma-se a isso o acentuado número de refugiados e apátridas observado nesse período. De modo geral, esses eventos deixaram latente que a responsabilidade de garantir tais direitos aos indivíduos não poderia ser apenas do Estado, pois eram palpáveis os casos de falha e violação. Era necessário um arcabouço internacional que estabelecesse normas e parâmetros gerais a serem seguidos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, portanto, é considerada esse pontapé inicial na formalização de um regime internacional sobre a temática, ainda que não tivesse força de lei. A partir dela podemos notar uma sequência de pactos e convenções no âmbito dos direitos humanos, como a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951), a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher (1979), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), entre outras.

Outro resultado desse movimento de caracterização do indivíduo como um ator do sistema internacional é uma mudança – ou talvez o mais adequado seja dizer uma ampliação – do foco nos debates sobre política internacional e, mais especificamente, sobre segurança internacional. Diferente das análises centradas apenas na figura do Estado, sobretudo a partir dos anos 1990 ganha força uma linha de pensamento que vai centrar sua análise na figura do indivíduo. Esse movimento foi reflexo de uma ampliação das dimensões da segurança, ocorrida ainda durante a década de 1980. Ou seja, deixa de se limitar ao âmbito militar de sobrevivência do Estado em um ambiente anárquico, e passa a incorporar aspectos de segurança societal e até ambiental (BUZAN; WÆVER; WILDE, 1998).

O conceito de “segurança humana” – que aparece pela primeira vez em um relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em 1994 – surge então em um contexto de busca por maior diversidade de atores na segurança e tem o seu nascimento em um programa das Nações Unidas que visava estabelecer um tipo específico de desenvolvimento humano após décadas de Guerra Fria e em meio a instabilidades e conflitos. Dessa forma, mais que um conceito, a segurança humana foi formulada como um guia para ações de segurança, sobretudo, nos países em desenvolvimento.

Em uma abordagem ampla, a noção de segurança humana envolve a garantia de que o indivíduo desfrute de todos os requisitos básicos para a dignidade e o desenvolvimento humano. Quando ele desfruta de segurança econômica, política, pessoal, alimentar, comunitária, ambiental e de saúde é possível afirmar que a segurança humana desse indivíduo está garantida (PAIVA, 2018).

Por um lado, trata-se de um conceito importante para se compreender os direitos humanos, porque nos ajuda a inserir problematizações específicas, principalmente no que se refere à discussão sobre oportunidades e bem-estar em uma perspectiva mais holística, que compreenda as várias faces do desenvolvimento humano. O fato de colocar o foco no indivíduo como objeto da segurança também é relevante, pois centra o ser humano como um ator significativo nas Relações Internacionais.

Por outro lado, a segurança humana é alvo de diversas críticas. Pelo fato de o conceito ser muito amplo e vago, o olhar para as particularidades humanas é prejudicado (PARIS, 2001). Apesar de exaltar o “humano”, não se coloca tanta ênfase em abordagens que seriam essenciais para se chegar a alguma dignidade humana, estabelecer equidade e reparar injustiças históricas – como uma análise mais aprofundada envolvendo questões de raça e gênero. Outra crítica é que, ao tratar questões humanas sob a lente da segurança, abre-se espaço para que intervenções arbitrárias sejam feitas mais em nome de interesses geopolíticos e menos em nome da proteção dos direitos humanos. Além disso, muitas vezes, a garantia desses requisitos básicos para a dignidade humana envolve soluções que deveriam passar mais pelo desenvolvimento de políticas públicas (por exemplo, políticas de saúde e educação) do que pelo caminho securitário (ARMIÑO, 2007; DUFFIELD, 2006).

O século XXI tem nos mostrado que a luta por direitos humanos é incompleta se não for acompanhada da desconstrução de estruturas sociais que perpetuam as desigualdades. A pandemia de Covid-19 explicitou e aprofundou o abismo entre ricos e pobres, principalmente na América Latina. A gestão da pandemia deixa evidente as desigualdades entre os países, em que os mais pobres ainda estão longe de ter uma cobertura vacinal ampla. Além disso, os impactos das mudanças climáticas – outro assunto urgente que requer ação internacional – incidem mais fortemente em comunidades marginalizadas. Tudo isso revela um falso humanismo e a normalização da injustiça social. Apesar de apontar para os diferentes aspectos que afetam a vida humana (como os níveis social, ambiental e econômico), a proposta de segurança humana não parece ter esse potencial de questionar estruturas, tampouco propor a emancipação dos indivíduos como agentes de mudança.

