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Dia Internacional da Mulher Africana: rompendo silêncios e fortalecendo resistências

Maria Eduarda Kobayashi Rossi*

Lorena dos Santos Roberts**

Kimberly Alves Digolin***

 

No dia 31 de julho é celebrado o Dia Internacional da Mulher Africana. A data foi criada em alusão à Conferência das Mulheres Africanas, que ocorreu em 1962, na cidade de Dar Es Salaam, na Tanzânia. Nessa data também foi criada a Organização das Mulheres Pan Africanas (PAWO[1]), um movimento transnacional de mulheres que objetiva contribuir para a promoção da igualdade de gênero, lutando pelo fim do colonialismo, das diversas discriminações e das injustiças sociais sobre as mulheres. Neste texto, discorreremos sobre o fortalecimento dos feminismos no continente africano e sua relação com a expansão do movimento pan-africanista. Em seguida, abordaremos o papel das mulheres nos processos de paz, bem como os desafios enfrentados por elas nas sociedades contemporâneas. De modo complementar, trataremos do apagamento da África nas Relações Internacionais e, por fim, apresentaremos alguns exemplos dos movimentos em prol dos direitos das mulheres no continente.

A campanha deste ano, em comemoração aos 60 anos da PAWO, convida a comunidade regional e internacional a uma reflexão acerca da participação feminina no desenvolvimento social e econômico, acrescentando temas como a insegurança alimentar e a violência nas sociedades contemporâneas (UNIÃO AFRICANA, 2022a). Almeja-se, também, debater sobre os avanços e retrocessos dos esforços para a equidade de gênero no continente, principalmente por meio da discussão sobre o recente relatório publicado pela organização e intitulado The African Women’s Decade: Grassroots Approach to Gender Equality and Women’s Empowerment (UNIÃO AFRICANA, 2022b), o qual foi elaborado como um esforço de coordenação das atividades e objetivos, para impulsionar a implementação de políticas públicas e programas destinados ao alcance da equidade de gênero e empoderamento das mulheres[2].

É importante ressaltar que a origem da PAWO, bem como o fortalecimento dos feminismos em África, está alinhada à expansão do movimento pan-africanista no continente (SANTOS, 2021). Este movimento tem como missão promover a união dos povos africanos para conquistar não apenas a independência formal com o processo de descolonização, mas também a libertação das amarras do colonialismo e das consequências destrutivas e predatórias que ele traz às sociedades africanas (BELLUCCI, 2010; HARRIS, ZEIGHDOUR, 2010). Um dos grandes marcos desse movimento é a criação da Organização da Unidade Africana (OUA), em 1963, que precedeu a criação da União Africana na Conferência de Durban, no ano de 2002.

Conforme a cronologia organizada por Blenda Santos (2021b), é possível perceber que, embora a participação e a representação das mulheres nos processos políticos tenham aumentado com o passar do tempo, as suas resistências e ativismos sempre estiveram presentes, exercendo papéis essenciais nos processos de (re)construção da paz. A importância de incluir as mulheres nesses processos políticos está associada ao fato de que as crises em África não estão baseadas apenas em aspectos militares ou elementos transitórios. São resultantes também, e talvez principalmente, de questões estruturais políticas, econômicas e socioculturais. Sob essa perspectiva, a inclusão das mulheres promove mais atenção a aspectos que costumam ser ignorados nos processos de paz, tendo em vista a reprodução das hierarquias de gênero no microcosmo comunitário, a qual promove impactos distintos entre homens e mulheres que presenciam uma mesma situação de crise. A participação das mulheres locais reforça um olhar crítico sobre o bem-estar social, que não apenas amplia o debate sobre as raízes das crises, mas também sobre os meios necessários para garantir respostas mais abrangentes e sustentáveis.

No entanto, as mulheres em África convivem com uma sobreposição de violências, não apenas oriundas das divisões de gênero, mas também baseadas em termos culturais e de nacionalidade. Isso porque, em um sistema internacional marcado por hierarquias, a África ainda é largamente considerada um território a ser tutelado. Em outras palavras, em meio a uma lógica binária que coloca os Estados Unidos e a Europa como centros desenvolvidos e democráticos, a caracterização da África, muitas vezes, é estabelecida como o contraponto atrasado, bárbaro e incapaz.

Dentro desse estereótipo, as intervenções externas são frequentemente legitimadas sob a alcunha de uma ação humanitária em prol da democracia e da liberdade em África; um dever dos países entendidos como mais desenvolvidos em garantir a paz e a segurança internacional. Entretanto, conforme vimos anteriormente, essas ações não costumam levar em consideração as demandas locais, muitas vezes mascarando as verdadeiras raízes dos problemas ou, ainda, acrescentando elementos que dificultam uma solução duradoura e sustentável para as crises.

Ademais, essas ações externas frequentemente reforçam a marginalização das mulheres africanas em relação aos processos políticos de (re)construção da paz. Tal fato pode ser percebido tanto pela estereotipificação das mulheres africanas – as quais são sexualizadas e subalternizadas –, quanto pela marginalização dos feminismos africanos[3]. Segundo Oyěyùmí (2004), a “hegemonia cultural euro-americana” promove uma racialização do conhecimento que desconsidera, inferioriza e/ou generaliza as realidades em África e, de modo ainda mais acentuado, as experiências das mulheres africanas. Em suma, o que se nota é um conjunto de violências que, embora se sobreponham, originam-se em uma mesma visão hierárquica da divisão de poder, que busca silenciar a história da África e subtrair a participação ativa das mulheres africanas na tomada de decisão política.

Em meio a essa conjuntura, existem diversos movimentos ativos em África que buscam lutar contra a sub-representação feminina nos espaços políticos e decisórios. Durante os anos 1980, diversas teóricas africanas, bem como mulheres negras e indígenas imigrantes no Ocidente, impulsionaram o questionamento dentro do movimento feminista, trazendo para debate questões referentes não apenas às diferenças entre mulheres e homens, mas também entre as mulheres que não se enquadravam no padrão ocidental; ou seja, mulheres de diferentes raças/etnias, religiões, classe social, orientação sexual e geração (SILVA, 2018).

Silva (2018) demonstra que foi no contexto das independências dos países africanos, além do processo de modernização e construção da identidade nacional, que se verificou o fortalecimento de movimentos de emancipação das mulheres africanas. Concomitantemente, percebe-se o aumento no número de trabalhos que traziam como principais temas: colonialismo, masculinidades, casamentos e relações de parentesco, associação de mulheres e lutas nacionalistas, reconfiguração de papéis de gênero, entre outros. De modo geral, as independências dos países africanos deram espaço para uma rearticulação da sociedade civil, trazendo como consequência o surgimento de novos movimentos sociais que desafiam as estruturas e as especificidades das sociedades africanas.

Segundo Casimiro (2014, p. 75-76, apud GASPARETTO, 2017, p. 8) os movimentos de mulheres e feminismos africanos surgem a partir de quatro frentes: “1) o movimento endógeno de mulheres nas sociedades africanas; 2) a resistência anticolonial; 3) os movimentos de libertação nacional; e 4) os grupos de mulheres profissionais e acadêmicas, com independência econômica”.

A emergência desses movimentos de mulheres foi fundamental na inserção da mulher africana nos debates teóricos, enfatizando a necessidade de um olhar minucioso de suas realidades, bem como questionando suas culturas e tradições sem desmerecê-las, mas sim buscando entender o lugar que a mulher ocupa nessas estruturas.

Esses movimentos questionaram os paradigmas de desenvolvimento conservadores e conformistas, confrontando-os com o resgate da história das mulheres sem cair nos erros da corrente central da historiografia africana, que desconsidera as especificidades das experiências e as diversidades das mulheres desses países (CASIMIRO, 2014 apud Gasparetto, 2017, p. 389).

Entre os movimentos em prol da equidade de gênero e dos direitos das mulheres em África, alguns se destacam. O MULEIDE é uma organização não-governamental moçambicana, criada em 1991, com o objetivo de combater a violência baseada no gênero e eliminar o desequilíbrio de oportunidades de acesso ao progresso socioeconômico entre homens e mulheres. O principal grupo alvo desta organização são as mulheres em situações de vulnerabilidade, mas também trabalha com homens vítimas de violências baseadas no gênero e crianças que são vítimas de violência sexual e de outros problemas sociais.

Em mesma medida, o FÓRUM MULHER é uma rede de organizações não-governamentais de direito privado e sem fins lucrativos, fundada em 1993, a partir de uma perspectiva feminista. Seu principal objetivo é mediar a relação entre sociedade civil e o Estado no que diz respeito à formulação e aplicação de políticas governamentais, bem como o fortalecimento de organizações que lutam pela garantia dos direitos das mulheres. Esta organização busca promover transformações nas práticas socioculturais que inferiorizam as mulheres, tendo como denominador comum o respeito pelos direitos humanos e a melhoria da posição da mulher na sociedade.

