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Amazônia Azul é a próxima Groenlândia? Brasil quer submarino nuclear para dissuasão, diz analista

No dia 4 de abril de 2025, o pesquisador do Centro de Investigação sobre Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético (CIRE), Pérsio Glória de Paula, comentou à Sputnik Brasil os desafios do programa de construção do submarino nuclear brasileiro e a importância estratégica da chamada “Amazônia Azul” frente ao cenário geopolítico internacional.

Segundo Pérsio, a lenta execução orçamentária e as limitações estruturais do PROSUB podem comprometer a capacidade de dissuasão do Brasil em um contexto de crescente competição global pelos recursos marítimos. Para o pesquisador, a Marinha tem avançado em marcos tecnológicos importantes — como o domínio do ciclo do combustível nuclear e a construção do complexo naval de Itaguaí —, mas ainda enfrenta gargalos críticos como a miniaturização segura de reatores para propulsão submarina.

Pérsio destacou que a ambição brasileira de integrar o seleto grupo de países com submarinos nucleares não é mero capricho, mas resposta à valorização estratégica do Atlântico Sul. “A Amazônia Azul pode se tornar, para as próximas décadas, o que a Groenlândia representa hoje para o Ártico: um território de projeção de poder e disputa tecnológica latente”, afirmou.

Ao abordar o orçamento da Defesa para 2025, Pérsio observou que a instabilidade dos recursos representa mais do que um obstáculo técnico — revela a ausência de uma política de defesa de Estado e não de governo. “A segurança marítima, energética e tecnológica brasileira passa por decisões estratégicas que não podem mais ser adiadas, sob pena de o país perder sua janela de inserção autônoma no sistema internacional”, concluiu.

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União Econômica Eurasiática é caminho para Brasil diversificar parcerias e aproximar-se da Rússia

No dia 3 de janeiro de 2025, Danielle Makio, professora de Relações Internacionais da UNESP e membro do Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético (CIRE), concedeu uma análise ao Sputnik Brasil sobre as oportunidades econômicas para o Brasil ao diversificar suas parcerias internacionais, com destaque para a União Econômica Eurasiática (UEE). Danielle discutiu os potenciais benefícios da relação crescente entre o Brasil e os países da UEE, incluindo a Rússia, especialmente no agronegócio e no desenvolvimento tecnológico, além de abordar a importância dessa estratégia para a segurança econômica do Brasil em tempos de incertezas políticas e comerciais.

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‘Não pode ser ignorada’: analista louva proposta sino-brasileira para solucionar conflito na Ucrânia

No dia 27 de setembro de 2024, Tito Lívio Barcellos Pereira, mestre em estudos estratégicos de defesa e segurança e membro do Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético (CIRE), participou de uma análise na Sputnik Brasil sobre a proposta sino-brasileira para solucionar o conflito na Ucrânia. Tito destacou os pontos-chave da plataforma “Amigos da Paz”, que visa promover uma conferência internacional de paz. Ele enfatizou a importância do envolvimento dos países do Sul Global e os desafios envolvidos na implementação de uma solução diplomática para o conflito, especialmente em um cenário geopolítico complexo.

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Brasil precisa correr atrás de Rússia e China e fortalecer cooperação com a Mongólia, diz analista

No dia 5 de setembro de 2024, Danielle Makio, especialista em Ásia Central e membro do Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético (CIRE), comentou sobre a visita de Vladimir Putin à Mongólia. Ela destacou a importância do Brasil fortalecer sua cooperação com a Mongólia, além de estreitar relações com a Rússia e a China. Danielle ressaltou que, apesar de ser uma região estratégica, a Mongólia ainda é pouco conhecida pelos brasileiros, e isso representa uma oportunidade para o Brasil explorar novas parcerias geopolíticas, especialmente com potências emergentes como a Rússia e a China.

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O setor de Defesa no novo PAC brasileiro

Marianna Braghini Deus Deu*

 

Em 11 de agosto de 2023 o governo federal brasileiro anunciou um novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), cujas versões anteriores foram um marco dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) nos anos 2000. O PAC foi originalmente concebido com a proposta de induzir crescimento econômico a partir de diferentes frentes, em especial na área de infraestrutura e facilitação de crédito, seus objetivos sempre estiveram voltados  para a criação de empregos e os projetos financiados, em conjunto, visavam a melhoria da qualidade de vida da população. Esses aspectos foram mais uma vez destacados no anúncio do novo PAC. Nessa versão do programa, uma mudança significativa foi a inclusão do setor de Defesa como destinatário de uma parte considerável dos recursos disponíveis. No entanto, essa decisão não está isenta de controvérsias devido à incerteza em relação à sua contribuição efetiva para os objetivos do programa.

Dentre os nove eixos anunciados, o setor de Defesa ocupa a quarta maior parcela desse orçamento. Foram alocados cerca de R$53 bilhões para “modernizar e equipar as forças armadas”, um montante que ultrapassa o destinado à Saúde (R$30,5 bilhões) e à Educação (R$45 bilhões). Esse fato tem gerado preocupações entre analistas da área, como enfatizado na nota assinada pela Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED).

Pela primeira vez o PAC tem uma de suas frentes voltada à Defesa, atendendo especialmente às Forças Armadas e à indústria de defesa nacional. Algo que pode explicar essa presença em um programa com as propostas do PAC, é a ideia de que tal emprego trará retornos em termos de crescimento econômico. A lógica do investimento na indústria de defesa como gerador de desenvolvimento nacional não é uma novidade. Historicamente, a proposta é referenciada como keynesianismo bélico, o qual perpassa necessariamente a formação de um complexo militar industrial, e que pressupõe uma dinâmica em que o gasto militar gera ganhos para a economia de maneira mais ampla.

Exemplos comuns de benefícios esperados são acordos de transferência tecnológica, construção de infraestrutura industrial de ponta, envolvimento de empresas e institutos de ciência e tecnologia (ICTs), geração de mão de obra qualificada, dinamização da cadeia produtiva nacional e fortalecimento da capacidade produtiva nacional. Tais ganhos são pilares da justificativa para os investimentos em defesa, sem deixar de mencionar a superação de dependência tecnológica-econômica e a consequente capacidade de exercício da soberania, ao passo em que se corrigem defasagens críticas do aparato bélico frente ao atual cenário de defesa.

Essa decisão do governo Lula não pode ser recebida com grande surpresa. Não se deve deixar de mencionar o que foram os governos do PT para a indústria de defesa brasileira. O período de 2003 a 2016 contou com importantes esforços de modernização. Grandes projetos estratégicos das Forças Armadas concebidos em meados da década de 1990, saíram do papel sob o governo Lula, como o Projeto Gripen da Força Aérea, o projeto dos blindados Guarani do Exército e o Programa de Desenvolvimento de Submarinos (PROSUB) da Marinha. Mas não foram apenas esses projetos que demarcaram as iniciativas de modernização da indústria de defesa brasileira.

Marcos institucionais como a renovação da proposta da Política Nacional de Defesa (PND), que estabelece os principais objetivos e marcos conceituais para o planejamento da defesa nacional, a articulação do Plano de Articulação e Equipamentos de Defesa (PAED), com a ideia de otimizar a coordenação de esforços de modernização das Forças e de fortalecimento dessa base industrial, a Lei de fomento à Base Industrial de Defesa (Lei nº 12.598/2012) que instituiu regimes especiais de tributação e incentivos fiscais, a Política Nacional da Indústria de Defesa (PNID) e em especial a elaboração da Estratégia Nacional de Defesa (END), classificada pela Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (ABIMDE) como “um dos momentos mais importantes” da indústria de defesa nacional, concedendo uma “nova perspectiva ao setor e definindo as políticas e orçamentos de médio e longo prazos, consolidando, assim, uma política nacional de valorização da indústria de defesa e que vislumbra, em última instância, a soberania nacional”.

Em boa medida, isso significa dizer que, colocadas as demandas militares, imperativas e urgentes pois são de matéria de segurança nacional, na formulação de políticas econômicas e tecnológicas, os principais entraves para que o Brasil tenha forças de segurança de ponta, atuais e responsivas a ameaças contemporâneas e futuras, sejam superados. Sob essa perspectiva, esse processo ocorre, inevitavelmente, de maneira a induzir desenvolvimento econômico para o país, traduzindo-se em uma situação generalizada de ganha-ganha.

