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Estabilização vs Reconstrução: os problemas da intervenção internacional no Afeganistão

 

Beatriz Guilherme Carvalho*

Texto publicado originalmente em: Estadão.

Após a decisão de retirar suas tropas do Afeganistão, os Estados Unidos abriram caminho para o avanço do Talibã sobre o território e, em última instância, a tomada de poder pelo grupo, em 15 agosto de 2021. Este evento ilustra o fracasso da operação militar no país ao longo dos últimos vinte anos, de modo que nos resta a seguinte pergunta: o que explica esse fracasso? Ou melhor, quais variáveis nos ajudam a compreender as principais falhas da intervenção internacional em nome da paz no Afeganistão?

Entrando na década de 2000, após inúmeras falhas nos processos de paz anteriores, as Nações Unidas reconheceram o imperativo de práticas de reconstrução e estabilização para a sustentabilidade dos esforços empregados ao longo das intervenções (BRAGA, MATIJASCIC, 2019). Mais especificamente em relação à operação de construção da paz em situações pós-conflito (post-conflict peacebuilding), os processos de construção do Estado, reforma do setor de segurança (RSS) e desarmamento, desmobilização e reintegração (DDR) contribuem para os objetivos centrais: consolidar a paz, evitar a reincidência do conflito e promover o desenvolvimento (SEDRA, 2003).

Dessa forma, a proposta aqui é observar o período entre 2001 e 2014, sublinhando os erros nas estratégias adotadas pelos EUA e pela comunidade internacional como um todo; e os problemas no processo de reconstrução, levando em consideração as três práticas supracitadas que são essenciais para o sucesso da operação de construção da paz.

Em 2001, a intervenção pelo exército estadunidense tinha como objetivo eliminar a Al-Qaeda e o Talibã. Com a rápida vitória sobre a rede terrorista e a oposição do presidente George W. Bush à implementação de iniciativas de reconstrução no país, os EUA optaram por estratégia “pegada leve” (light footprint). As Nações Unidas concordaram com esse posicionamento, a fim de evitar que a operação se assemelhasse à ocupação soviética que ainda alimentava o ressentimento e a resistência da sociedade afegã (GOSSMAN, 2009).

Entretanto, essa abordagem leve se mostrou negligente. Em primeiro lugar, as forças internacionais de assistência à segurança ficaram restritas às áreas urbanas do país, falhando em garantir as condições de segurança necessárias à realização de projetos de reconstrução e desenvolvimento, sobretudo nas regiões do interior, onde os Talibãs remanescentes se aproveitaram do vácuo político e de segurança e fortaleceram-se. E, em segundo lugar, a falha dessa abordagem esteve também em não aproveitar a janela de oportunidade ideal para a implementação do processo de reconstrução do país. A priorização dos interesses de segurança ocidentais em detrimento das necessidades locais colocou o objetivo de construção do Estado afegão em segundo plano (GOSSMAN, 2009; PARIS, 2013).

Não obstante a ONU ter assumido a dianteira do processo de reforma institucional do Afeganistão, ele fracassou desde o início, com as negociações em Bonn. A conferência de 2001 não contou com a presença do Talibã e, por isso, o acordo resultante não é tido como um acordo de paz. Além disso, os principais líderes da Aliança do Norte influenciaram as decisões ao longo da conferência, opondo-se à realização de práticas reformistas e de desarmamento, de modo que o Acordo de Bonn não incluiu diretrizes ou cronogramas para programas de RSS e DDR. E, ao final das negociações, esses indivíduos, também conhecidos como senhores de guerra, asseguraram cargos-chave na nova administração e, principalmente, no setor de segurança, contrariando o princípio de Justiça Compensatória (Transitional Justice) – que visa punir transgressores de direitos humanos, a fim de construir a confiança da população no governo central (GOSSMAN, 2009).

Somente em 2003, após outras conferências entre as nações-doadoras, um projeto de RSS e DDR foi desenhado, o ANBP (Programa Novos Começos do Afeganistão). Com as duas iniciativas fortemente interligadas pelo programa, a desmobilização esteve voltada à reconstrução das forças de segurança nacionais e, por isso, negligenciou a participação de grupos armados ilegais. Estes só foram tratados pelo programa de Dissolução de Grupos Armados Ilegais (DIAG), a partir de 2005. No entanto, ambos falharam na etapa mais importante do processo de DDR: a reintegração. Dada a incapacidade das forças armadas afegãs absorverem todos os ex-combatentes e a falta de alternativas em empregos e meios de sobrevivência, muitos indivíduos foram remobilizados por grupos armados ilegais (BHATIA, MUGGAH, 2008; THRUELSEN, 2006).