Por fim, podemos destacar o trabalho desenvolvido pelo MULHERES EM MOVIMENTO. Trata-se de uma estratégia regional da CARE, lançada em 2016, que tem como objetivo emancipar econômica e socialmente mulheres e meninas na África Ocidental por meio de grupos de poupança, de tal modo que elas se tornem sujeitos mais ativos na sociedade fazendo valer seus direitos básicos e impulsionando a transformação social nos níveis familiar, comunitário e social.

Tais movimentos têm se mostrado necessários para a garantia dos direitos das mulheres, bem como para a sua emancipação e inserção nas diversas esferas da sociedade. O Dia Internacional da Mulher Africana ajuda a trazer visibilidade a esses movimentos e impulsionar o engajamento coletivo para concretizar o objetivo comum a todos os projetos aqui apontados: garantir o fim das violências contra as mulheres e a elaboração de políticas eficazes que promovam a equidade social. Em suma, a data cumpre um importante papel para evitar o apagamento da história das mulheres em África, bem como destacar a luta coletiva contra o silenciamento dessas mulheres em meio a estruturas hierárquicas marcadas pela desigualdade e pela violência.

 

* Maria Eduarda Kobayashi Rossi é graduanda em Relações Internacionais pela UNESP. Pesquisadora do GEDES e bolsista FAPESP (processo 2021/04480-3). Contato: eduarda.kobayashi@unesp.br

** Lorena dos Santos Roberts é graduanda em Relações Internacionais pela UNESP. Pesquisadora do Núcleo de Estudo de Gênero Iaras-Gedes. Contato: lorena.roberts@unesp.br

***Kimberly Alves Digolin é professora de Relações Internacionais na Universidade Paulista, mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, Puc-SP) e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Iaras-GEDES. Contato: kimberly.alves.digolin@gmail.com

Imagem: Rede de Mulheres Líderes Africanas. Por: ONU Mulheres/ Flickr.

Notas:

[1] A sigla refere-se ao termo “Pan-African Women’s Organization”.

[2] Vale pontuar que muitos dos projetos são financiados pelo Fundo da União Africana para a Mulher Africana, o qual é essencial para a implementação das propostas previstas nos planos estratégicos da União Africana, principalmente para o alcance dos objetivos previstos na Agenda 2063: A África que queremos (UNIÃO AFRICANA, 2015).

[3] Para mais informações, recomendamos a seguinte leitura: GONZÁLEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Editora Zahar. 2021.

Referências bibliográficas

BELLUCCI. O Estado na África. Revista Tempo do Mundo, v. 2, n. 3, p. 9-43, 10 dez. 2010. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/revistas/index.php/rtm/article/view/110>. Acesso em 27 de julho de 2022.

CARE. Mulheres em movimento. Disponível em: https://www.care.org/pt/our-work/education-and-work/microsavings/women-on-the-move/

FÓRUM MULHER. Quem somos. Disponível em: https://forumulher.org.mz/quem-somos/

GASPARETTO, Vera Fátima; AMÂNCIO, Helder Pires. Gênero e feminismos em África: temas, problemas e perspectivas analíticas. Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women ‘s World Congress (Anais Eletrônicos), 2017. Disponível em: http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1499218752_ARQUIVO_GeneroefeminismosemAfrica_VeraeHelder.pdf

GASPARETTO, Vera Fátima. perspectivas feministas africanas e organizações de mulheres em Moçambique. Paz na terra, guerra em casa: feminismos e organizações de mulheres em Moçambique. CASIMIRO, Isabel. Série Brasil &  África- Coleção Pesquisas 1, Pernambuco: Editora da UFPE: 2014, 376. Revista Estudos Feministas  [en linea]. 2017. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/381/38149070024.pdf

HARRIS, ZEIGHDOUR. A África e a diáspora negra. In: MAZRUI, WONDJI Edits. História geral da África VIII: África desde 1935. Brasília, UNESCO. 2010. pp. 849-872.

JESUS, Blenda Santos de. Entre ativismos e pan-africanismos: “travessias” internacionais de mulheres negras. Orientador: Victor Coutinho Lage. 2021 a. 131 f. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2021.

JESUS, Blenda Santos de. Pan Africanismo em 125 anos: uma perspectiva de gênero. Nexo Políticas Públicas.  2021 b.Disponível em: <https://pp.nexojornal.com.br/linha-do-tempo/2021/Pan-africanismo-em-125-anos-uma-perspectiva-de-g%C3%AAnero>.  Acesso em 26 de julho de 2022.

MULEIDE. Mulheres em ação. Disponível em: https://www.muleide.com.

OYĚWÙMÍ, Oyèrónké. Conceptualizing Gender: The Eurocentric Foundations of Feminist Concepts and the challenge of African Epistemologies. African Gender

SALAMI, Mina. Uma breve história do feminismo africano. Tradução de Áurea Mouzinho. Ondjango Feminista. 10. apr. 2017. Disponível em:  https://www.ondjangofeminista.com/txt-con/2017/4/10/uma-breve-histria-do-feminismo-africano

Scholarship: Concepts, Methodologies and Paradigms. CODESRIA Gender Series. Volume 1, Dakar: CODESRIA, 2004.

SILVA, Tatiana Raquel. Lutas e formas de organização feminina em África: considerações sobre Guiné-Bissau, Moçambique e Cabo Verde. Revista de Políticas Públicas. 2018.

TELO, Florita Cuhanga António. O Pensamento Femnista Africano e a Carta dos Princípios Feministas para As Feministas Africanas. Seminário Internacional Fazendo Gênero, 11 e 13th Women ‘s World Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017. Disponível em: http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1498445384_ARQUIVO_ArtigoCompleto_Florita.pdf

Recomendações

Acervo: bibliografia de mulheres africanas UFRS. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/africanas/pesquisar-acervo/>. Acesso em 26 de julho de 2022.

Dicionário de teorias feministas do Iaras – Núcleo de Estudos de Gênero do GEDES, especialmente o “feminismo negro”. Disponível em: <https://gedes-unesp.org/feminismo-negro/#teoriasfeministas>. Acesso em 27 de julho de 2022.

Ted Talks: To change the world, change your illusions, por Minna Salami . Disponível em: <https://youtu.be/PiVB5niLrWg>. Acesso em 26 de julho de 2022.

Revista: Feminist Africa Issue. Disponível em: <https://feministafrica.net/>. Acesso em 26 de julho de 2022.

Participação de atores humanitários em zonas de conflito: emergência e risco na Etiópia   

Beatrice Daudt Bandeira*

 

O governo central da Etiópia anunciou em 28 de junho de 2021 um “cessar-fogo unilateral” à uma escalada de hostilidades e violência que se estende desde novembro de 2020 no Tigré. A região foi destaque durante os últimos meses pelas ofensivas cometidas em consequência de disputas políticas e étnicas, principalmente entre os grupos oromo – o maior do país – e os tigrínios. O conflito teve início quando o governo do primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, no poder desde 2018, membro da etnia oromo – que já era suspeito de perseguição pela representação Tigré –, acusou a Frente de Libertação dos Povos do Tigré (FLPT), partido político que já desempenhou grande influência no país, de atacar e roubar equipamentos bélicos do governo central. A partir de então, foi deliberado o início de uma sequência de ofensivas militares entre os dois lados e suas forças aliadas – principalmente grupos de milícias e forças da Eritreia aliadas ao governo etíope.

A invasão do Tigré pelas forças de Abiy Ahmed em novembro de 2020 gerou preocupação entre diversos líderes mundiais, como António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas e o Papa Francisco, além de organizações regionais como a União Africana – cujo acionamento do Conselho de Paz e Segurança foi rejeitado pelo próprio governo central da Etiópia, que faz parte da organização e é membro do Conselho, sob o argumento de ferir sua soberania nacional. No Conselho de Segurança das Nações Unidas as discussões também não resultaram em decisão comum entre os Estados membros para qualquer ação efetiva sobre o que acontece entre os grupos beligerantes.

Em poucos meses, o conflito entre o governo etíope e a FLPT resultou em uma crise de larga escala. São mais de 350 mil pessoas em situação catastrófica de fome, milhares de refugiados etíopes, que se abrigam principalmente no Sudão, e assassinatos de civis. De forma a agravar ainda mais este cenário, entre novembro de 2020 e abril de 2021, período de maior intensificação do conflito, o acesso de trabalhadores humanitários às vítimas esteve constantemente restringido, principalmente pelo governo etíope. A restrição de funcionamento das redes de comunicação (principalmente internet e telefone) na província do Tigré ainda é, nos dias de hoje, mais uma problemática para as operações humanitárias.