A noção de direitos humanos traz o desafio de pensar a coletividade sem apagar as diferentes necessidades que cada grupo humano possui, isto é, sem diluir as particularidades no “universal” ou no “humano”, ressaltando exclusões e desigualdades históricas que ainda não foram reparadas. Segundo Boaventura de Sousa Santos, “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza. Mas temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades” (2003, p. 56).

Analisar a temática de direitos humanos, portanto, deve envolver uma estratégia de longo prazo para a prevenção do conflito e manutenção da paz, incluindo um olhar mais multidimensional sobre o que significa igualdade. Em suma, ao invés de considerar igualdade como um apagamento das diferenças, esse olhar crítico sobre os direitos humanos e os diversos níveis de segurança nos permite compreender que o problema em si não são as diferenças, mas sim as desigualdades. O problema está na instrumentalização dessas diferenças – de gênero, raciais ou culturais – para legitimar que algumas pessoas tenham menos acesso a determinadas oportunidades e direitos.

Esse olhar mais abrangente sobre o que é igualdade nos permite questionar se o conjunto de normas, convenções e mecanismos internacionais sobre direitos humanos tem alcançado seu papel transformador na política internacional ou se tem se resumido a uma interpretação retórica para legitimar interesses particulares. Ou seja, funciona apenas como uma justificativa retórica para legitimar eventuais ações por parte, especialmente, das grandes potências internacionais. Nesse sentido, existem diversas críticas a respeito desses documentos, apontando que eles compõem apenas um regime de “soft law”. Isto é, que funcionam para guiar e monitorar, mas não para garantir que essas normas sejam cumpridas, ou penalizar de modo efetivo as eventuais violações que possam ocorrer com todos os povos (REIS, 2006).

A partir de um olhar mais crítico sobre esse regime internacional dos direitos humanos, em conjunto com a noção de segurança humana e uma problematização mais profunda sobre igualdade, é possível não apenas uma análise mais abrangente sobre o processo de violência, mas também a elaboração de políticas e práticas mais eficientes no combate a esses diversos tipos de desigualdades que, muitas vezes, não passam necessariamente pelo campo da segurança. Especialmente quando consideramos que as últimas décadas vêm apresentando um movimento de maior complexidade nos conflitos internacionais e também de maior impacto sobre a população civil, esses debates se tornam cada vez mais latentes. É necessário levar em consideração essas reflexões sobre segurança e direitos humanos para que os próximos aniversários da Declaração Universal dos Direitos Humanos não sejam apenas simbólicos, mas sim reflexos de mudanças e avanços.

Giovanna Ayres Arantes de Paiva é doutora em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e da Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança (PCECS). E-mail: giovanna.aap@gmail.com.

Kimberly Alves Digolin é professora no curso de Relações Internacionais da Universidade Paulista. Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). E-mail: kimberly.alves.digolin@hotmail.com.

Imagem: Humanity wall. Por: Matteo Paganelli/Unsplash.

Referências bibliográficas:

ARMIÑO, Karlos. Pérez de. El concepto y el uso de la seguridade humana: análisis crítico de sus potencialidades y riesgos. Revista Cidob d’Afers Internacionals, n.76, p.59-77, dez. 2006-jan. 2007.

BUZAN; WÆVER; WILDE. Security: A New Framework for Analysis. Colorado: Lynne Rinner Publishers Inc., 1998.

DUFFIELD, Mark. Human Security: Linking Development and Security in an Age of Terror. In: KLINGEBIEL, S. (Ed.). New Interfaces between Security and Development: Changing Concepts and Approaches. Bonn: German Development Institute, 2006.

PAIVA, Giovanna A. A. Segurança Humana. In. SAINT-PIERRE, Héctor Luis; VITELLI, Marina Gisela (Orgs.). Dicionário de Segurança e Defesa. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

PARIS, Roland. Human Security: Paradigm Shift or Hot Air? International Security, v.26, n.2, p.87-102, outono 2001.