A partir de 2006, diante das campanhas de retorno do grupo, o exército dos EUA optou por uma nova abordagem: combate à insurgência (COIN). A princípio, ela concentrou-se no enfrentamento da rede terrorista no Afeganistão e, para isso, aprofundou as alianças estabelecidas anteriormente com senhores de guerra e milícias, como forma de facilitar o avanço sobre o território. A participação das forças armadas afegãs não era uma opção confiável, uma vez que sua reconstrução não era o objetivo central do exército norte-americano.

A consequência dessa nova estratégia, porém, foi a continuidade do conflito e o aumento dos níveis de violência e insegurança, constituindo um cenário inviável à implementação de projetos de reconstrução e desenvolvimento. De fato, o período até 2008 não apresentou novidades em termos de RSS e DDR, mas sim retrocessos, como rearmamento de civis e milícias e remobilização de ex-combatentes, particularmente por grupos armados ilegais associados às tropas internacionais (DERKSEN, 2014; GOODHAND, HAKIMI, 2014; GOSSMAN, 2009).

Já em 2009, as circunstâncias indicavam o fracasso da intervenção no Afeganistão e o apoio pela presença internacional no país diminuiu (JALALI, 2009). Ainda assim, o presidente Barack Obama optou pelo envio de um maior contingente militar e civil e pela ampliação da abordagem COIN, concentrando-se na insurgência de quaisquer grupos armados ilegais (MARSH, 2014). Ao mesmo tempo, Obama estabeleceu o prazo para a retirada das tropas até 2014, delimitando um período curto entre a chegada das novas tropas e o término da operação. Isso gerou uma dinâmica bastante acelerada e inadequada à implementação de projetos de reconstrução e desenvolvimento, bem como à conclusão da transição da responsabilidade sobre a segurança do país ao governo afegão – o qual ainda carecia de robustez institucional e capacidade orçamentária (COBURN, 2016; MCCRISKEN, 2012; PARIS 2013).

Por fim, em 2014, diante do prazo estabelecido para encerramento da missão e da realização de novas eleições presidenciais, o cenário no Afeganistão era de incerteza acerca do futuro. Até então, a intervenção internacional havia adotado estratégias desconectadas das necessidades da população e do governo local. Na verdade, as iniciativas implementadas eram orientadas muito mais por seus cronogramas do que pela criação de condições adequadas que permitiriam a saída responsável das tropas estrangeiras (CLEARY et al, 2016; QUIE, 2018).

Além disso, o processo de construção da paz foi conduzido sem um acordo que vinculasse todas as partes interessadas politicamente, particularmente o Talibã.  Quase duas décadas depois do início da intervenção militar, os EUA, sob o governo de Donald Trump, firmaram um acordo com o grupo. No entanto, mais uma vez, para ambas as partes, a pauta central era o prazo (e não a garantia de condições de segurança adequadas) para a retirada das tropas estrangeiras do país. Resolução que Joe Biden seguiu à risca, desocupando-se dos impactos que tal decisão teria sobre as negociações entre o governo afegão e o Talibã.

 

* Beatriz Carvalho é formada em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia (IERI-UFU). Redigiu sua monografia sobre a intervenção no Afeganistão e as variáveis que explicam o fracasso do processo de construção da paz no país.

Imagem: Marines no Afeganistão, Operação Moshtarak, 30/01/2010. Por Departamento de Defesa – Estados Unidos/ Wikimedia Commons.

 

Referências Bibliográficas:

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BHATIA, M. V.; MUGGAH, R. The politics of demobilization in Afghanistan. In: Muggah, R. Security and Post-Conflict Reconstruction: dealing with fighters in the aftermath of war. Routledge. 2 Park Square, Milton Park, Abingdon, Oxon OX14 4RN, 2008.

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BRAGA, Camila de Macedo; MATIJASCIC, Vanessa Braga. Operações de Paz: Passado, Presente e Futuro. In: FERREIRA, Marcos Alan S. V.; MASCHIETTO, Roberta Holanda; KUHLMANN, Paulo Roberto Loyolla (Org.) Estudos para a Paz: Conceitos e Debates. São Cristóvão: Editora UFS, 2019, cap. 5.

CLEARY, Seamus; et al. Afghanistan Peace and Reintegration Programme (APRP): Final Evaluation Report. 2016. Disponível em: <https://erc.undp.org/evaluation/evaluations/detail/7618>.

COBURN, N. Losing Afghanistan: An Obituary for the Intervention. Stanford, CA: Stanford University Press, 2016.

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FAIRWEATHER, J. The Good War: Why We Couldn’t Win the War Or the Peace in Afghanistan. New York, NY. Basic Books, 2014.

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GOODHAND, Jonathan; HAKIMI, Aziz. Counterinsurgency, local militias, and statebuilding in Afghanistan. Washington, DC: United States Institute of Peace, 2014.

GOSSMAN, P. Transitional Justice and DDR: The Case of Afghanistan. International Center for Transitional Justice Research Brief, 2009.