O temor de episódios de violência e de se expor a esta situação de insegurança são fatores também prejudiciais para as atividades de atores humanitários no conflito. No dia 25 de junho, por exemplo, a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) foi alvo de ataques que resultaram na morte de três de seus colaboradores na região do Tigré. Outro exemplo aconteceu em 28 de junho contra as instalações do Unicef na cidade de Mekele, capital da província do Tigré. Esse tipo de violência evidencia o risco para trabalhadores humanitários na região; a perda de alcance dos serviços prestados, com foco no bem-estar da população vulnerável; e a limitação do potencial de um mapeamento mais extenso que permitiria, em outras circunstâncias, uma melhor compreensão da realidade em todo o território.

Além do MSF e do Unicef,  o trabalho de atores humanitários internacionais na região – como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, dentre outros – se traduz em atividades de atendimento e proteção do bem-estar da população necessitada. Para que isso aconteça, portanto, é fundamental evitar e responder ao sofrimento humano; atuar de forma ética perante as consequências diretas do conflito sem discriminação de gênero, raça, etnia, religião, ou qualquer outra distinção; e não estar sujeitos aos arranjos de teor político, econômico, militar, ou outros interesses diretos no conflito, que não o de salvar vidas.

Por outro lado, mesmo que sejam essas as expectativas de impacto positivo que podem surgir da ajuda humanitária internacional, o desprezo dos grupos beligerantes – grupos ofensivos estatais e não-estatais – às normas do Direito Internacional Humanitário, no Tigré, leva o debate para outro rumo. Mostra que, durante o período de maior iminência de hostilidade, para quem deliberou sobre os ataques e esteve à frente das ofensivas, a proteção de civis não foi uma prioridade. Logo, o acesso irrestrito de organizações humanitárias ao território da região do Tigré, a segurança dos trabalhadores humanitários e a proteção de civis passaram ao largo da preocupação vital no conflito.

Desde o início da guerra, os ataques deliberados contra civis tornaram a situação humanitária ainda mais preocupante. O Tigré fica na região mais ao norte da Etiópia, fazendo fronteira com o vizinho Eritreia, que enxergava a FLPT há tempos como uma ameaça potencial. De forma a complicar ainda mais as tensões, a participação de forças militares da Eritreia, aliada ao governo do etíope Abiy Ahmed – que ganhou o Nobel da Paz em 2019 justamente por contribuir para as negociações de paz entre os dois países -, no caso do Tigré, ocasionou uma escalada de acusações sobre seu envolvimento em violência e violações de direitos humanos, incluindo assassinatos, agressões sexuais e morte por fome de civis na região.

Diante da crise instalada, é impensável desviar a atenção dos oito meses de violência constante contra civis e bloqueio de rotas para abastecimento e fornecimento de ajuda humanitária. Com todos estes fatores, a questão agora é saber se os responsáveis pelas atrocidades e graves violações dos direitos humanos e humanitário, incluindo os ataques violentos contra representações de ajuda internacional, serão devidamente denunciados e investigados pelos órgãos internacionais. Finalmente, mesmo depois que as forças do Tigré retomaram o controle de Mekele e após o anúncio de cessar-fogo e a retirada das tropas do governo central, o cenário ainda é frágil e longe do fortalecimento da paz e das relações entre adversários.

 

Imagem: USAID promove campanha no Tigré. Por: USAID/Wikimedia Commons.

* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP – Unicamp – PUC-SP) e pesquisadora do Grupo de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). Contato: beatricedaudtb@gmail.com

Represa da Renascença reacende tensões geopolíticas entre Egito, Sudão e Etiópia

Lucas Oliveira Ramos*

Muitas das tensões geopolíticas no Chifre da África são decorrentes da luta colonial e histórica dessa sub-região que envolveu  França, Itália, Reino Unido e  Etiópia (nação que resistiu à jornada colonial europeia dos séculos passados). Hoje, a herança dessa luta pode ser lida através das disputas territoriais, as indefinições acerca da posse e do uso dos recursos hídricos advindos do Rio Nilo e a crescente onda de migração e refúgio, corolário dos conflitos civis e interestatais que esses países sofreram em seu passado recente.

Recentemente, atritos nas relações de Etiópia, Sudão e Egito voltaram ao centro das atenções devido ao acirramento das negociações da construção da barragem no Rio Nilo, projeto e sonho antigos dos governos etíopes. Dadas as instabilidades internas e rivalidades entre esses três países, a possibilidade da militarização dessa região é iminente e chama a atenção.

 

Uma breve retomada histórica das relações tríplice

No início de março de 2021, Sudão e Egito assinaram um pacto militar que visava a melhoria das relações entre os dois Estados através de um encaixe coeso no que tange às suas principais políticas de segurança nacional. Este acordo surge no contexto de negociações das barragens momentaneamente interrompidas da Represa do Renascimento (Grand Ethiopian Renaissance Dam — GERD) e a consequente disputa fronteiriça com Sudão e Etiópia. Historicamente, os três países disputam a posse e usufruto dos recursos hídricos do Nilo. Importante ressaltar que a Etiópia é um país montante (mais próximo da nascente) em relação ao Nilo e possui cerca de 85% da extensão do rio, ao passo que Sudão e Egito estão à jusante (mais próximos da foz).

Em 2011, Meles Zenawi, à época primeiro-ministro etíope, lançou os fundamentos da GERD. Desde então, reacenderam-se os problemas de cooperação fronteiriça sobre o domínio das águas daquela região, o que contribuiu para o pacto firmado em 2021 pelo Egito e o Sudão. Muito embora ambos os países afirmem que o motivo do pacto tem a ver com as semelhanças em relação aos desafios de segurança nacional e às grandes possibilidades de spillover das suas situações internas, é importante que esse pacto também seja interpretado dentro do contexto geopolítico ampliado.

A assinatura do acordo aconteceu após a visita do Ministro dos Negócios Estrangeiros sudanês, Mariam Al Mahdi, ao presidente egípcio Abdel Fattah El Sisi. Os chefes de pessoal das forças armadas de ambos os países, General Mohammed Farid Hegazy (Egito) e General Mohamed Othman Al Hussein (Sudão), assinaram o pacto na capital do Sudão, Cartum.

Em declaração, ambas as partes expressaram a sua gratidão pelo aumento das relações de segurança e cooperação entre os dois países. O General Hegazy declarou que “o Egito está pronto para atender o pedido do Sudão em todos os domínios, incluindo armamentos, formação conjunta, apoio técnico e fronteiras conjuntas de segurança”, aludindo à potencial ameaça iminente que paira sobre ambos os países. Esta declaração serve como uma garantia para os sudaneses, mas um aviso aos potenciais inimigos sobre a disponibilidade de recursos e a prontidão para utilizá-los.

À época em que a declaração foi redigida, a Etiópia ainda não havia respondido ao movimento estratégico de Egito e Sudão. Ainda assim, em março de 2021, o Sudão acusou a Etiópia de estar envolvida em disputas relacionadas com a fronteira. A disputa de um século sobre a região al-Fashqa — onde a região de Amhara, na Etiópia, se encontra com o estado sudanês de Gadarif — foi reacendida recentemente. Os tratados anglo-etíopes de 1902 e 1907 atribuíram a terra ao Sudão, mas os agricultores etíopes utilizaram as terras agrícolas ao longo dos anos. Em 2008, o antigo primeiro-ministro da Etiópia, Meles Zenawi, e o governo do Sudão celebraram um acordo bilateral relativo à disputa fronteiriça da al-Fashqa. A Etiópia reconheceria a área como parte do Sudão e, em troca, os agricultores etíopes seriam autorizados a continuar a lavrar as terras agricultáveis. 

Tanto o Sudão como a Etiópia acusaram-se mutuamente de usurpação. No início de 2021, o Sudão recuperou a zona al-Fashqa e acusou a Etiópia de sobrevoar aviões militares, emboscando soldados sudaneses e matando civis, incluindo cinco mulheres e crianças. A Etiópia alegou que os militares sudaneses tiraram proveito  de sua supervisão e  proteção de  fronteiras para invadir e pilhar propriedades, enquanto abordava o conflito do Tigray.

Cartum, por sua vez, alega que Adis Abeba vendeu armas a grupos rebeldes para permitir a desestabilização do país, um ato que os sudaneses entendem como uma tentativa de distração  das verdadeiras questões que afligem ambas as partes e a região, em geral. Estas acusações surgem na sequência da assinatura do pacto militar entre o Egito e o Sudão em março.

Interesses, segurança e a Represa da Renascença

A GERD tem sido um ponto de inflexão à cooperação na região. Na sequência da decisão unilateral da Etiópia de construir uma barragem de 6.450 megawatts no alto do Nilo Azul, o Sudão e o Egito contestaram a decisão invocando direitos “históricos” ou “coloniais” sobre a via navegável, tal como acordado pelo Tratado Anglo-Egípcio de 1929 e 1959.