Essa dinâmica não se impõe automaticamente nem mesmo em países desenvolvidos, cujos sistemas nacionais de inovação foram construídos sob demanda militar durante a Guerra Fria, vide o exemplo da tentativa de keynesianismo bélico durante o governo Reagan nos EUA, que não resultou no mesmo sucesso econômico de décadas anteriores. Isso porque há outros elementos macroeconômicos para além do mero gasto militar que determinam os resultados (FORDHAM, 2007). Assim, embora a formação do complexo militar industrial tenha sido uma experiência de sucesso no imediato pós-Segunda Guerra, sua dinâmica encontra limitações históricas e regionais, que não são adereçadas na proposição do complexo brasileiro pautada pelo setor político.

Para que um complexo militar tenha sucesso em gerar ganhos para a economia civil, é preciso que se estabeleçam mecanismos institucionais e políticas públicas ativas que garantam o aproveitamento das externalidades que tal complexo pode gerar. A estratégia de endogeneização tecnológica por meio da indústria de defesa demanda uma abordagem proativa do governo, por meio de políticas industriais que estabeleçam diretrizes, instituições e mecanismos para promover o avanço desse setor (AMBROS, 2022).

Espelhar padrões produtivos não garante que entraves para economias dependentes sejam suplantados, em especial quando se trata do setor de defesa, uma indústria intensiva em capital cujo impacto para a macroeconomia nacional não tem capacidade de transformar, por si só, características estruturais do subdesenvolvimento. Pode, ainda, reverberar em efeitos contrários ao que pretende um programa econômico voltado para a melhoria das condições de vida e redução de distorções socioeconômicas. A mimetização de padrões produtivos e de consumo estrangeiros implica na capacidade econômica para sustentá-los, a depender de capacidades produtivas ociosas e recursos disponíveis. Assim, quando os esforços produtivos não estão alinhados às reais demandas sociais e ao atendimento às necessidades básicas da população, resulta disso um desequilíbrio entre a priorização do governo e os interesses sociais (FURTADO, 2008, 2013).

O que não significa dizer das possibilidades de desenvolvimento tecnológico autônomo via indústria de defesa, tendo em vista que esta opera sempre nas fronteiras do conhecimento tecnocientífico, e demandas militares foram preponderantes na geração das principais tecnologias utilizadas atualmente no cotidiano civil. Menos ainda significa dizer que um país não deve buscar superar sua condição periférica.

Devido à relação crítica entre o desenvolvimento tecnológico e condições de dependência, dir-se-ia que o Estado tem a autoridade e o dever de impulsionar a indústria tecnológica. Muitas tecnologias digitais têm aplicações tanto civis quanto militares. Assim, a prevalência dessas chamadas tecnologias duais enfatiza sua importância, pois a capacidade de as produzir afeta a economia e a segurança nacional de um país.

Uma vez que o acesso a diversas dessas tecnologias é restrito por seus detentores (os países desenvolvidos), fica mais explícito o papel fundamental do Estado no investimento em pesquisa, no incentivo a inovação e na busca por parcerias para reduzir a dependência tecnológica, garantindo o desenvolvimento econômico e a soberania nacional (AMBROS, 2022).

Não se trata de questionar esses pontos. O objetivo aqui é salientar que a redução de dependência tecnológica, em especial movida por demandas militares, implica em um debate mais amplo sobre um projeto sociopolítico. Ademais, em um cenário em que expectativas de mercado constrangem o investimento público, o conflito distributivo orçamentário deve ser foco de atenção do governo federal. O Ministério da Defesa é uma das principais fatias do orçamento da União, mas cerca de 80% do montante é voltado ao pagamento de encargos sociais (salários, pensões, etc) – segundo dados do SIGA Brasil. É passível de questionamento a razão pela qual investimentos em modernização devem advir de um programa como o PAC – cujos objetivos não dizem respeito ao setor militar.

A questão central aqui abordada é se esses investimentos no setor de Defesa realmente contribuirão para alcançar os objetivos do PAC, que geralmente envolvem o crescimento econômico, a redução da desigualdade, a melhoria da infraestrutura básica, a educação e a saúde pública. A utilidade desses gastos em termos de retorno econômico e social pode ser questionada, especialmente se não houver uma justificativa nítida de como os investimentos no setor de Defesa se alinham com os objetivos gerais do programa e uma proposta ativa de como serão atingidos esses fins. Caso contrário, as externalidades do complexo militar não são apenas indiretas, como também apenas potenciais, repousando mais em pressupostos do que em mecanismos institucionais e sistemas de aprendizado na estrutura industrial.

Tais investimentos já se manifestam no aumento do orçamento destinado ao Ministério da Defesa, mas não de maneira significativa. O Projeto da Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2024 enviado ao Congresso pela presidência, prevê um aumento ao ministério de aproximadamente R$5 bilhões em comparação com o PLOA do ano anterior, passando de R$121bi para R$126bi. No que se refere aos projetos contemplados pelo PAC, o aumento foi de apenas R$368 milhões.

Tabela 1: Projetos das Forças Armadas contemplados pelo novo PAC

Na proposta para 2024, as despesas com todos os investimentos são de R$8 bilhões, contra os R$7 bi proposto no PLOA de 2023, enquanto os gastos com pessoal e encargos sociais passariam de R$94 bilhões para R$98 bilhões em 2024. O projeto ainda será votado pelo Congresso e os valores podem passar por alterações.

Iniciativas vistas durante os governos do PT e essa nova leva de investimentos via PAC, que correlaciona diretamente demandas militares como eixo central de difusão tecnológica, são determinantes para que as Forças Armadas brasileiras e a indústria de defesa do país possam integrar seus próprios objetivos e interesses em diretrizes políticas nacionais mais gerais, voltadas a iniciativas de ordem econômica.

Equilibrar agendas de segurança com os interesses sociais é um desafio para qualquer governo democrático. A própria nota assinada pela ABED aponta que o governo de transição não criou um grupo de trabalho para lidar com as questões de Defesa. Questões de segurança nacional não são de acesso público, essa falta de transparência pode vulnerabilizar direitos cívicos e sociais, o que torna a questão de interesse público. A demanda por novos equipamentos e tecnologias não se justifica em si mesma; isto é, finalidades e diretrizes para seu uso devem ser pautados, em especial se tais demandas estão sendo colocadas em agendas econômicas que pretendem a prosperidade de uma nação.

 

* Marianna Braghini Deus Deu é mestra em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Unicamp e doutoranda em Relações Internacionais pelo PPG San Tiago Dantas (Unicamp/Unesp/PUC-SP). Pesquisadora integrante do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e da Rede de Pesquisa em Autonomia Estratégica, Tecnologia e Defesa (PAET&D).

Imagem: Presidente Luiz Inácio Lula da Silva no lançamento do novo Programa de Aceleração Econômica em agosto de 2023. Por: Tomaz Silva/Agência Brasil.

Referências:

ABIMDE. ABIMDE comemora 34 anos de história. Disponível em: <https://abimde.org.br/pt-br/noticias/abimde-comemora-34-anos-de-historia>. Acesso em: 15 ago. 2023.

Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED); Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS); Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP). Nota conjunta sobre o Novo PAC (2023). Disponível em: <https://www.abedef.org/informativo/view?ID_INFORMATIVO=215> . Acesso em: 15 ago. 2023.

AMBROS, C. C. (2022). Indústria de Defesa e Desenvolvimento: controvérsias teóricas e implicações em política industrial. Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais, 6(11). https://doi.org/10.22456/2238-6912.74955

BRASIL. Poder Executivo. Projeto de Lei Orçamentária 2024. Brasília, DF: Presidência da República, 2023. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9445685&ts=1693936714647&disposition=inline>. Acesso em 12 set. 2023.

FORDHAM, B. Paying for global power: costs and Benefits of Postwar U.S. Military Spending. In: The Long War. BACEVICH, A (org.). Columbia University Press: Nova York, 2007.

FURTADO, C. O mito do desenvolvimento econômico. Companhia Penguin. Celso Furtado. Essencial. Organização Rosa Freire d’Aguiar. 1a. Ed. São Paulo: Penguin Classics Cia das Letras, 2013.

FURTADO, C. Da ideologia do progresso ao desenvolvimento. In: Criatividade e dependência da civilização industrial. São Paulo: Cia das Letras, 2008, pp.99-110.

MINISTÉRIO DA CASA CIVIL. Portal do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Disponível em: <https://www.gov.br/casacivil/novopac/>. Acesso em: 12 set. 2023.