REIS, Rossana Rocha. Os direitos humanos e a política internacional. Revista Sociol. Polít., Curitiba, v. 27, 2006.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

Memória e verdade: sobre a necessidade de manter acesa a história da resistência ao autoritarismo

Os ataques de Jair Bolsonaro à memória dos presos políticos, torturados e executados pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar (1964-1985) devem ser interpretados como um assalto à democracia brasileira. Seria ingênuo afirmar que as manifestações raivosas e mentirosas do presidente quanto à memória de Fernando Santa Cruz são o ápice de uma comunicação verborrágica e que demonstra o desafeto de Bolsonaro às instituições democráticas. A carreira política do capitão da reserva do Exército brasileiro foi erigida sobre declarações e posicionamentos violentos e inverossímeis; não é inusitado antever a recorrência de falas virulentas. Listamos a seguir alguns dos episódios indignantes de louvor do atual presidente da República ao autoritarismo.

O atual chefe do Executivo constantemente se apresentou como uma personagem afeita à ditadura militar brasileira. Antes de assumir a presidência em 2019, Jair Bolsonaro afirmou que a ditadura brasileira deveria ter executado um número maior de seus oponentes políticosostentou imagens repugnantes de chacota à busca de ossadas dos combatentes da Guerrilha do Araguaia, e celebrou solitariamente o golpe de 1º de abril de 1964 em frente ao Ministério da Defesa, no ano de 2013.  Durante o rito do impeachment, o voto de Bolsonaro foi precedido de louvores ao reconhecido torturador da ditadura militarCarlos Alberto Brilhante Ustra, responsável, dentre outras dezenas de vítimas, pela tortura da presidenta Dilma Rousseff.

Marca de sua campanha, a falta de compromisso com a memória e a verdade histórica também se fez presente ao zombar da tortura e execução do jornalista Vladimir Herzog 1975, na sede do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), na cidade de São Paulo. Na ocasião, Bolsonaro afirmou: “suicídio acontece, pessoal pratica suicídio”. Os fatos contrariam as alegações de Bolsonaro. O Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela falta de investigação e responsabilização dos torturadores de Herzog. Após ser empossado presidente da República, a postura de Bolsonaro permaneceu inalterada. Ao final do mês de março, determinou que o Ministério da Defesa realizasse celebrações nas unidades militares em referência ao início da ditadura militar. O 31 de março havia sido retirado do calendário oficial de comemorações das forças armadas em 2011, no governo Rousseff – mais de duas décadas após o fim do regime. Em julho, contrariou a história da repressão no país, e mesmo documentos oficiais do Estado, ao negar a tortura sofrida pela jornalista Miriam Leitão e a execução de Fernando Santa Cruz. As declarações foram acompanhadas de caracterizações pejorativas das vítimas, atribuindo-lhes a participação em movimentos da resistência armada à ditadura brasileira. Quando questionado acerca da inverossimilhança das declarações, o chefe do Executivo afirmou que os documentos históricos em relação aos mortos durante a ditadura militar são “balela”.

A comunicação verborrágica – que revela a covardia de enfrentar a verdade – também resulta em políticas materiais. Um decreto assinado por Bolsonaro e pela ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, determinou a alteração de 4 dos 7 membros da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. A nova composição da comissão responsável por investigar crimes da ditadura passa a contar com militares e filiados do Partido Social Liberal (PSL). Em agravo, entre os novos integrantes há defensores do período autoritário, como o deputado federal, Filipe Barros (PSL-PR).

O revigoramento das narrativas estapafúrdias sobre a ditadura militar no Brasil pode ser parcialmente atribuído à incapacidade em investigar os crimes do regime autoritário e responsabilizar seus autores. O empenho da Comissão Nacional da Verdade (CNV) permitiu desnudar parte das violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. Instituída durante o governo Rousseff a partir da Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, a CNV teve como objetivos centrais a efetivação do direito à memória e à verdade histórica e a reconciliação nacional.

A proposta de uma comissão que investigasse os crimes da ditadura remonta ao ano de 2004, quando o então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, anunciou a organização do Arquivo da Intolerância, cuja função era tornar público o acesso documentos referentes a torturas, prisões e desaparecimentos ocorridos durante o regime militar e que estivessem sob a tutela do Estado brasileiro. Entretanto, o decreto 4.553 assinado na última semana do governo de Fernando Henrique Cardoso, aumentou o prazo de duração da classificação de documentos ultrassecretos para 50 anos renováveis indefinidamente, “de acordo com o interesse da segurança da sociedade e do Estado”. A conjuntura política à época, somada ao debate público que surgiu sobre o tema e às barreiras impostas pelas forças armadas, postergaram a efetivação do projeto do presidente Lula (SAINT-PIERRE; WINAND, 2007, p. 69).