Na sua busca por desenvolvimento e autonomia, a Etiópia considera a segurança energética como um fator importante e integral. À jusante, Egito e Sudão citaram o risco potencial para a sua segurança hídrica com implicações para a alimentação, o meio ambiente e a segurança humana, mais amplamente, nos seus territórios. Independentemente das suas preocupações, a Etiópia construiu a barragem e a segunda fase de abastecimento  está atualmente em curso. Esta tem sido a fonte do imbróglio entre os três países.

O Egito e o Sudão apelaram a um “acordo global” para assegurar que os seus interesses não sejam ameaçados após a conclusão da barragem. Em resposta, a Etiópia rejeitou o pedido de outro acordo e está prestes a iniciar a segunda fase da construção da barragem. O Egito e o Sudão responderam assinando o pacto militar para reforçar a inteligência e a partilha de recursos entre os dois Estados à jusante.

Ambiente político interno

A dinâmica política interna instável tanto na Etiópia como no Sudão é outro fator que contribui para a recente instabilidade. Após sua ascensão como primeiro-ministro da Etiópia, em 2018, Abiy Ahmed cultivou alianças com o descontente Partido Democrático Amhara (ADP), ao mesmo tempo em que deixou de lado a Frente de Libertação do Povo Tigre (TPLF), da qual Zenawi (o primeiro-ministro que cedeu a al-Fashqa aos sudaneses) era membro.

No Sudão, o governo de transição, um acordo de partilha do poder civil-militar foi recebido com desentendimentos e desconfianças. O Sudão tem de gerir conflitos no Porto do Sudão e na região de Darfur. Os conflitos internos resultam frequentemente em migração populacional para áreas menos conturbadas ou regiões vizinhas e crises de refugiados — complicando ainda mais o desacordo fronteiriço entre a Etiópia e o Sudão.

O papel dos atores externos

A administração Trump, juntamente com o Banco Mundial, liderou o processo de mediação entre os três países, desde novembro de 2019, até meados dos anos 2020. O fracasso dos esforços internacionais ocasionou a passagem do bastão ao então presidente da União Africana (UA), Cyril Ramaphosa. Em 2 de março de 2021, os ministros dos negócios estrangeiros egípcio e sudanês apelaram a uma expansão do quadro de mediação para incluir as Nações Unidas, os EUA, e a União Europeia. A Etiópia rejeitou este pedido, citando que tal gesto mina as “soluções africanas para os problemas africanos”, apresentado por Thabo Mbeki e a agenda pan-africana. Além disso, os esforços estabelecidos por Cyril Ramaphosa antes de ser sucedido por Félix Tshisekedi, da República Democrática do Congo, seriam comprometidos.

Para além das negociações regionais, também é necessário pontuar os alinhamentos internacionais que esses países possuem, uma vez que isso influi diretamente no processo negociador do imbróglio. Embora os EUA tenham uma boa relação com o governo egípcio em termos militares, a Etiópia desenvolveu uma das mais fortes relações econômicas com a China no continente. Embora as relações Egito-EUA sejam sublinhadas por tensões em torno de questões de direitos humanos, os primeiros vêem os EUA como um aliado influente, sobremaneira na ONU.

A Etiópia, antecipando as dinâmicas apresentadas, insiste que a UA seja o principal mediador dos processos de negociação. No esquema mais amplo da Agenda 2063 (programa de desenvolvimento econômico africano, lançado em 2015), a UA tem um papel mais importante a desempenhar na obtenção de um consenso sobre a GERD, no entanto, o ônus recai sobre o Egito para reavaliar a premissa sobre a qual reivindica “direitos adquiridos” aos recursos hídricos da Bacia do Nilo.

Por fim, é importante destacar a crescente presença do estado de Israel no Chifre. À medida em que os laços etíopes e israelenses se reforçam, o Egito tem se preocupado com as implicações dessa relação nas negociações das barragens. Dado o histórico de inimizade entre Egito e Israel, é importante mencionar, entretanto, que essas relações evoluíram positivamente, especialmente através das linhas de segurança nacional. Com ambos os países preocupados com a crescente influência do Irã na região árabe e o aumento da insurgência islâmica na Península do Sinai, no Egito, e no território palestino da Faixa de Gaza, a ameaça comum às suas agendas de segurança nacional resultou na cooperação e na coordenação da estratégia entre ambos. 

Por que essa questão é importante para a União Africana?

Subjacente ao estabelecimento e transição da Organização de Unidade Africana (OUA) para a União Africana esteve a busca de um desenvolvimento orientado para a África que seja anti-colonização, anti-imperialista e anti-imposição externa — uma agenda de desenvolvimento doméstico que vise à plena exploração do potencial da África como ator estratégico e global, englobando a fundação da instituição. Ao traçar a sua trajetória de desenvolvimento, vários tratados e agendas —  tais como o Plano de Ação de Lagos, o Tratado de Abuja, a Nova Parceria para o Desenvolvimento de África (Nepad) e a Agenda 2063 — foram ratificados por todos os países do continente africano.

Embora a vontade política e o empenho sejam fundamentais para a implementação bem-sucedida da agenda do desenvolvimento, a paz, a segurança e a estabilidade são de igual importância. Assim, é necessária uma ação da UA para escapar ao conflito interestatal na região, ao mesmo tempo que exorta diplomática e pacificamente todas as partes no sentido de uma (re)solução duradoura. Contudo, no caso de uma guerra em larga escala, é importante examinar os potenciais resultados.

Mais do que nunca, o presidente da UA precisa demonstrar liderança no Chifre de África. Uma equipe de mediadores africanos (com a participação periférica e apoio de parceiros internacionais estratégicos como os EUA, China, Rússia, e Nações Unidas) é imperativo e urgente para resistir à tempestade iminente na sub-região.

* Lucas Oliveira Ramos é doutorando no PPG RI San Tiago Dantas e pesquisador do Gedes.

Imagem Destacada: Blue Nile Falls. Por Guistino/Wikimedia Commons.

Imagem no corpo do texto: Grand-Ethiopian dam. Por Wikimedia Commons.

A República Democrática do Congo nos meandros da cooperação para a paz

Laurindo Tchinhama[1]

 

 

Desde o início das guerras civis em 1997 até os dias de hoje, a República Democrática do Congo (RDC) luta contra a insegurança e a instabilidade nacional que afetam principalmente a região Leste do país, fronteira com Ruanda e Uganda, ocupada por aproximadamente 130 grupos armados compostos por nacionais e estrangeiros.

Entre os principais problemas que mantêm a instabilidade está a incapacidade de resposta militar e técnica das Forças Armadas da República Democrática do Congo (FARDC) para desmantelar esses grupos. Por outro lado, a corrupção institucionalizada no setor de segurança, tanto no exército como na polícia nacional congolesa, afeta em grande medida as atividades do exército, bem como a má remuneração dos soldados. Ademais, a Reforma do Setor Segurança (RSS) realizada no país após o fim oficial dos conflitos em 2003, com inclusão de ex-membros de grupos rebeldes nas FARDC, fracassou e gerou revoltas internas em termos hierárquicos que se estenderam durante todo o governo do presidente Joseph Kabila.

Os esforços empreendidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), principalmente a Missão da Organização das Nações Unidas no Congo (MONUC) (1999-2010) e a Missão de Estabilização da Organização das Nações Unidas (MONUSCO) (2010 até os dias de hoje),  são insuficientes para atender de forma holística a proteção dos civis e o processo de RSS (MOBEKK, 2009). Historicamente, a MONUC teve a missão de acompanhar o cumprimento dos acordos de paz de Lusaka (1999) e de Sun City (2002), a RSS e a realização das eleições, porém, debilidades na coordenação e financiamento limitado ocasionaram o fracasso da proteção dos civis (MOBEKK, 2009). Por seu turno, a MONUSCO teve como objetivo primordial proteger os civis, pessoal humanitário e a equipe da missão com uso de todos os meios necessários.

Percebe-se que a estabilidade nacional depende primeiramente da vontade do governo para direcionar as prioridades para o setor de segurança com a ajuda de atores internacionais e regionais. Nesse contexto, desde que assumiu a presidência da RDC, em 2019, Félix Tshisekedi tem a difícil tarefa de realizar a RSS e garantir o controle e a estabilidade em território nacional com foco na reforma do exército. De acordo com Nantulya (2018) dois desafios devem marcar a nova administração: a profissionalização do setor segurança e a reforma da estrutura do poder marcado pelo clientelismo e corrupção desenfreada. O primeiro desafio é urgente e indispensável.

O primeiro movimento do presidente para criar condições de mudança foi garantir a lealdade do exército devido ao clima de desconfiança e desavença entre os membros da cúpula militar do país diante das atitudes do presidente. Vale ressaltar que essa mudança procura combater a corrupção e o desvio de armamentos perpetrados  por muitos oficiais superiores (KAM, 2020a). Nantulya (2018) lembra que a corrupção institucionalizada é resultado do desgoverno do regime de Mobutu cuja frase “você tem armas, não precisa de salários” parece perpetuar e direcionar os oficiais do exército.