Contos de Farda

           Matheus de O. Pereira*

À medida que as apurações sobre o 08 de janeiro avançam fica cada vez mais claro que as Forças Armadas tiveram uma atuação negligente – para dizer o mínimo – no episódio. A gravidade dos eventos tem servido para finalmente colocar em evidência a relação entre as Forças Armadas e a política, um dos mais adiados, e necessários, debates sobre a democracia brasileira. Longe de qualquer pretensão de exaurir o assunto, gostaria de chamar a atenção neste texto para a necessidade urgente de desconstrução do que chamarei aqui de mitologia da excepcionalidade, que envolve as narrativas e percepções sobre a Forças Armadas desde a sua gênese.

Esta mitologia corresponde, de modo sucinto, à caracterização das Forças Armadas como uma organização excepcional, uma ilha de modernidade em meio ao mar de atraso e primitivismo da sociedade brasileira. Formadas a partir da mimetização de elementos importados, as Forças Armadas seriam a representação de uma forma superior de organização e os valores típicos da caserna – hierarquia, disciplina, ordem – funcionam como contraponto ao que seriam características “inatas” dos povos locais, sobretudo os indígenas e os pretos: a lasciva, preguiça, falta de disciplina etc.

Embora seja uma caricatura sem qualquer fundamento, esta caracterização permite formar imagens poderosas que forjam uma identidade que é tanto autorreferida pelos militares como reproduzidas por atores externos. Uma declaração do Ministro Chefe da Casa Civil, Rui Costa, dada em recente entrevista ao jornal O Globo, ilustra com perfeição como esta visão circula inclusive entre a esquerda. Segundo Rui Costa, “Na minha opinião, isso [os acampamentos na frente dos quarteis] não contribuía e não contribuiu para a imagem das nossas Forças Armadas, que sempre foram o símbolo do que está escrito na bandeira do Brasil: ‘Ordem e Progresso’”.

Outro aspecto relevante desta mitologia é a representação das Forças Armadas como probas, imaculadas, justamente porque se diferenciam dos vícios e mazelas imperantes na sociedade. Por outro lado, ao serem definidas como instituições de Estado e destinadas à defesa da pátria, elas se tornam uma espécie de repositório da nacionalidade. Os militares seriam, assim, a representação “verdadeira” do que é a Nação, estando, portanto, aptos a identificar quando os interesses nacionais estão em jogo, e sua suposta lisura os tornam apropriados para executar movimentos de saneamento da política, de afastamento da corrupção, de contenção da desordem.

Essa narrativa, que pode ser detectada em todos os episódios de golpismo dos militares, desempenhou papel fundamental na construção da candidatura de Jair Bolsonaro à presidência em um contexto no qual a corrupção ocupava o posto de principal problema brasileiro. Ora, se o país se encontra engolfado no “mar de lama” da esquerda corrupta, quem melhor que um militar para pôr ordem na casa? O fato de Bolsonaro ser um troglodita até mesmo para os padrões dos militares brasileiros pouco importa – o fato é que ele habilmente manejou este elemento em seu favor. Uma vez no poder, Bolsonaro não apenas seguiu se apropriando exaustivamente da retórica militarista como promoveu uma verdadeira colonização da administração pública com militares que, por sua vez, fizeram o que sabem de melhor: expandir seu quinhão de privilégios às custas do erário.

Isto nos remete a um tópico que será central nos debates sobre o período recente: a narrativa segundo a qual a vinculação entre militares e bolsonarismo se dá no plano individual, e não institucional, isto é, a ideia de que o que ocorreu foi uma adesão de indivíduos militares, e não um endosso institucional das Forças, ao bolsonarismo. Esta é uma falácia que precisa ser urgentemente desconstruída.

Do infame tuíte do gen. Villas Bôas chantageando o STF até aos afagos aos golpistas acampados, as Forças Armadas são siamesas do bolsonarismo. Não duvido que as imagens de depredação do patrimônio artístico e cultural do país e de um sujeito defecando sobre a mesa de um ministro do STF arrepiem oficiais que se julgam membros de uma casta superior, mas não há ginástica retórica que desvincule as turbas bolsonaristas dos militares. É simplesmente impossível que mais de 6.000 oficiais da ativa ocupem postos na administração pública sem respaldo do Alto Comando, ou que as infundadas suspeitas sobre o sistema eleitoral sejam endossadas sem a anuência dos estrelados generais sem batalhas.

Esta narrativa, contudo, serve a vários propósitos fundamentais dos militares neste momento. O primeiro deles é evitar que os militares envolvidos no governo Bolsonaro sejam objeto de qualquer tipo de responsabilização pela coleção de absurdos formada nos últimos quatro anos, em particular no Ministério da Saúde. Um segundo interesse fundamental é assegurar a manutenção dos privilégios recentemente adquiridos – como o tratamento especial na reforma da previdência. Finalmente, os militares esperam manter-se isentos de qualquer tipo de controle por parte do poder civil, garantindo, assim, sua autonomia administrativa e política, inclusive na definição das prioridades orçamentárias.

Para garantir que sua agenda será exitosa, os militares precisam contar com mais do que sua expertise em relações públicas. Se as narrativas mitológicas sobre os militares persistiram por tanto tempo não foi apenas por ação da caserna, mas também por inação dos civis. É fundamental que os poderes estabelecidos se assenhorem de suas prerrogativas constitucionais e façam aquilo que se espera de qualquer democracia: que os militares sejam plena e irrevogavelmente subordinados ao poder civil – e não conciliados com ele. Evidentemente não se trata de exercício simples, mas a urgência que a questão adquiriu nos últimos anos não comporta mais adiamentos. As falas recentes do Presidente Lula e a demissão do gen. Arruda representam bons sinais, mas é preciso ir além. É preciso que haja um debate amplo e propositivo entre partidos, representantes eleitos e a sociedade civil, que discuta a sério o controle civil.  Caso isto ocorra, pelo menos para algo positivo a grotesca fuzarca golpista que tomou Brasília terá servido.

 

* Matheus de O. Pereira é Doutor em Relações Internacionais e Professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Imagem: Invasão do prédio do Congresso Nacional. Por: Agência Senado/Flickr.

Terras conquistadas e terras a conquistar: o xadrez do ministério da defesa

Lis Barreto*

Já há alguns anos nós assistimos a crescente militarização dos cargos políticos ligados à  União, sejam eles ministérios ou empresas subordinadas ao Governo Federal. O ministério da defesa não foi exceção a este movimento, tendo iniciado um ciclo de ministros militares a partir do governo do Presidente Temer e se mantendo desta forma até hoje (outubro de 2022)[1].

Estas não são notícias felizes. Para quem está familiarizado com a história brasileira e, em especial, aos debates acadêmicos em torno da importância do ministério da defesa, sabe que uma das maiores expectativas em torno da criação deste órgão esteve e está no seu papel na construção de relações civis-militares democráticas. Isto ocorreria através de várias mudanças, sendo um ponto essencial a própria presença de um ministro civil, que teria o papel de reduzir o contato direto entre os militares e o Presidente da República, como também o de evitar que as decisões políticas do ministério pendessem para um corporativismo (FEAVER, 2003). É controverso – e, creio eu, incorreto – afirmar que em algum momento já tenhamos atingido um controle civil dos militares, mesmo antes de vivenciarmos a militarização dos ministros. Apesar disso, o MD segue sendo a representação de uma vitória importante para a democracia. Imperfeito e criticado como é e sempre foi, ele logrou criar bases para que um dia possamos estabelecer – de jure e fato – relações civis-militares democráticas (BARRETO, 2021). São essas mudanças conquistadas a partir de 1999 que eu gostaria de chamar atenção, afinal somente entendo o quanto avançamos podemos entender o que está em jogo.

Antes de prosseguirmos nesta linha, faz-se necessário um pequeno adendo. Os avanços e mudanças que citarei adiante são de caráter institucional. Isso quer dizer que estou apresentando alterações que foram feitas nas regras do jogo, as quais influenciam as ações das personagens envolvidas e mudam o custo das suas ações. De uma forma simples, adoto aqui a visão de que quanto mais regrado é um jogo, mas custoso se torna jogar fora das regras. O aumento do custo deriva da previsibilidade que vem junto com o aumento de regras. Por exemplo, se todas as pessoas sabem que para comprar um artefato nós utilizamos dinheiro, seja ele físico ou virtual, torna-se custoso para uma pessoa querer comprar ou vender algo utilizando livros como meio de troca. Isso exigiria uma negociação a cada rodada de compra para se chegar em uma troca. Quando se implanta um padrão regrado, quanto menos espaços houver para dúvidas ou interpretações, mais previsível ele o é para os atores, que podem moldar suas ações e/ou expectativas com base nisso (NORTH, 1990).