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QUIE, Marissa. Peace and exclusion: the Afghanistan peace and reintegration program. Humanity & Society, v. 42, n. 1, p. 21-44, 2018.

RUBIN, B. R. Afghanistan from the Cold War through the War on Terror. New York, NY, Oxford University Press, 2013.

SEDRA, M. New beginning or return to arms? The disarmament, demobilization and reintegration process in Afghanistan. In: State reconstruction and international engagement in Afghanistan. Joint CSP/ZEF (Bonn) symposium, 2003.

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A escalada da violência contra crianças no Afeganistão

Leonardo Taquece*

Texto publicado originalmente em Le Monde Diplomatique Brasil

 

O mundo inteiro ficou em alerta quando o Talibã voltou à capital do Afeganistão, Cabul, no dia 15 de agosto. Contudo, as movimentações do grupo estavam acontecendo desde maio, quando reuniram 85 mil combatentes, de acordo com as estimativas da Otan — um número significativamente maior do que 20 anos atrás.

No mês de julho, o grupo já havia tomado metade do território nacional e, de acordo com relatório publicado em conjunto pelo escritório de direitos humanos da ONU (OHCHR) e a Missão de Assistência da ONU no Afeganistão (Unama), mais mulheres e crianças foram mortas e feridas na primeira metade de 2021 do que nos primeiros seis meses de qualquer ano desde que os registros começaram em 2009.

O Unicef soltou um comunicado de imprensa alertando para a rápida escalada de violações graves contra crianças, apontando que pelo menos 27 haviam sido mortas enquanto 136 ficaram feridas em apenas três dias. Esses números foram registrados em três províncias: Kandahar, Khost e Paktia; e o chefe de operações de campo, Mustapha Ben Messaoud, observou que é notável que há um “aumento muito significativo” das mortes infantis no Afeganistão nessas últimas quatro semanas.

Hoje, a estimativa do Unicef é de que uma em cada duas crianças menores de cinco anos no país sofre de desnutrição aguda grave — e com a falta de acesso a água potável e higiene nos acampamentos humanitários, o risco de cólera e outras doenças segue aumentando de forma exponencial. Além disso, a mais recente onda de infecção de Covid-19 já estava “matando 100 pessoas por dia […] e esses são apenas os casos que são contados”, o que aumentou ainda mais os riscos à vida dessas crianças.

Tendo em vista a situação humanitária e ecoando os temores internacionais sobre o impacto dos combates recentes sobre os civis, o porta-voz do Programa Mundial de Alimentos (PMA), Tomson Phiri, afirma que o conflito “acelerou muito mais rápido do que todos prevíamos e a situação tem todas as marcas de uma catástrofe humanitária”. É difícil enxergar quais raízes estão diretamente ligadas aos movimentos recentes de expansão do Talibã e quais violações já estavam estabelecidas nos últimos anos, mas é inegável o aumento da violência nos últimos meses trouxe consequências devastadoras.

Crianças foram deliberadamente alvejadas em pelo menos uma ocasião: um ataque no dia 8 de maio, em frente à escola Sayed ul-Shuhuda, na cidade de Cabul com mais de 300 vítimas civis, sendo a maioria delas meninas com menos de 18 anos. Totalizando 85 mortes, nenhum grupo assumiu a responsabilidade do ataque, mas tanto a Unama quanto a missão da ONU registraram o ressurgimento de ataques, assassinatos, maus-tratos, perseguição e discriminação nas comunidades afetadas pelos combates da expansão do Talibã desde sua reorganização.

À medida que os combates se intensificam, a Unama demonstrou estar particularmente preocupada com o aumento agudo no número de vítimas civis após 1º de maio, com quase o mesmo número de mortes dos quatro meses anteriores sendo registrado apenas no período de maio a junho. De acordo com o relatório, mulheres e crianças representaram quase metade de todas vítimas civis: 32% eram crianças (468 mortos e 1.214 feridos) enquanto 14% foram mulheres (219 mortas e 508 feridas). A trajetória assustadora desses números aponta para o impacto devastador do conflito sobre os civis.

Dessa forma, a escalada de violência no Afeganistão e suas consequências para as crianças ligam o alerta para um possível número sem precedentes de mortes este ano se a situação não se estabilizar. Por isso, é imprescindível acompanhar a resposta da comunidade internacional em relação à crise de deslocamento forçado que irá se intensificar nos próximos dias, da qual 80% dos quase 250.000 afegãos forçados a fugir desde o final de maio são mulheres e crianças. Com inúmeras vidas em risco, falar sobre a abertura de fronteiras é essencial.

Imagem: Crianças afegãs. Por: isafmedia, Kabul, Afghanistan/ Wikimedia Commons.

Leonardo Rodrigues Taquece é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP), membro do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Grupo de Estudos sobre a Infância nas Relações Internacionais (GeiRI), e do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Direitos Humanos (NUPEDH).