Alguns observadores e críticos congoleses argumentam que atores internacionais influenciaram na escolha e reforma dos oficiais militares, inclusive com indicação de nomes. A título de exemplo, “Peter Pham, o enviado Especial dos EUA para os Grandes Lagos, visitou Kinshasa em fevereiro como um gesto para atender a essas demandas… colocou nomes específicos de generais na mesa e pediu ao presidente Tshisekedi para agir.” (KAM, 2020c, tradução nossa).

Outra iniciativa recrudescente do presidente congolês que causou enorme impacto foi a exigência de pagamentos de salários pontualmente aos soldados. Essa medida é um passo importante na reforma do exército para evitar desmotivação dos corpos militares na linha de frente, assim como saques, estupros e rebeliões anteriormente cometidas contra os civis como forma de sustento, pois alguns generais se apropriavam dos salários de seus subordinados (RAYROUX; WILÉN, 2014; KAM, 2020b). Nessa interface está o projeto de lei denominado “Uma nação – um exército”, medida com a qual o governo visa contornar a RSS.

Para responder a crise institucional na área de defesa e segurança, Tshisekedi tem assinado acordos bilaterais de cooperação militar para concretizar tais propostas, sobretudo no âmbito da formação e apoio de equipamento militar. Com a Sérvia, a RDC contará com apoio às reformas técnicas na área militar, além de setores agrícola, educação e saúde (ACTUALITÉ, 2020). Já com os Estados Unidos da América (EUA) e o Egito, os acordos  abordam treinamento civil militar, comunicação, engenharia e ensino de idiomas visando a consolidação da paz e segurança.

Com a França, o acordo enfoca na formação geral do exército congolês e na criação de uma escola de guerra para formação e treinamento de soldados na capital, Kinshasa.  Para auxiliar no desenvolvimento e paz, conta com o financiamento de cerca 65 milhões de euros (AFRICANEWS, 2019). A África do Sul irá colaborar na elaboração do documento chamado Estratégia Militar. Vale destacar que os sul-africanos vêm atuando no país desde a década de 1990, tanto na mediação de acordos de paz, como na RSS congolesa. Por último, com Angola, os acordos se atentaram à troca de experiência, acordo interministerial para controle fronteiriço e estabelecimento de um memorando para criação de uma Comissão Mista Permanente de Defesa e Segurança.(MAKI, 2020; DW, 2020).

É importante lembrar que as relações de ambos os Estados datam da divisão territorial colonial conturbada que os tornou mais próximos devido à região de Cabinda, rica em petróleo, pertencente à Angola, porém envolvida no território congolês. Ademais, a Angola participou da segunda guerra do Congo (1998-2002), quando deu suporte ao ex-presidente Laurent Kabila para combater as forças de Ruanda, Uganda, Burundi e grupos rebeldes apoiados por estes países. Vale destacar que Angola tem atuado como mediador nas negociações para a paz quadripartite entre esses países e a RDC mediante estabelecimento de memorandos de entendimento (OBSERVADOR, 2020).

Paradoxalmente, dos países priorizados para realização dos acordos e cooperação militar pelo governo congolês, chama atenção a pouca ênfase dada ao Ruanda, Uganda e Burundi. Apesar das iniciativas existentes entre a RDC com esses países, há necessidade de serem reforçados e reafirmados veementemente novos acordos devido à presença e atuação dos grupos armados oriundos desses países tais como as Forças Democráticas Aliadas (ADF, em inglês) de Uganda, Forças Democráticas pela Libertação de Ruanda (FDLR) de Ruanda e as Forças de Libertação Nacional (FNL) de Burundi que ainda atuam na região leste do território congolês causando instabilidade e violações de direitos humanos.

Nesse sentido, o desmantelamento desses atores não estatais é primordial devido à proximidade geográfica, que lhes permite utilizar a RDC como seu reduto. Haja vista o histórico de participação destes países nos conflitos do Congo durante a primeira e segunda guerra (1996-1998; 1998-2002), seja por meio do apoio a grupos rebeldes ou participação no tráfico de recursos naturais. Também chama atenção fluxo migratório, de Ruandeses tutsis e hutus, principalmente, originado pelo genocídio de Ruanda em 1994 que permitiram a formação de grupos armados na região leste e comportamentos xenofóbicos de alguns cidadãos congoleses.

Vale observar que algumas atividades conjuntas realizadas entre a RDC e esses Estados, seja no âmbito bilateral ou multilateral, foram fundamentais durante o fim da década de 1990 e início dos anos 2000 e vários domínios. Com  Ruanda, por exemplo, destaca-se o Acordo de Lusaka assinado em 1999 no âmbito da ONU com o objetivo de retirar as tropas ruandesas da RDC e desmantelar a milícia Interahamwe, que culminou com a criação da Missão da Organização das Nações Unidas no Congo (MONUC) e o acordo para exploração conjunta de petróleo no Lago Kivu, região fronteiriça, descoberta em 2014 (OLUKYA, 2017; NACIONES UNIDAS, 1999).

Nesse contexto, Gras (2020) observa a falha no avanço do projeto regional, envolvendo  Ruanda, Burundi, Uganda e a RDC, para criação de um gabinete integrado dos exércitos da região cujo objetivo é combater grupos armados que atuam no leste. Ademais, outro acordo importante entre os países foi o Tripartite Plus Joint Commission assinado em 2007, tendo como facilitador e financiador os EUA (205 milhões de dólares em 2008 e 111 em 2009), com o objetivo de eliminar ameaças à paz e segurança regional e desmantelar e desmobilizar os grupos armados nacionais e estrangeiros  atuantes na RDC com auxílio da MONUC (MCCORMACK, 2007; DAGNE, 2012). No entanto, percebe-se a falha dos governos em robustecer as ações em andamento em prol da segurança e estabilidade da região.

Outro aspecto importante é o fato desses países serem membros da Conferência Internacional da Região dos Grandes Lagos (ICGLR), fundado em 2004, que tem dentre os seus objetivos garantir a paz, segurança e integração regional. Ou seja, uma cooperação militar de âmbito regional consistente, no primeiro momento, é imperiosa para o sucesso do combate e consolidação da paz e segurança na região. Ainda, a atuação de instituições como a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) e a União Africana (UA) são fundamentais para a paz e estabilidade da região.

Todavia, pelo histórico dos países, a indagação está na celeridade para a implementação e cumprimento desses acordos. De um lado, porque a RDC comumente tende a priorizar os acordos de cunho bilateral para resolução das questões internas e, de outro, fica claro que a resolução dos conflitos e a RSS no país passam por iniciativas regionais práticas mediante força tarefa quadripartite (Burundi, Ruanda, Uganda e RDC), do qual sua concretização depende em grande medida da contribuição das partes.

Ações no âmbito regional mostram não só capacidade e engajamento dos Estados africanos na busca pela paz, segurança e desenvolvimento na região, como também um olhar do papel emancipatório da perspectiva de construção da paz de baixo para cima (bottom up), rompendo com o princípio de cima para baixo (top down), uma vez que a paz sustentável depende da boa relação com os Estados vizinhos e da participação da sociedade civil congolesa. Por exemplo, em Goma, cerca de 500 organizações da sociedade civil instituíram uma campanha evocando a unidade nacional em prol do desenvolvimento e segurança do país. Na região do Kivu, a iniciativa veio da Associação das Conferências Episcopais da África Central (ACEAC) e da Conferência Episcopal Nacional do Congo (CENCO) com a realização de um encontro ecumênico denominada “missa pelos tempos de guerra ou graves perturbações” (OKAPI, 2021). No entanto, percebe-se a existência de movimentos e iniciativa locais que buscam alcançar a paz que assola o país há anos.

Entretanto, argumenta-se que o mérito do presidente Tshisekedi na busca para consolidação da paz sustentável, estabilidade política e RSS é fundamental desde o momento em que valoriza tanto os atores regionais, extrarregionais e principalmente locais. Estes últimos, vítimas dos grupos beligerantes, devem ser mais ouvidos e terem suas necessidades atendidas. Contudo, os esforços para a consolidação da paz congolesa perpassam pelo tripé: atores locais (sociedade e líderes políticos), regional e extrarregional.

 

Referências Bibliográficas

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AFRICANEWS. France to support DRC fight armed groups | Africanews. 13 Nov. 2019. Disponível em: https://www.africanews.com/2019/11/13/france-to-support-drc-fight-armed-groups/. Acesso: 24/01/2021.

DAGNE, T. The democratic republic of Congo: Background and current developments. Economic, Political and Social Issues of Africa, , p. 121–133, 2012. .