Dito isto passamos aqui a destacar como o MD passou a delinear e circunscrever as relações civis-militares a partir de sua criação através da consolidação de padrões que se mantém até hoje, mesmo com os ministros militares. Ao final, aponto para o que acredito que precise ser a nova trincheira, sem perder de vista a necessidade de preservar e manter consciência daquilo que já conquistamos.

Oficialmente criado em 1999, o MD foi o resultado de longas e complexas sequências de jogadas e negociações envolvendo o Poder Executivo, as Forças Armadas e o Legislativo. Teve de tudo. Desde a criação da figura de um Ministro Extraordinário da Defesa para pressionar o Legislativo e as Forças, chegando às incríveis cessões ao estamento militar, o qual além de ter sido retirado da reforma previdenciária que acontecia em paralelo, recebeu aumentos salariais e manteve o status jurídico dos ministros para os seus Comandantes (MARTINS FILHO, 2006; FUCCILE, 2006).

No momento em que o ministério foi criado, o cargo de ministro da defesa não dispunha de funções formalizadas, sendo denunciado pela academia como um tipo de “Rainha da Inglaterra”, cuja existência era constantemente percebida como uma falsa liderança civil em um ministério fortemente militarizado (ZAVERUCHA, 2005). Neste contexto, tudo apontava para criação de uma instituição vazia, sem poder de alterar a relação próxima e direta entre os militares e o poder público. Contudo, instituições são coisas curiosas.

Um conceito famoso no estudo das instituições é o de consequências imprevistas. Ele é aplicado para explicar situações em que uma instituição tem um impacto não previsto. Normalmente a imprevisibilidade acontece porque nenhuma instituição é criada no vazio, e um novo arranjo institucional interage com os já existentes criando interações nem sempre previstas (PIERSON, 2004). No caso do MD, da forma como foi criado, pouco inspirava afetar democraticamente as relações civis-militares, mas acabou sendo a base para que a relação se tornasse mais regrada, mais previsível, ou seja, mais institucionalizada.

Destaco duas principais razões para o ocorrido. O primeiro é que, diferentemente da grande maioria dos ministérios, o MD não pode deixar de existir através de um Decreto Presidencial, pois o ministro consta na Constituição Federal[2]. Esta façanha conquistada em meio às negociações para a criação do MD, tornou o ministro da defesa uma figura constitucional, só podendo ser excluído com anuência de 3/5 do Congresso Nacional, tornando sua existência resistente aos humores políticos. O caráter mais perene do ministério ajuda a circunscrever o palco para o debate da questão militar e das políticas, transformando-o no grande centro da disputa de poder entre militares e políticos eleitos (BARRETO, 2021).

O segundo ponto é que, com o tempo – e com o timing certo –, o ministro da defesa conquistou funções. Entre 1999 e 2006, a ausência de diretrizes relacionadas ao cargo de ministro fazia com que este competisse internamente sobre suas próprias atribuições e, neste ambiente de disputa, ganhava quem tinha mais poder. No entanto, com a crise aérea de 2006 e a decorrente posse de Nelson Jobim, muda-se o perfil de quem ganhava este jogo (BARRETO, 2016). De 2006 até 2010, Jobim atuou com destacada liberdade no ministério, elaborando documentos de alto impacto, como a Estratégia Nacional de Defesa e a Política Nacional de Defesa, chegando, inclusive, a ser a peça-chave na construção de um arranjo regional de defesa (VAZ, 2013). Tudo isso sem que um único pedaço de papel formal atribuísse a ele estas capacidades. Esta força política de Jobim criou a base para os seus sucessores pudessem dispor de tais atribuições, pois a Lei Complementar 136 de 2010 formalizou as primeiras atribuições do ministro da defesa onze anos após a sua criação (BARRETO, 2021).

Estes dois pontos nos ajudam a entender como o MD circunscreveu o espaço de debate da questão militar, ao legitimar o ministério como centralizador dos temas ligados as FA, como o campo a ser disputado. O MD também formalizou as formas de ação e interação, estipulando diretrizes e os temas que o são pertinente, através da figura que gradualmente se legitima a falar em nome do ministério, que é o ministro da defesa. Esta normatização criada em torno do MD oferece alguma previsibilidade no formato da interação do ministério com o governo, de forma razoavelmente estável.

No entanto, como todos sabemos, nem tudo são flores e há ainda um longo caminho pela frente. Se observarmos o trajeto aqui descrito, podemos notar que quando o MD se tornou o objeto de disputa de poder, em especial devido à dificuldade que seria extingui-lo, ocupá-lo se tornou essencial. A formalização das atribuições do ministro auxiliou no fortalecimento deste ator, mas dificilmente seria capaz de ir muito além se este andasse sozinho em um ministério completamente militarizado.

Nesta questão, foram realizadas alterações importantes no organograma do ministério da defesa, durante os mandatos dos ministros Nelson Jobim e Celso Amorim. Elas não reduziram a ala exclusivamente militar – que infelizmente se expandiu – porém criaram cargos diretamente subordinados aos ministros que dispunham de funções que, muitas vezes, concorriam com outras que existiam na parte já militarizada do MD[3]. Dito de outra forma, foi realizada uma duplicação de funções no ministério que – interpreto eu – ajudaram a manter a centralizar nas mãos dos ministros parte importante das decisões políticas do ministério.

Contudo, diferentemente das outras modificações citadas neste texto, esta não possui uma alta capacidade de sobrevivência, pois o organograma pode ser modificado por Decreto Presidencial e porque todos os cargos do MD são cargos comissionados. Isso quer dizer que a estrutura do ministério é completamente modificável e que não é possível criar uma memória institucional. Por esta razão, era de se esperar que, a partir de 2016, com os ministros militares, ocorresse um esvaziamento da estrutura frágil que fora criada nos anos anteriores. Contudo, poder é uma coisa muito séria e pouca gente abriria mão dele, uma vez que o possuísse. Então, ao invés de assistirmos ao fim do organograma duplicado, assistimos a sua militarização.

Para quem não sabe, os quadros militares do MD são divididos de forma bastante equitativa entre as três Forças[4]. Porém a escolha dos ministros da defesa é política e, dentre os militares, só o Exército foi contemplado. Por que o Exército iria destruir a duplicação se ele dispunha do 1/3 que lhe cabia e agora adicionava o puxadinho que antes cabia aos civis? A manutenção da desigualdade indica que a estrutura civil dispunha de alguma robustez. Esta não foi destruída – ainda – e mesmo que seja, esta poderá ser facilmente recuperada, enquanto outra forma de ação não seja criada e implantada. Contudo, esta dinâmica mostra a necessidade de garantir alguma sobrevivência civil dentro dela.

Não é nenhuma demanda nova. A primeira proposta formal para o estabelecimento de uma carreira civil para a defesa é anterior a criação do próprio ministério[5] e segue ecoando nas falas acadêmicas. Ninguém está supondo que será fácil ou que serão criados vários cargos ou, menos ainda, imaginando que isto poderá ocorrer sem concessões. Mas no jogo de xadrez institucional que se move lentamente ao longo das duas últimas décadas e, uma vez preservadas as movimentações anteriores, esta parece ser a próxima jogada lógica. Acredito eu que é chegada a hora de tentar criar uma memória civil dentro do ministério da defesa.

 

* Lis Barreto é doutora em Ciência Política em regime de cotutela entre a Universidade Federal de São Carlos e a Universidade de Lisboa. Lis recebeu o Prêmio Capes de Tese 2022 na área de Ciência Política e Relações Internacionais, com trabalho sobre a institucionalização das relações civis-militares no Brasil.

Imagem: Esplanada dos Ministérios. Por: Mariordo/Wikimmedia Commons.

 

[1] Ver o jornal O Globo: <https://oglobo.globo.com/brasil/temer-oficializa-primeiro-militar-no-comando-doministerio-da-defesa-22776031>; Ver Folha de S. Paulo: < https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/03/bolsonaro-multiplica-por-10-numero-de-militares-no-comando-de-estatais.shtml >.

[2] Através da Emenda Constitucional 23 de 1999.