A comissão atuou durante o governo Rousseff, em meio a debates relacionados à revisão da Lei da Anistia brasileira (1979) e ao aniversário de 50 anos do golpe de 1964. Temas sensíveis trabalhados pela Comissão, como a execução dos componentes da Guerrilha do Araguaia e a participação brasileira na Operação Condor, estiveram entre os debates da CNV e foram divulgados pelos principais veículos de comunicação do país à época. A operacionalização da CNV, contudo, foi seguidas vezes obstaculizada pelas forças armadas brasileiras, interessadas em evitar o acesso e a divulgação de documentos que comprovassem sua responsabilidade na repressão violenta (WINAND; BIGATÃO, 2014).

Após mais de dois anos de extensivos trabalhos de pesquisa documental e coleta de depoimentos, a Comissão publicou em três volumes seu relatório final, entregando-o em 10 de dezembro de 2014. De lá para cá, mesmo as aparentemente incontestáveis e exequíveis recomendações ali permaneceram. Apesar dos esforços de investigação e identificação dos responsáveis conduzidos pela CNV, seu empenho não ecoou entre representantes políticos e seu eleitorado. A onda autoritária contemporânea no Brasil aderiu a narrativas deturpadas sobre o período ditatorial.

Os projetos brasileiros para a conservação da memória e para a garantia do direito à verdade em relação à ditadura militar permanecem tímidos diante da ação de outros Estados para a preservação da história de regimes autoritários. Em outros países sul-americanos, assim como nos países que outrora foram ocupados pelo fascismo e o nazismo na Europa, a marca indelével da violência de regimes autoritários é reavivada no cotidiano como sinal de respeito às vítimas do passado e lembrete às novas gerações. Para além das comissões da verdade instaladas ainda na década de 1980, Argentina, Chile e Uruguai, sediam edificações destinadas à preservação da história dos regimes autoritários. Um olhar para essas experiências internacionais pode contribuir para aventarmos iniciativas de preservação da verdade no Brasil.

No Chile, o Parque por La Paz Villa Grimaldi, resignificou um centro de sequestro, tortura e extermínio gerido pela Dirección de Inteligencia Nacional. Na cidade de Santiago, o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos garante visibilidade às violações de direitos humanos cometidas pelo Estado entre 1973 e 1990 e tem como missão estimular debates para que as atrocidades da ditadura de Pinochet não se repitam. Na Argentina, o Archivo Provincial de la Memoria, na cidade de Córdoba, é apenas um dos monumentos de preservação da história recente de autoritarismo e violência. Em Buenos Aires, o Parque de la Memoria recorda “as vítimas do terrorismo de Estado”; enquanto o Museo de la Memoria de Rosário mantém vívida a memória das crianças sequestradas pelo Estado argentino. Em Montevideo, no Uruguai, o Centro Cultural Museo de la Memoria possui uma exposição permanente com objetos, fotografias e documentos que retratam as prisões, a resistência popular e o exílio.

Que seja inequívoco: a defesa dos valores democráticos demanda posturas intransigentes diante da ressaca do autoritarismo. Hoje, esse movimento requer um inabalável apreço pela verdade e um profundo respeito pela memória daqueles que, lutando pelo retorno da democracia e da liberdade, foram aprisionados, torturados ou executados pela ditadura. O resguardo da verdade histórica contribui para a identificação dos arroubos autoritários e de suas manifestações violentas no presente e evita o seu ressurgimento erigido com base em narrativas distorcidas.

 

Referências Bibliográficas:

SAINT-PIERRE, Héctor Luis; WINAND, Érica. O legado da transição na agenda democrática para a Defesa: Os casos brasileiro e argentino. IN: Controle civil sobre os militares e política de defesa na Argentina, no Brasil, no Chile e no Uruguay. Org: Héctor Luis Saint-Pierre. São Paulo: Editora UNESP: Programa San Tiago Dantas de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UNESP, Unicamp, e PUC-SP, 2007.

WINAND, Érica Cristina A.; BIGATÃO, Juliana P. A política brasileira para os direitos humanos e sua inserção nos jornais: a criação da Comissão Nacional da Verdade. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos. v. 2, n. 2. 2014. p. 41-52.

 

Leonardo De Paula e Laura Donadelli são pesquisadores do GEDES e, respectivamente, mestrando e doutoranda pelo PPG RI San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP).

 

Imagem: Comissão Nacional da Verdade. Por: Júlia Lima/ PNUD Brasil.