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GRAS, R. Rwanda: ‘Our rapprochement with the DRC can’t please everyone’ – Vincent Biruta. 2 Oct. 2020. Disponível em: https://www.theafricareport.com/44287/rwanda-our-rapprochement-with-the-drc-cant-please-everyone-vincent-biruta/. Acesso: 02/02/2021.

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MAKI, P. Voici les pays qui ont conclu un accord militaire avec la RDC depuis l’arrivée au pouvoir de Félix Tshisekedi | Actualite.cd. 20 Nov. 2020. Disponível em: https://actualite.cd/2020/11/20/voici-les-pays-qui-ont-conclu-un-accord-militaire-avec-la-rdc-depuis-larrivee-au-pouvoir. Acesso: 21/01/ 2021.

MCCORMACK, S. Summary of Conclusions: Tripartite Plus Joint Commission Member States Meeting. 5 Dec. 2007. Disponível em:: https://2001-2009.state.gov/r/pa/prs/ps/2007/dec/96318.htm. Acesso: 02/02/ 2021.

MOBEKK, E. Security Sector Reform and the UN Mission in the Democratic Republic of Congo: Protecting Civilians in the East. International Peacekeeping, vol. 16, no. 2, p. 273–286, 2009. https://doi.org/10.1080/13533310802685844.

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OBSERVADOR. João Lourenço participa em nova cimeira quadripartida no Ruanda – Observador. 20 Feb. 2020. Disponível em: https://observador.pt/2020/02/20/joao-lourenco-participa-em-nova-cimeira-quadripartida-no-ruanda/. Acesso: 24/01/2021.

OKAPI, R. Goma : 500 organisations de la société civile lancent une campagne de cohésion nationale | Radio Okapi. 20 Jan. 2021. Disponível em: https://www.radiookapi.net/2021/01/20/actualite/societe/goma-500-organisations-de-la-societe-civile-lancent-une-campagne-de. Acesso: 02/02/2021.

______ Disponível em: https://www.radiookapi.net/2021/01/19/actualite/societe/nord-kivu-les-populations-de-butembo-et-beni-appelees-lunite-pour-faire. Acesso: 02/02/2021.

OLUKYA, G. DRC and Rwanda agree to explore for oil in Lake Kivu. 24 Apr. 2017. Disponível em:: https://www.aa.com.tr/en/africa/drc-and-rwanda-agree-to-explore-for-oil-in-lake-kivu/804012#. Acesso: 02/02/2021.

RAYROUX, A.; WILÉN, N. Resisting Ownership: The Paralysis of EU Peacebuilding in the Congo. African Security, vol. 7, no. 1, p. 24–44, 2014. https://doi.org/10.1080/19392206.2014.880030.

[1] Laurindo Tchinhama é doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

Imagem: TARRIFA (2021). Disponível em: President Tshisekedi Makes Major Changes In Military – Taarifa Rwanda. Acesso:11/02/2021.

O atual quadro de vulnerabilidade no Chifre da África: o retorno dos conflitos étnicos?

Lucas de Oliveira Ramos*

 

O Chifre da África, região a noroeste do continente africano, que contém as nações da Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (IGAD) — Djibouti, Eritreia, Etiópia, Quênia, Somália, Sudão, Sudão do Sul e Uganda, vem enfrentando vários problemas no que diz respeito às questões de segurança e estabilidade política. Uma onda de protestos no Sudão, em 2019, derrubou o ex-presidente Omar al-Bashir do poder, de modo que o país vive, atualmente, uma situação transitória e, para além das problemáticas na capital Cartum, enfrenta um árduo processo de construção de paz no Darfur, tem pendências fronteiriças com o Sudão do Sul e, em decorrência disso, sofre pressão dos estados do sul, especialmente o Nilo Azul e do Cordofão do Sul. O Sudão do Sul enfrenta, para além das questões territoriais com o Sudão, uma guerra civil; a Somália combate o al-Shabaab desde 2012; a Etiópia, desde novembro de 2020, administra  uma crise político-bélica contra a Frente de Libertação do Povo do Tigré (TPLF), em que um dos ataques da TPLF atingiu, a Eritreia; e Uganda, que está em período eleitoral, vem sofrendo com um movimento de protestos popular e retaliações com uso da força por parte do governo.

Seria possível, ainda, expandir esse quadro de instabilidade se pensarmos o entorno imediato da IGAD. A Nigéria não consegue vencer o Boko Haram e, recentemente, tem sofrido  pressão interna e internacional com relação à sua brutalidade policial; o Chade tem as suas pendências em relação à distribuição de terras e questões territoriais internas, sobremaneira no sul; a República Democrática do Congo vive em situação de guerra civil; a República Centro-Africana convive com a Missão de Estabilização na República Centro-Africana (MINUSCA). Apesar de o Chifre da África ser o foco dessa peça, não se pode ignorar o seu entorno regional também instável e a incapacidade de ajuda das nações vizinhas, haja vista seus próprios problemas internos.

Tendo dito isto, é necessário questionar a construção narrativa, predominante durante o século XX e, especialmente, na década de 1990, que os entendia como tendo causas étnico-religiosas. Tendo como ponto de partida a contribuição de Mahmood Mamdani (2007), em seu texto The Politics of Naming: genocide, civil war, insurgency, o autor argumenta que a utilização da narrativa étnica como causadora de conflitos é politicamente instrumentalizada, racista e facilitadora de intervenções. Posto isto, por que essa narrativa persiste e quais as consequências desse movimento político e narrativo?

Mamdani defende seu argumento em dois movimentos. Em primeiro lugar, a narrativa persiste pois, segundo o autor, existe uma conexão bastante clara nos governos e nas populações das grandes potências entre um conflito de causa étnico-racial e/ou religiosa, um quadro de limpeza étnica e um genocídio. Essa fácil associação entre a causalidade do conflito e um crime de guerra e contra a humanidade insta uma resposta rápida e efetiva da comunidade internacional, com o objetivo de evitar as atrocidades que outrora ocorreram no continente africano. E, em segundo lugar, por conta da missão civilizatória auto-atribuída ao Norte, aludindo ao fardo do Homem Branco, segundo o qual, a intervenção é um dever a se cumprir politicamente e  uma missão moral de combate ao mal no mundo.

O caso de Darfur é bastante ilustrativo do argumento. O conflito no Darfur, de acordo com as pesquisas históricas de Mamdani (2009), seria sobre a disputa territorial entre os grupos pastorais, que precisou peregrinar rumo ao sul devido às graves secas nas regiões desérticas do norte de Darfur, e grupos agricultores do sul, que possuem terra fértil de maneira constante devido à irrigação do Rio Nilo. Tendo em vista que esse conflito ocorreu concomitantemente ao movimento separatista do sul do Sudão (que veio a ser o Sudão do Sul, em 2011), o governo central de Cartum negligenciou o contencioso da região, privilegiando a luta contra o movimento de libertação no Sul. Pensando dessa forma, o conflito em Darfur teve início na década de 1970.

Entretanto, o queé relatado , na mídia e nos institutos formuladores de política, caso do think tank Council of Foreign Relations (CFR), é que o conflito teve início em 2003, quando grupos locais atacaram instalações do governo no Darfur. É interessante destacar essa passagem e o ano de 2003, pois há alguns elementos bastante importantes que dão base ao argumento de Mamdani. Em primeiro lugar, é fundado nos Estados Unidos o Save Darfur Coalition, grupo civil criado em 2004 para pressionar o governo estadunidense a fim de intervir e finalizar o conflito no Darfur, que foi entendido como caso de limpeza étnica (RAMOS, 2020).

Daí em diante, o conflito passou a ser entre os povos nômades árabe-muçulmanos versus povos não-muçulmanos. A coalizão conseguiu penetrar no congresso estadunidense, de maneira que se debateu qual seria a ação estadunidense para salvar o povo darfuri das atrocidades do ditador Omar al-Bashir, tendo como premissa que se tratava de um conflito étnico-religioso e um caso de genocídio. Alguns anos mais tarde, essa coalizão é reconhecida oficialmente como grupo lobista no congresso estadunidense (RAMOS, 2020).

O caso de Darfur é interessante também por demonstrar que o movimento da mídia não é desacompanhado. É possível identificar um corpo civil que entende os conflitos em África dessa forma. Servem de exemplo, na academia, a obra Choque das Civilizações, de Samuel Huntington (1996), o conceito de Novas Guerras, de Mary Kaldor (2012) e Robert Kaplan (1994) que, de maneira transversal, compreendem os conflitos na África como diferenças identitárias tribais, étnicas ou religiosas. Institutos como o CFR, o The Fund for Peace e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), para além de tomarem como premissa as diferenças identitárias como causa de conflito, somam essa narrativa com a possível baixa capacidade, inabilidade ou indisposição dos governos centrais de lidarem com esses conflitos, o que chamam de Estado Frágil, Falido ou Colapsado.