[3] Informações disponíveis nos Decretos Presidenciais 3080 de 1999; 3466 de 2000; 4735 de 2003; 5201 de 2004; 6224 de 2007; 7364 de 2010; 7974 de 2013; 8978 de 2017; 9570 de 2018; 10076 de 2019; 10293 de 2020; 10806 de 20211; 0998 de 2022. Disponíveis no site do Planalto: <http://www.planalto.gov.br>.

[4] Com base nos decretos citados acima, quando não há divisão em três, há rodízio para a ocupação dos cargos.

[5] Foi proposto pelo então deputado José Genoíno em 1998, durante o tramite da PLP 250/1998. Ver Barreto,2021, p. 94-96.

 

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10th NPT Review Conference: what to expect from Brazil?

Victoria Viana Souza Guimarães*

Lucas Peixoto Pinheiro da Silva**

The approach of the 10th Review Conference (RevCon) of the Treaty on the Non-Proliferation of Nuclear Weapons (NPT) increases expectations about what will be debated and the possible outcomes. The expectation in regard to this specific RevCon is even stronger due to both the rescheduling and the multiple issues to be discussed. After four successive postponements due to the covid-19 pandemic, the event originally scheduled to take place in 2020, will take place between August 1st and 26th, 2022, in New York, in a very different and more challenging international context than in 2015. The topics that will probably be addressed include the following: Treaty on the Prohibition of Nuclear Weapons (TPNW), nuclear submarines, Joint Comprehensive Plan of Action (JCPOA), 2018-19 Korean Peace process, Russo-Ukrainian War, energy crisis, nuclear weapons modernization programs, among others. The present article reviews the main issues on the agenda of the non-proliferation regime, analyzes Brazil’s position in previous conferences, and presents the stance it is most likely to present at this conference.

One of the main issues that will probably be addressed in the 10th RevCon is the relationship between the NPT and the TPNW. The TPNW entered into force in January 2021 and its 1st Meeting of States Parties happened from June 21st until the 23rd, 2022, in Vienna, Austria. The states parties issued two notable documents: the “Vienna Declaration” and the “Vienna Action Plan.” In the first document, the states parties reiterated their commitment to a future without nuclear weapons and strongly condemned nuclear threats. While in the second, they presented a wide-ranging and detailed 50-point plan for the implementation of the treaty.

The discourse leading up to the 10th RevCon gave great emphasis to “reducing the risk of nuclear weapon use” as a practical way to make incremental progress toward disarmament. Nevertheless, some non-nuclear-weapon states fear that a collective focus on risk reduction is an effort to avoid taking the steps needed to achieve disarmament. Some civil society experts have recommended that the document for the final RevCon recognize the TPNW’s entry into force while simultaneously clearly reaffirming the centrality of the NPT to the disarmament and nonproliferation regime. Albeit that, action must still be taken to demonstrate that risk reduction does not deviate from the efforts toward nuclear disarmament but contributes to achieving it.

Another issue to be addressed is the AUKUS. This acronym refers to the initials of Australia, the United Kingdom, and the United States. These countries jointly announced the formation of a new trilateral security partnership in the Indo-Pacific on September 15th, 2021. This partnership establishes among other things the acquisition by Australia of nuclear-powered submarines. Thus, Australia, together with Brazil, which has pursued a nuclear-powered submarine since the late 1970s, would be the first non-nuclear-weapon state to possess it. These programs present new challenges regarding nuclear safeguards and proliferation which should be addressed at the conference. Speculations have already been made about the possibility of countries such as South Korea, Japan, Iran, and Pakistan, among others, taking advantage of this precedent.

The Joint Comprehensive Plan of Action (JCPOA) was signed in July 2015, closing the Iranian nuclear issue. It was originally composed by the P5+1 (China, France, Russia, UK, US + Germany) along with the European Union and Iran. The agreement’s main goal was to provide further assurances that Iran would not use nuclear technology to build nuclear weapons. However, in 2018, ex-President Donald Trump withdrew the US from the arrangement, which was followed by the reestablishment of strong banking and oil sanctions. In retaliation, the Iranians have resumed some of the nuclear activities that were dismantled by the JCPOA, such as increasing the stockpile of low-enriched uranium, enriching uranium in higher concentrations, and developing  new centrifuges. More recently, the signing of the Jerusalem Declaration, on July 16th, 2022, by Biden and the Prime Minister of Israel, Yair Lapid, obstructed even further the chances of the JCPOA’s revival. According to the document, each country would be willing to “use all elements of its national power” to prevent Iran from acquiring a nuclear device.

The 2018-19 Korean peace process was a series of negotiations among the US, South Korea, and North Korea towards the Korean peninsula denuclearization. In March 2018, ex-President Trump agreed to the first US-North Korea Summit, which was followed by a historical summit between Kim Jong-un and Moon Jae-in. The result was the pledge from both to convert the armistice into a formal peace treaty between the two Koreas and confirmed the shared goal of achieving a nuclear-free Korean Peninsula. Further efforts were made on June 12th, 2018, when Trump and Kim held a historic meeting, in Singapura; and in September 2018, when Kim and Moon signed a joint declaration outlining steps towards reducing tensions, expanding inter-Korean cooperation, and achieving denuclearization. Nonetheless, negotiations stalled after the Hanoi Summit. The efforts to revive it were unsuccessful and, on October 6th, 2019, North Korea ended negotiation talks with the US until Washington could offer substantial sanction relief. In June 2020, the inter-Korean dialogue was disrupted as well. More recently, Biden has adopted a “middle ground” approach between Obama’s “strategic patience” and Trump’s “grand bargain” policies, though North Korea has signaled no intentions to re-start the talks and ramped up missile tests at  the beginning of 2022.

On February 24th, 2022, Russia invaded Ukraine causing a major disturbance in the international system. Russia has put on special alert its deterrence forces, in case NATO intervened directly in the war, igniting security-focused rearrangements in the international economy, with unprecedented sanctions against Russia, which led to spiking oil and gas prices. The energy crunch caused by the war has led to the reconsideration of nuclear energy as a clean alternative to fossil-fuel based energy sources even in countries like Germany, where nuclear energy plants are predicted to be completely shut down at the end of 2022. Furthermore, during the conflict, the Kharkiv nuclear research institute was shelled and Europe’s biggest nuclear power station at Zaporizhzhia was damaged, causing further concern over the nuclear risks and its humanitarian consequences.

Nuclear weapons modernization programs continue to channel extensive resources that could be invested in other critical areas. According to the International Campaign to Abolish Nuclear Weapons (ICAN) report, in 2020, during the covid-19 pandemic, 72.6 billion was spent on nuclear weapons. This high investment in nuclear weapons was also underscored in a 2022 report produced by Reaching Critical Will. The report states that “continued investment by certain governments in not just the maintenance but also the ‘modernisation’—the upgrading, updating, and life-extending—of nuclear weapons is absurd, dangerous, and immoral”.

Brazil acceded to the NPT in 1998 and since then has participated in all RevCons and Preparatory Committees[3], having consolidated very coherent and stable rhetoric internationally. The Brazilian position in the Global Non-proliferation Regime has been characterized by the following rhetorical issues: i) defense of the universality of the NPT; ii) the reaffirmation of its pillars (nonproliferation, disarmament, and peaceful use of nuclear technology); iii) the reiteration of the irreversibility, transparency and verifiability principles and the urging for the resolution on the Middle East agreed on the 5th Review and Extension Conference of the NPT; iv) the urging for revision of the role of nuclear weapons in nuclear-weapon states’ military doctrines, v)  the denunciation of the imminent risk of an accidental nuclear detonation; and vi) the contestation of its asymmetries due to the lack of implementation of previously agreed upon disarmament-oriented measures. In addition, the proposition of measures to improve the regime, in particular the fulfillment of the nuclear-weapon states obligations, has also been present in all administrations since 1998. More recently, since the Dilma Rousseff administration, the enunciation of the humanitarian cost of nuclear weapons has been gaining importance.

Considering this new context in which the 10th RevCon will take place, what should be expected in relation to Brazil’s position in the conference? Similar to the Brazilian positions in the previous conferences, it is believed that in this RevCon the country will probably reproduce its consolidated position on recurring issues, by keeping a demanding rhetoric toward the nuclear-weapon states , while defending the access to the technological development of the non-nuclear-weapon states . Meanwhile, on the AUKUS issue, Brazil might try to maximize the effects of the precedent for its own interests, as it is probably the most impactful issue for the country expected to be addressed at the conference. Brazil shall observe carefully how the US will stand regarding this issue since it has been against the Brazilian program. Brazil could explore this contradiction. Conversely, the AUKUS may set an unfavorable precedent for Brazil in relation to joining the IAEA Model Additional Protocol, to which Australia has already adhered and Brazil resists. In general, the trend is toward  regression in relation to nuclear disarmament and non-proliferation measures, following a  change in the priority of the great powers, with an emphasis on security issues motivated by the containment strategy of China and the Russo-Ukrainian war.