Além desse movimento do centro em direção à periferia, também é importante salientar que há um movimento na mão oposta. Ao perceberem a racialização e etnização do conflito, os entes armados também adotam esta narrativa como parte integrante das motivações centrais pelas quais eles estão em guerra. Dessa forma, facilita-se o acesso a recursos financeiros, armamento, munição e treinamento. Ainda que não se possa dizer que os conflitos atuais seriam combatidos com as mesmas armas rudimentares do início do século XX, o armamento disponível no continente é defasado em relação às possibilidades que vêm dos pólos bélicos do mundo.

Apesar da exibição da problemática e das lições históricas que, aparentemente, o mundo desenvolvido não aprendeu (ou não quer aprender), o que se vê na produção de narrativas da sociedade civil nas grandes potências é a construção rápida e eficiente que compreende  todas as questões políticas ocorrendo no Chifre da África — sobre territorialidade, representação política, processo político, transição de governo, repressão e opressão de divergentes — como de matriz religiosa, étnica ou racial. Na esteira dessa evolução sobre as causas dos conflitos no Chifre da África, também se percebe um aumento da presença militar das grandes potências na região.

Ilustra o comentário o fato de a China possuir base militar no Djibouti, a primeira base militar extra-oceânica chinesa, desde 2017; a Rússia possuir projetos de retomar sua presença no continente, especialmente com os planejamentos de construção de uma base naval no Sudão; e os Estados Unidos estarem em múltiplos países na forma de base militar, entre eles, Somália e Quênia.

É primordial que se reflita acerca do papel da sociedade civil das grandes potências na construção narrativa sobre os problemas que o Chifre atualmente enfrenta. Além de tentar resolver um não-problema, adotar este tipo de narrativa como causa dos conflitos diz mais sobre a permanência de uma mentalidade preconceituosa e etnofóbica que alicerçou o desenvolvimento do capitalismo e das sociedades capitalistas, do que, de fato, sobre o contexto daquela localidade. Isso sem mencionar que o entendimento de urgência e a ação externa militar das potências pode acarretar na escalada do quadro instável e dinamitar uma região historicamente fragilizada e à iminência de conflitos. Por conta disso, é mais producente a reflexão aprofundada sobre cada um dos conflitos, de maneira particular, do que se valer de debates rápidos e superficiais.

Com os focos de conflito eclodindo diariamente em seis dos oito países do Chifre, é preocupante perceber o duplo movimento de costura narrativa e militarização das grandes potências na região. Das múltiplas lições que aprendemos no longo século XX sobre os conflitos em África, uma das mais valiosas é de que a incorporação das potências externas nesses conflitos aumenta a capacidade bélica dos entes armados, o que, invariavelmente, amplia a letalidade do conflito.

 

Referências:

HUNTINGTON, Samuel. (1996). O choque de civilizações. São Paulo: Ed. Objetiva.

KALDOR, Mary. (1999) New and Old Wars: Organized Violence in a Global Era. Stanford, Calif: Stanford University Press. Print.

KAPLAN, Robert, (1994). The Coming Anarchy: How scarcity, crime, overpopulation, tribalism, and disease are rapidly destroying the social fabric of our planet. The Atlantic, feb 1994. Disponível em: <https://www.theatlantic.com/magazine/archive/1994/02/the-coming-anarchy/304670/>. Acesso em: 12 de dezembro de 2020.

MAMDANI, Mahmood. (2007). The Politics of Naming: Genocide, Civil War, Insurgency. London Review of Books, v29 n5. Disponível em: <https://www.lrb.co.uk/the-paper/v29/n05/mahmood-mamdani/the-politics-of-naming-genocide-civil-war-insurgency>. Acesso em: 07 de dezembro de 2020.

MAMDANI, Mahmood. (2009). Saviors and survivors: Darfur, politics, and the War on Terror. New York :Pantheon Books.

RAMOS, Lucas de Oliveira. (2020). As Empresas Militares Privadas e o processo de pacificação do Darfur. 138 f. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

 

Lucas de Oliveira Ramos é mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisador do Gedes.

Imagem: Mapa da África, por: Samuel Mitchell.

Da guerra à democratização

Laurindo Paulo Ribeiro Tchinhama: Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). E-mail: laurindoprt@gmail.com

 

Uganda é um país africano localizado na região oriental da África fazendo fronteira com o Sudão do Sul, o Quênia, a Tanzânia, Ruanda e a República Democrática do Congo. O país tem um histórico marcado por conflitos civis e instabilidade política complexa desde a sua independência da Grã-Bretanha em 1962, caracterizada por golpes militares e ditaduras. Evidencia-se, no entanto, segundo Otunnu (2004, p. 11), que a crise do país “reflete a maneira como o Estado foi construído através da violência expansionista europeia, manipulação de diferenças preexistentes, políticas administrativas de divisão, domínio e políticas econômicas”.

Além da crise de legitimidade política, houve problemas relacionados a criação do nacionalismo ugandense causando divisões étnicas, religiosas, e administrativas – especialmente entre o Norte e Sul (OTUNNU, 2004). A fragmentação e divisão político-social do país abriu portas para as instabilidades, alianças e disputas políticas que ocasionaram a aliança dos partidos o Congresso do Povo de Uganda (UPC) de Milton Obote e do partido da monarquia de Buganda (Kabaka Yekka). Por conseguinte, Milton Obote se tornou o primeiro-ministro e Kababa Mutesa II, de Buganda, o presidente (OTUNNU, 2004).

O fracasso da aliança ocorreu em 1967 quando o primeiro-ministro deu um golpe de Estado contra o presidente com abolição do regime tribal e declarou Uganda como uma República. O rompimento da aliança deveu-se à luta por terras entre as etnias Bunyoro e Buganda, enquanto a declaração de estado de emergência foi causada pela percepção de conflito entre o Norte e o Sul no país (OTUNNU, 2004). A crise afetou a relação entre Milton Obote e o comandante do exército, Idi Amin, ocasionando um novo golpe de estado em 1971 executado por este último, que governou o país até 1979.

O governo de Idi Amin foi marcado por violência, mortes de membros da etnia Acholi e Langi, (membros centrais do exército) e de adversários políticos, além disso, Amin configurou o exército a sua maneira. O regime ditatorial de Amin evidenciou a cisma no país, o Sul assumiu os serviços públicos e de comércio, e o Norte os cargos no governo e exército (OTUNNU, 2004). Ademais, estima-se que houve 500,000 mortos e cerca de 1 milhão de deslocados internos, além de 200 mil exilados. O governo causou instabilidade no país resultando na queda do PIB em 25% e de 60% nas exportações, e provocou um aumento na inflação acima de 70%. Já a educação e saúde tiveram um impacto de 27% e 9% respectivamente (RUGUMAMU, GBLA, 2004).

Diante desse contexto, ocorreram sucessivos golpes militares no país. Amin sofreu golpe de militares Acholi e Langi, em 1979, exilados na Tanzânia, com auxílio deste país e do partido Frente de Salvação Nacional (FRONASA), liderado por Yoweri Museveni. Como resultado, Yusuf Lule assume o poder por pouco tempo e é derrubado por Godfrey Binaisa. Este é derrubado por Paulo Muwanga em 1980 que assume a presidência e escolhe Yoweri Museveni como seu vice. No entanto, na tentativa de democratizar o país, a nova administração realizou eleições em 1980 que culminou com a vitória e o retorno de Milton Obote ao poder (OTUNNU, 2004). O governo de Obote foi marcado por reivindicações da sua vitória, legitimidade, guerras declaradas pela maior parte dos partidos, assassinatos e o surgimento de grupos armados. Obote resistiu até 1985 quando sofreu o golpe dos soldados Langi e Acholi e Tito Okello assumiu o poder (OTUNNU, 2004).

Uma vez no poder, Okello inclui a maior parte dos partidos e grupos armados no seu governo. Por seu turno, o Exército de Resistência Nacional (NRA, sigla em inglês) ficou de fora do governo. Nesse sentido, buscaram a negociação de paz que ocorreu em 1985 com o Acordo de Nairóbi. Dentre os objetivos estavam o cessar-fogo entre o governo de Uganda e o NRA, a formação de um governo de coalização com partilha de poder e a nomeação de um representante no conselho militar (KIPLAGAT, 2004).

Todavia, ao assumir o poder após o acordo, o NRA conseguiu desmobilizar os soldados Acholi e vivia-se com clima de relativa tranquilidade, porém o acordo não foi implementado na prática (OTUNNU, 2004). O governo do NRA consolidou a divisão Norte-Sul e os conflitos se intensificaram e ficaram marcados pela elevada violação de Direitos Humanos, discriminação regional, sequestros, saques, dentre outras atrocidades cometidas (OMACH, 2009). Nesse contexto, Yoweri Museveni em 1986 com um golpe de Estado assume o governo alegando a pretensão de garantir a estabilidade e o respeito aos direitos humanos no país. Yoweri Museveni está no poder até o presente.

No poder, Yoweri Museveni realizou algumas mudanças. Durante a década de 1990 uma nova constituição foi instituída e os partidos políticos foram legalizados. Em 1998, os conflitos entre o governo e grupos armados persistiram no Norte e Oeste do país que ficou marcado pela morte de 80 estudantes numa escola. Estima-se um total de 800 pessoas mortas. Em 1999, civis e tribos locais foram atacados pelos grupos rebeldes Forças Democráticas Aliadas (ADF), Exército de Resistência do Senhor (LRA) e Hutus Ruandeses provocando pelo menos mil mortes. Ademais, os conflitos resultaram em 350,000 deslocados de guerras. Vale ressaltar que o conflito com a LRA é um dos mais longos. O grupo, liderado por Joseph Kony, ganhou protagonismo por sequestros de aproximadamente 60,000 crianças para servirem como soldados e escravas sexuais.

A incapacidade do governo em conter os conflitos civis ficou evidente. No ano 2000, o combate entre o governo e os grupos rebeldes ocasionou pelo menos 150 mortes, resultado de ataques contra os civis. No ano seguinte, os novos ataques foram realizados e centenas de pessoas foram mortas, porém pelo menos 5,000 rebeldes se renderam à investida do governo. Por seu turno, entre 2002 e 2000, o LRA realizou ataques contra os civis no Norte e Nordeste do país ocasionando a morte de mil e sequestrando centenas de pessoas.

Os combates se prolongaram em 2005 chegando a atingir o Sudão, em Darfur. Como reação, a comunidade internacional emitiu mandado de prisão aos líderes da LRA. As tentativas de negociações de paz ocorreram entre o governo e o LRA em 2004 e 2006, mas não obtiveram o resultado esperado. Apesar do fracasso, um dos resultados do governo foi reintegração alguns ex-combatentes do LRA às Forças de Defesa do Povo de Uganda (UPDF) e anistia a alguns líderes do grupo.

Entre 2006 e 2008 o fracasso das negociações de paz levaram a retomada dos conflitos. Em 2008, um ultimato foi proposto ao LRA devido à resistência do líder Joseph Kony em negociar por conta do mandado de prisão do Tribunal Penal Internacional (TPI) ao mesmo. A sua resistência levou uma ação conjunta da Uganda, da República Democrática do Congo e do Sudão, com apoio da Organização das Nações Unidas (ONU) e dos Estados Unidos (EUA), obrigando o refúgio do grupo na República Centro Africana (RCA) onde realizaram ataques a civis com cerca de 500 mortes entre 2008 a 2009. Sobre a captura dos líderes do LRA, em 2015 Dominic Ongwen foi capturado e posto em julgamento desde 2017 enquanto Kony continua foragido.

Fica claro, dessa forma, que os conflitos na Uganda se tornaram regional ao tornar outros Estados vizinhos palco dos ataques do LRA. Assim, fica claro a notoriedade e o protagonismo do LRA dentre os vinte grupos mais influentes nesse país.  No entanto, a captura de Kony continua sendo o desafio do governo ugandês, porém, a exposição das suas fragilidades e o declínio do seu exército, bem como a prisão de alguns líderes do seu grupo deixam claro a sua fraqueza (NYEKO, LUCIMA, 2004).

 

Figura 1- Mapa das áreas mais afetadas pelos conflitos no Uganda sobretudo no Norte

Fonte: RELIEFWEB (2007). Disponível em: https://reliefweb.int/map/uganda/map-uganda-showing-conflict-affected-areas-august-2007. Acesso 18 de junho de 2020.

 

Os conflitos tiveram consequências de dimensão política, social, econômica e principalmente humanitária (OTUNNU, 2004). No âmbito social, gerou órfãos de guerra, destruição de cultura, cerca de 1,8 milhão de deslocados internos, sobretudo na região norte, principal local dos conflitos, e a desintegração do país. Esforços têm sido feitos na luta pelos direitos humanos e prevenção de conflitos com atividade de monitoramento e treinamento com apoio da USAID. As ajudas humanitárias chegaram às regiões mais afetadas com a melhoria da segurança a partir de 2006 (OCHA, 2007).

Um dos desafios a serem superados pelo país é concernente a Governança. Quando assumiu o poder, em 1985, Museveni prometeu estabilidade e transição política no país, porém sua postura mudou em 2005 ao estabelecer mudanças constitucionais no limite de mandatos presidenciais apesar de ter criado um sistema multipartidário (RUGUMAMU, GBLA, 2004). Até então é um dos presidentes do mundo com mais tempo no poder e com as eleições se aproximando em 2021 parece cogitar uma possível recandidatura ao negar aposentadoria. Assim sendo, a postura de Museveni representa a crise de governança e da democracia com um regime ditatorial com características democráticas que oprime, ameaça, abusa de poder militar (KAKA, 2016) e prende seus oponentes, como, por exemplo, o atual candidato da oposição Bobi Wine. Contudo, tal comportamento vem sendo visto desde as eleições de 2001, 2006, 2011 e 2016 (NYEKO, LUCIMA, 2004).

Ao analisarmos o histórico da Uganda podemos traçar algumas considerações. Torna-se evidente, portanto, que a solução dos conflitos não se limita ao estabelecimento da paz negativa, o fim do conflito violento por meio do cessar-fogo, mas passa também por processo de paz positiva com a integração social. Segundo, o processo de construção da paz e democratização em sociedade com características divididas demandam mais abertura ao diálogo por contas das rivalidades étnicas e do regionalismo que foi implantado desde o pós-independência no país. No que tange a segurança, há necessidade de atividade de DDR e Reforma do Setor de Segurança (RSS) no intuito de estabelecer um exército nacional de modo a evitar o retorno de novos conflitos, considerando que o grupo LRA ainda se encontra foragido. Vale ressaltar a relevância do setor por conta do histórico militar e debilidade dos regimes ditatorial e autoritário vivenciado pelo país e reproduzido por Museveni de forma inconstitucional (KAKA, 2016).

Por último, a debilidade político-institucional deixa claro a necessidade de reformas institucionais que garantam o funcionamento e atuação imparcial. No entanto, fica aberta a possibilidade de futuros estudos sobre governança, institucionalização e RSS no país de modo a garantir a estabilidade e segurança dos cidadãos. Porém, apesar da sua postura e do regime autoritário, considerando o histórico conflituoso do país, Museveni não sofreu golpe e tem tido uma atitude de negociador para a manutenção da paz na região.

 

 

FONTE IMAGÉTICA: Manifestação da oposição queimando a foto do presidente Yoweri Museveni durante a campanha eleitoral. Fonte: DW (2020). Disponível em: https://www.dw.com/en/uganda-blocks-a-million-first-time-voters/a-5257519. Acesso 17 de junho de 2020.

 

REFERÊNCIAS

KAKA, Julius. Uganda’s 2016 Elections: Another Setback for Democracy in Africa. Global Observatory: February 24, 2016. Disponível em: https://theglobalobservatory.org/2016/02/ugandas-2016-elections-another-setback-for-democracy-in-africa/. Acesso 18 de junho de 2020.

KIPLAGAT, Bethuel. Reaching the 1985 Nairobi Agreement. In: Accord: protracted conflict, elusive peace: initiatives to end the violence in northern Uganda. Org. LUCIMA, Okello. Conciliation Resources: London, 2002.

OMACH, Paul. Democratization and Conflict Resolution in Uganda. Les Cahiers d’Afrique de l’Est / The East African Review. nº 41, p. 1-20, may, 2009.

OTUNNU, Ogenga. Causes and consequences of the war in Acholiland. In: Accord: protracted conflict, elusive peace: initiatives to end the violence in northern Uganda. Org. LUCIMA, Okello. Conciliation Resources: London, 2002.

LUCIMA, Okello; NYEKO, Balam. Profiles of the parties of conflict. In: Accord: protracted conflict, elusive peace: initiatives to end the violence in northern Uganda. Org. LUCIMA, Okello. Conciliation Resources: London, 2002.

RUGUMAMU, Severine; GBLA, Osman. Studies in reconstruction and capacity building in post-conflict countries in Africa: Some Lessons Of Experience From Uganda. Harare, Zimbabwe, 2004. Disponível em: https://elibrary.acbfpact.org/acbf/collect/acbf/index/assoc/HASH0180/96b7bb1c/f63e60fd/31a4.dir/Thematic94.pdf. Acesso 17 de junho de 2020.

Uganda blocks a million first-time voters. DW. Fev. 2020. Disponível em: https://www.dw.com/en/uganda-blocks-a-million-first-time-voters/a-5257519. Acesso 17 de junho de 2020.

United Nations Office for the Coordination of Humanitarian Affairs. OCHA’S MISSION. África. Disponível em: https://www.unocha.org/sites/unocha/files/OCHAin2007_0.pdf. Acesso 18 de junio de 2020.