[3] Meetings that precede the Review Conferences.

* Doutoranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e bolsista CAPES/BRASIL no projeto 88887.387832/2019-00.

** Mestre em Estudos Estratégicos (Inest-UFF). Secretário adjunto do Centro de Estudos sobre China Contemporânea e Ásia (CEA/Inest-UFF).

Imagem: Assembleia Geral da ONU, 2018. Por Trump White House Archived/Flickr.

Desprojetos de Brasil

Mariana Janot*
David Succi Júnior**
Lívia Peres Milani***
Samuel Alves Soares****
Texto publicado originalmente em Le Monde Diplomatique Brasil.

No dia 19 de maio de 2022, o Instituto General Villas Bôas realizou o lançamento oficial do Projeto de Nação: o Brasil em 2035. O documento foi elaborado em parceria com o Institutos Sagres e o Instituto Federalista e coordenado pelo general da reserva Rocha Paiva. O vice-presidente, Hamilton Mourão, participou do evento de lançamento. Não resta dúvidas da influência dos militares na elaboração do documento. Segundo os autores, o projeto visa estabelecer uma Estratégia Nacional – também referida como Grande Estratégia ou Política Nacional -, que seja de longo-prazo, “apartidária, sem radicalismos ideológicos, étnicos, religiosos, identitários ou de qualquer natureza”. A proposta representa a continuidade de uma ideologia de segurança nacional, tem insuficiências metodológicas e vem embutida de uma visão autoritária.

O Projeto de Nação como continuidade de uma tradição militar

No projeto, se descreve um Brasil majoritariamente conservador e liberal, socialmente coeso em seus valores morais, éticos e cívicos, resistente ao movimento globalista, movido pelo agronegócio e mineração, esvaziado de legislações de demarcações de terras indígenas e assertivo no combate ao crime organizado e à corrupção. Para alcançar este Brasil, seria necessário superar interesses político-partidários, identitários e radicais, incapazes de compreender os verdadeiros interesses nacionais, que somente o conservadorismo evolucionista poderia interpretar. O projeto afirma que este é o caminho para o futuro, porém, este é, precisamente, o passado, e tem nome: Doutrina de Segurança Nacional.

É indicativo que o site oficial do Instituto Sagres indique como fundamentação do estudo figuras e ideias caras ao grupo militar e civil que Lentz (2022) denominou como conservador-intervencionista. Desde a década de 1930 se constrói uma ideologia de segurança nacional em que cabe às Forças Armadas o dever e o direito de interpretar, formular e implementar os objetivos nacionais da coletividade brasileira, junto a um grupo de tecnocratas e elites econômicas, mantendo uma visão elitista do que o Brasil já foi, do que o país é no presente e, sobretudo, do que o Brasil deve ser.

Na Escola Superior de Guerra, espaço de articulação do Golpe de 1964, se formulam planejamentos e manuais para uma Política Nacional e uma Grande Estratégia norteadas pela indissociabilidade entre segurança (conservação) e desenvolvimento (progresso controlado). Em seus Manuais Estratégicos, bem como no Planejamento Estratégico de Golbery do Couto e Silva, há uma constante ênfase na análise estratégica de conjuntura e levantamento de situações futuras de curto e longo prazo, no âmbito doméstico e global, a fim de se delimitar e perseguir os Objetivos Nacionais Permanentes e Atuais, sob gestão e intervenção consciente do Estado (Couto e Silva, 1981, pp.403-409).

Em continuidade desta tradição, no Projeto de Nação lançado nesta semana, somos apresentados a uma Estratégia Nacional “consolidada em documentos que englobam as estratégias a serem aplicadas para conquistar e ou manter os Objetivos Nacionais (ON), estabelecidos pelo mais alto nível de direção do Estado (nível político), e de acordo com Diretrizes Político-Estratégicas por ele definidas” (Sagres, 2022, p.14). Os autores do projeto o anunciam como resultado de um estudo de cenários, que visa a democracia estável e ao desenvolvimento do país.

As insuficiências metodológicas

A elaboração de cenários prospectivos é um instrumento empregado por diversas entidades públicas, privadas, nacionais e internacionais no processo de planejamento, tomada de decisão e comunicação de objetivos e políticas. De forma resumida, cenários prospectivos são imagens do futuro e dos desenvolvimentos que podem produzir determinadas situações no futuro. Há uma série de metodologias e diferentes ferramentas empregadas para sua formulação, cujo ponto comum é o pressuposto de que as cenas resultantes não têm propósito preditivo, isto é, de asseverar o que de fato ocorrerá. São instrumentais justamente por explorarem possibilidades e ampliarem o imaginário político. Neste sentido, os cenários estão sempre, inevitavelmente, no plural. São cenas, comumente entre três e quatro, que buscam compreender o maior espectro possível de alternativas.

Ainda que o documento disponibilizado ao público não explique os meandros da sua elaboração, diversas inconsistências metodológicas podem ser depreendidas, das quais destacamos duas. A primeira delas é a noção de “cenário foco”. O relatório afirma não ser um exercício de adivinhação, no entanto, apresenta apenas uma possibilidade de futuro. Os mini cenários são elementos de uma única cena. O general Rocha Paiva, coordenador do projeto, explica que este cenário foi escolhido por ser o mais provável. Definir um desenvolvimento futuro como mais provável, assim como o único a ser comunicado, contradiz diretamente tanto o objetivo deste tipo de instrumento – ampliar as possibilidade e alternativas -, quanto a afirmação dos próprios elaboradores de que não buscam prever o futuro. Ademais, incorre-se no risco de meramente projetar para o futuro a conjuntura presente.

A ideia de probabilidade conduz à segunda inconsistência metodológica: como a probabilidade foi mensurada? O general que coordenou o projeto revela duas etapas deste processo, uma consulta realizada no interior dos ministérios, sem especificar quais, e outra mais ampla, com a participação de dois a três mil respondentes, de acordo com o que informou. Não fica claro, no entanto, como essas consultas foram feitas, quem participou, qual peso foi dado para cada resposta e como foi possível depreender a probabilidade de futuro a partir da percepção deste grupo, posteriormente filtrada pelos elaboradores do documento final. Rocha Paiva também informa que antes de indicar a hipótese mais provável os respondentes deveriam ler uma explicação, que denominou de “ambientação”, uma vez que nem todos os participantes conheciam todos os temas.

De pronto é possível questionar em que medida este texto explicativo influenciou a resposta dos consultados. Assumir a impressão de um grupo, cujas características desconhecemos, como método de mensurar probabilidade faz com que posicionamentos políticos, morais e possíveis preconceitos sejam descritos e apresentados como fatos, legitimado pelo que denominam no documento de “métodos consagrados”. Ademais, relatórios de cenários prospectivos são convencionalmente informados e introduzidos por ampla pesquisa acadêmica, levantamento de dados e bibliografia especializada, o que não se faz presente no documento e na apresentação deste projeto.

Por fim, construir cenários prospectivos é um exercício intrinsecamente normativo e, mais que em outras atividades acadêmicas, não existe neutralidade. Os autores do Projeto de Nação, no entanto, não explicitam essa limitação, pelo contrário, partem do pressuposto de que falam pela nação, entendendo que “significativa parcela do povo [brasileiro] hoje se identifica como conservador e liberal” (Sagres, 2022, p. 12). Essa assertiva, no entanto, é contestável. O “povo brasileiro” é plural e reduzi-lo a uma única visão de mundo, que ademais não ressalta as especificidades das minorias, é sintomático de autoritarismo. O problema não é elaborar cenários a partir de um ponto de vista conservador, mas apresentar esta visão como sendo a opção do “povo brasileiro”. A retórica de “povo” é contraditória também por ser conectada com um elitismo explícito, expresso na defesa dos interesses do agronegócio, que deveria ser estimulado e protegido “como fator estratégico de segurança alimentar global e nacional” (Sagres, 2022, p.37). A seguir, apresentamos outros indícios de autoritarismo embutidos no documento e convidamos a todos a refletirem sobre nossos contrapontos em alguns dos aspectos críticos deste projeto.

As contradições e o autoritarismo expressos no Projeto de Nação

Existem diversas contradições e problemáticas explícitas no texto divulgado pelo Instituto General Villas Bôas. Nesta sessão, analisamos aquelas presentes nas visões sobre o sistema internacional, a proteção da Amazônia, a educação e a segurança pública. Existem dois pontos da concepção sobre a ordem internacional explicitada que merecem destaque: a visão de rivalidade entre grandes potências e o combate ao globalismo. No primeiro caso, embora o diagnóstico não seja impensável, considerando as atuais disputas protagonizadas por China e Estados Unidos, o mesmo é naturalizado e parece haver resignação do papel do Brasil como potência média, desvalorização da diplomacia e subestimação da capacidade brasileira em promover consensos internacionais. Já o uso da palavra globalismo é sintomático: trata-se de um termo não acadêmico, mobilizado pela nova direita global, para entre outros pontos, se contrapor ao avanço transnacional de pautas progressistas relativas à proteção do meio-ambiente e aos direitos das mulheres e de populações LGBTQI+. O documento propõe, portanto, uma continuidade da política externa do governo Bolsonaro ainda que mais pragmática em relação à China – como defende o vice-presidente.

No que se refere à Amazônia, o projeto explicita a necessidade de aumentar a produção do agronegócio, da mineração e reduzir as legislações que protegem o meio ambiente e as terras indígenas. As forças armadas têm, historicamente, defendido o argumento de que a região amazônica precisa ser “integrada” ao Estado brasileiro, na premissa de que é um “vazio”, servindo como uma espécie de fronteira final brasileira que precisa ser garantida pelo braço forte e mão amiga, já que os povos originários não fazem parte da Pátria pensada dentro dos espaços militares, deixando um espaço desocupado pelo Estado, vulnerável às “cobiças internacionais”. A aversão militar à demarcação de terras indígenas é palpável, já tendo sido caracterizada como “irresponsável e caótica” pelo atual ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Heleno, quando era comandante de tropas na Amazônia. A defesa da ocupação das terras por meio do agronegócio e mineração, em evidente agressão às comunidades que vivem no território – poucas semanas após uma criança Yanomani ter sido estuprada e assassinada por garimpeiros e indígenas de sua aldeia terem sido forçados a fugir – é apresentada no projeto como uma diretriz de Defesa Nacional. Esta diretriz não é apenas autoritária: é genocida.

Os autores do projeto consideram que o ambiente escolar estava promovendo agressões físicas, mentais e psicológicas contra as crianças e adolescentes por meio de ideologias perpetradas por educadores. Este quadro não encontra nenhum respaldo com os fatos da realidade brasileira. Mais de 70% dos assassinatos de crianças abaixo de nove anos são cometidos por pessoas conhecidas das vítimas, em sua maioria, no ambiente doméstico ou nas ruas. Ainda, mais de 60% dos casos de estupro e violência sexual de jovens ocorrem dentro das casas, e mais de 80% dos criminosos são pessoas conhecidas – familiares e pessoas próximas à família. Políticas públicas de educação sexual, saúde e conscientização nas escolas protegem as crianças e jovens da agressão. Quanto ao ensino superior, defende-se a cobrança de mensalidade nas universidades públicas, com justificativa pouco evidente.

Segundo o projeto, o problema não é o orçamento, e sim a gestão. Neste sentido, indica-se a necessidade de aprimorar a gestão por meio do controle sobre a escolha dos reitores, prática já adotada pelo atual governo federal, evidenciando ainda mais o teor autoritário do documento. Ademais, há um explícito ataque à autonomia acadêmica e de cátedra, ao acusar as instituições públicas de ensino superior de suposta ideologização. Recentemente, argumentos, frequentemente infundados, sobre má gestão e imposição de pensamento doutrinário tem sido mobilizados politicamente para descredibilizar as instituições de ensino e pesquisa do país, como justificativa para redução orçamentária e deslegitimação de críticas ao governo federal [1] [2] [3]. De forma correlata, ao longo de todo o documento, políticas de educação e pesquisa são restritas a áreas consideradas estratégicas, o que abre espaço para punição a setores mais politicamente engajados, assim como um foco exclusivo na pesquisa aplicada, em detrimento da pesquisa básica.  Gratuidade do ensino e autonomia universitária são pilares do ensino público e de qualidade país, cuja reforma pode, e deve ser feita de forma democrática, plural e inclusiva.

No texto afirma-se que, na segurança pública, o crime organizado prosperava no país devido à leniência política em vitimizar criminosos, algo já registrado, por exemplo, na documentação oficial da Intervenção Federal no Rio de Janeiro, sob comando do General Braga Netto. O discurso de que é preciso ser mais agressivo é de longa-data no país, porém a realidade brasileira é de alto punitivismo, como mostram os altos índices de encarceramento, e de estratégias violentas de combate ao crime organizado e narcotráfico, retratadas pelas operações letais constantes em favelas e periferias que não resolvem a criminalidade, e aumentam o número de mortes de policiais e civis, em sua maioria, jovens negros.

Ainda, o projeto defende a maior autonomia das Polícias Militares e o estreitamento de suas relações com o Exército. Atualmente, há um projeto em discussão e revisão na Câmara dos Deputados, cujo relator é capitão Augusto (PL), que busca garantir maior autonomia às PMs, a fim de blindar a corporação. O vice-presidente, general Mourão, concorda com essa ideia geral, desde que mantendo o cargo de generalato restrito às forças armadas, para que a hierarquia seja mantida. Além disso, o Projeto afirma que há preconceito com Policiais Militares ocupando cargos políticos.  Não se trata de preconceito, e sim, de uma premissa democrática básica: profissionais que exercem função policial e militar, especializados no uso de armas e comando de tropas não devem assumir cargos políticos enquanto estiverem na ativa ou imediatamente após serem transferidos para a reserva. É preciso um distanciamento, temporal e espacial, entre a profissão armada e a esfera política, pois esta é uma arena de diálogo e negociações, e não há como negociar sob ameaça das armas. Todo este movimento indicado no projeto caminha na direção contrária à assertividade civil sobre as forças de segurança no país, que já se encontra gravemente debilitada.

Na cerimônia de lançamento, o general Rocha Paiva apresentou o Projeto de Nação e perguntou se “alguém não quer este Brasil?”. Respondemos, sonoramente, que este Brasil não nos interessa. Nos interessa um Brasil democrático, plural, diverso, popular e soberano, pensado e dialogado livremente por todos que nele habitam.

 

* Mariana Janot é doutoranda no Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp/Unicamp/PUC-SP). Bolsista CAPES. Contato: mariana.janot@unesp.br.

**David Succi Júnior é doutorando no Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp/Unicamp/PUC-SP).

***Lívia Peres Milani é pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp/Unicamp/PUC-SP). Contato: livialpm@gmail.com. Bolsista Capes-PrInt.

****Samuel Alves Soares é professor associado da Universidade Estadual Paulista e do Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp/Unicamp/PUC-SP).

Os quatro autores são membros do Grupo de Elaboração de Cenários Prospectivos, vinculado ao Gedes.

Imagem: Divulgação do Projeto de Nação: o Brasil em 2035. Disponível em Portal Gov.br.

 

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______. Pele alvo: a cor da violência policial. 2021. Disponível em: <http://observatorioseguranca.com.br/wordpress/wp-content/uploads/2021/12/RELATORIO_REDE-DE-OBS_cor-da-violencia_dez21_final.pdf>

Sagres, Instituto. Projeto de Nação – Cenário Prospectivos Brasil 2035 – Cenário Foco – Objetivo, Diretrizes e Óbices. ISBN: 978-85-53117-02-4. Brasília, 2022.

Succi Jr., David. Gontijo, Raquel. Soares, Samuel (org). O futuro da universidade pública e da ciência no Brasil em 2040. São Paulo: Editora Unesp, 2022. Disponível em: <http://editoraunesp.com.br/catalogo/9786557140666,o-futuro-da-universidade-publica-e-da-ciencia-no-brasil-em-2040>

Teixeira, Pedro. Mourão: “Relação Brasil-China sempre foi de alto nível”. Brasília: CNN, 23 de maio de 2022. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/mourao-relacao-brasil-china-sempre-foi-de-alto-nivel/>

Tenente, Luiza. Reitores eleitos nas universidades federais e não empossados por Bolsonaro criticam ‘intervenções’ do governo. Educação: G1. 07 de dez. de 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/12/07/reitores-eleitos-nas-universidades-federais-e-nao-empossados-por-bolsonaro-criticam-intervencoes-do-governo.ghtml>

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A violência de gênero contra as populações indígenas: a outra face do desenvolvimento neoextrativista

Helena Salim de Castro*

 

Nos últimos dias, ganhou destaque nas redes sociais as denúncias de líderes indígenas Yanomami sobre o abuso e a violência sexual contra meninas e adolescentes cometidos por homens envolvidos na atividade do garimpo ilegal. O presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana, Júnior Hekurari Yanomami, denunciou em sua conta no Twitter que uma menina, de 12 anos, foi violentada até a morte e outra, de quatro anos, está desaparecida após uma invasão de garimpeiros na comunidade Aracaçá, em Roraima.

A denúncia se soma a tantos outros abusos perpetrados contra a população há anos. No começo do mês de abril, foi divulgado um relatório produzido pela Hutukara Associação Yanomami sobre violações sexuais cometidas por garimpeiros contra adolescentes no ano de 2020. Além da destruição ambiental, eles deixaram um rastro de proliferação de doenças sexualmente transmissíveis. Esse cenário de violência não acomete apenas o povo Yanomami, mas muitas outras populações tradicionais e comunidades rurais pelo país. 

Os conflitos por terra não são uma novidade no Brasil. No entanto, como retrata o projeto Mapa dos Conflitos, da Agência Pública de Jornalismo Investigativo em parceria com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), na última década houve uma acentuação das ocorrências de conflitos no campo, particularmente na Amazônia Legal. Eles ocorrem em um contexto em que são perpetradas atividades depredadoras da natureza como queimadas, desmatamentos, mineração, entre outros. Não só naquela área, mas por toda a América Latina, a concentração de terras, herança da colonização, e a adoção de um modelo de desenvolvimento neoextrativista estão por trás de muitos dos conflitos, que são, por sua vez, atravessados por elementos de gênero. 

Segundo Maristella Svampa (2019, o. 33), o neoextrativismo “pode ser caracterizado como um modelo de desenvolvimento baseado na superexploração de bens naturais […], assim como na expansão das fronteiras de exploração para territórios antes considerados improdutivos do ponto de vista do capital”. A diferença com o “extrativismo clássico” estaria no fato de que, naquele, os fundos arrecadados com a atividade extrativista e a exportação dos bens primários seriam “invertidos em políticas sociais redistributivas para combater a pobreza” (MUNOZ C., 2013, p. 120, tradução própria). Para a socióloga argentina, esse modelo foi aplicado na América Latina no início do século XXI. Os países da região, muitos governados por lideranças progressistas, aprofundaram e incentivaram uma política de desenvolvimento sustentada na exportação de bens primários – o que a autora chamou de “Consenso das Commodities” (SVAMPA, 2019). 

Após anos colhendo os lucros econômicos dessa política, a região estaria vivendo, atualmente, a terceira fase do modelo[1], denominada por Svampa (2019) como a da “exacerbação do neoextrativismo”. Essa fase, que teria se iniciado a partir de 2013-2015, é marcada pela queda dos preços das commodities. Para fazer frente a essa instabilidade econômica, os governos latino-americanos têm impulsionado ainda mais os projetos extrativistas e aprofundado a reprimarização das economias nacionais. Somam-se a esse cenário o declínio da hegemonia progressista e uma reconfiguração política na região, com a ascensão de governos conservadores e alinhados à direita. No Brasil, essa mudança política resultou, dentre outras perdas de direitos, no desmantelamento das instituições responsáveis pela fiscalização das áreas ambientais e na diminuição dos recursos e esforços para o enfrentamento da violência no campo

Tais processos se refletem no aumento dos conflitos socioterritoriais e no crescimento da violência estatal e paraestatal, a qual é dirigida, muitas vezes, contra os corpos das mulheres e outros sujeitos feminizados. Além de agressões físicas e lesões corporais, as mulheres, nesses contextos de conflitos no campo, são vítimas de assédio moral e violação sexual, principalmente quilombolas e dos povos originários. O histórico de colonização e exploração dos territórios, corpos e subjetividades de indígenas e afrodescendentes estrutura a violência contra as mulheres latino-americanas. Elas são duplamente subjugadas – por preconceitos de gênero e raça/etnia – e, com isso, consideradas menos humanas, inferiores diante da imagem do homem branco e ocidental, apresentado como o ser racional e superior. A violência sobre essas mulheres, principalmente a de cunho sexual, é, portanto, invisibilizada em um contexto de masculinização do território e justificada como prática estruturante de um modelo de desenvolvimento patriarcal e liberal. 

Svampa (2019) chama atenção para a histórica relação entre atividades extrativistas, masculinização dos territórios e reforço do patriarcado. Em um cenário em que há uma concentração da população masculina, atividades como a prostituição e o tráfico de mulheres são concebidas como naturais, invés de inseridas em um contexto de problemas sociais e econômicos. Ademais, há reforço de um ambiente de desigualdade de gênero, marcado pela não valorização do trabalho doméstico, assimetrias salariais e o fortalecimento do que seria considerado a atribuição das mulheres, vistas como cuidadoras do lar (SVAMPA, 2019). 

No intuito de expandir as fronteiras do extrativismo, a violação sobre os corpos das mulheres também adquire uma função instrumental. Além das mortes diretas e a transmissão de doenças, os abusos e as violações podem gerar rupturas no tecido comunitário, com o enfraquecimento do papel ancestral das mulheres, e o abandono das terras. A comunidade Aracaçá, por exemplo, foi queimada após as denúncias do estupro e da morte da menina de 12 anos. De acordo com lideranças indígenas, é uma tradição dessa população abandonar o território após a morte de alguém. No entanto, até o momento não se tem confirmação sobre as causas do incêndio e para onde foram e se estão seguras as mais de 20 pessoas que viviam na comunidade. 

O terror propagado pela presença e as ações dos garimpeiros nesses territórios gera o deslocamento forçado dos povos. O abandono das terras abre espaço, por sua vez, para a exploração realizada pelo capital nacional e transnacional em nome do ideal de desenvolvimento moderno-liberal – no qual o desenvolvimento é concebido como um processo linear em busca do crescimento econômico. A violência sobre os corpos das mulheres adquire, portanto, amplos significados no contexto dos conflitos socioterritoriais. Não é uma mera consequência de um cenário de disputas. Sob uma lógica patriarcal e colonial a respeito dos corpos e das subjetividades de alguns atores, as violações se constituem como práticas estruturantes do modelo de desenvolvimento neoextrativista e de uma ordem social patriarcal. Como resume Hernández Castillo (2017, p. 36, tradução própria), a violação dos territórios dos povos indígenas e campesinos produz “deslocamentos que deixam suas terras ‘livres’ para o capital. Nessa investida de violência e desapropriação, os corpos das mulheres têm se convertido também em territórios para ser invadidos e violados”. 

* Helena Salim de Castro é doutora e mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisadora do IARAS – Núcleo de Estudos de Gênero do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES-UNESP); e do Núcleo de Estudos Transnacional de Segurança (NETS – PUC-SP).

Imagem: Garimpo ilegal no Pará. Por: Ibama.

[1] A primeira fase compreende o período entre 2003 e 2008-2010, denominada como “fase da positividade”. A segunda seria a da “multiplicação dos megraprojetos”, compreendendo o início da segunda década dos anos 2000. Para maior aprofundamento, consultar Svampa (2019).

 

Referências bibliográficas:

HERNÁNDEZ CASTILLO, R. A. Confrontando la Utopía Desarrollista: El Buen Vivir y la Comunalidad en las luchas de las Mujeres Indígenas. In: VAREA, Soledad; ZARAGOCIN, Sofía (Comp.). Feminismo y Buen Vivir: Utopías Decoloniales. PYDLOS Ediciones, Cuenca: Ecuador. 2017, p. 26 – 43. ISBN: 978-9978-14-355-1

MUNOZ C., María José. El conflicto en torno al Territorio Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure: Un conflicto multidimensional. Cultura representaciones soc, v. 7, n. 14, p. 67-141, 2013. Disponível em: http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2007-81102013000100004&lng=es&nrm=iso. 

SVAMPA, Maristella. As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: conflitos socioambientais, giro ecoterritorial e novas dependências. Tradução de Lígia Azevedo. São Paulo: Elefante, 2019. 192 p.  ISBN: 978-85-93115-45-5