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2016: Crise, polarização e a volta da História

Em 2016 completaram-se 25 anos da queda da URSS e do fim definitivo da Guerra Fria. Contudo, o contexto internacional contemporâneo não poderia ser mais distante do previsto naquele momento. O início da década de 1990 foi um período de otimismo e mesmo euforia no cenário internacional, marcado por prospecções de expansão da democracia liberal e de maior cooperação entre os Estados. A derrota do socialismo real levou a um raciocínio de que a ordem internacional liberal se tornaria hegemônica e garantiria maiores possibilidades de cooperação internacional. Com o inimigo soviético derrotado, os Estados Unidos e a União Europeia começaram a voltar-se para as “novas ameaças” de caráter não estatal e não foram poucos os que anunciaram o desaparecimento da geopolítica. Uma das grandes narrativas da época, apresentada por Francis Fukuyama, previa o “fim da história”, entendida como a disputa entre modelos de organização social. Para Fukuyama, seria o início de um período de hegemonia liberal e que se distanciaria da disputa entre ideologias que marcou a Guerra Fria.
Um quarto de século depois, fica claro que tais previsões não se materializaram. Na verdade, mesmo naquele momento, o otimismo e a visão sobre a hegemonia liberal já eram fortemente contestados, o que se fortaleceu ao decorrer dos anos. Atualmente, seja no campo das disputas políticas internas, seja no que se refere às internacionais, não há dúvida de que a história e a geopolítica permaneceram. No plano externo, as tensões entre Rússia e Estados Unidos recrudesceram em 2016, ampliando uma tendência já clara desde o conflito na Ossétia do Sul em 2008 e da anexação da Crimeia em 2014. Esse ponto fortaleceu uma narrativa de “nova guerra fria”, através da qual alguns analistas parecem querer explicar o presente com lentes do passado. Embora a rivalidade entre Rússia e EUA tenha reaparecido, já não domina o sistema. Não há uma bipolaridade na qual os EUA e a Rússia são as únicas grandes potências, já que a China é, em muitos sentidos, um rival com maior capacidade de se contrapor aos EUA do que a Rússia. A China tem crescido economicamente de maneira importante, descolando-se das outras potências que apresentaram índices mais tímidos e tendo se tornado a maior economia do mundo. O país também aumentou sua capacidade de projeção internacional, assim como sua capacidade militar e tem investido fortemente em desenvolvimento tecnológico.
Além disso, a disputa entre modelos de organização social deixou de existir nos moldes da Guerra Fria e não houve um retorno do ideal comunista. O ano de 2016 foi marcado pela polarização política em âmbito mundial, por um avanço importante de partidos de extrema direita e pelo fortalecimento de uma narrativa anti-globalização e anti-imigração. Nesse contexto, os partidos e lideranças de esquerda tiveram participação bem mais tímida. Felizmente, tanto a direita quanto a esquerda contemporânea não questionam a democracia representativa e buscam chegar ao poder por meio do voto popular.
A tendência de polarização atingiu o centro do sistema internacional e dominou as eleições nos Estados Unidos. Em ambos os partidos surgiram figuras contrastantes, ambos outsiders da elite política, que se destacaram: Bernie Sanders e Donald Trump. O último tornou-se o candidato dos republicanos e de forma inesperada tornou-se o presidente eleito dos EUA. O discurso de Trump rompe com o politicamente correto, questiona o livre-comércio e os benefícios da globalização, mas principalmente aponta o outro como o problema. Não é fator menor Trump ter se apoiado em um discurso de trazer empregos de volta aos EUA, questionando os benefícios da internacionalização econômica. Assim, ganhou o discurso anti-globalização e o neoliberalismo como o conhecemos entra em crise, já que novas narrativas, novas lideranças e novos projetos políticos são demandados por diferentes grupos sociais no centro do sistema internacional.
O período de crise abriu um momento de polarização, mas forças progressistas perderam espaço em 2016 e o debate político deslocou-se à direita. O conservadorismo e o ódio ganharam espaço no ano que termina, fortalecidos por medos e anseios legítimos e pela falta de respostas por parte das forças progressistas. Assim, a expectativa é de instabilidade e as perspectivas de mudanças não dão maiores esperanças. Contudo, de pouco serve negar que as tendências à direita tem conseguido gerar importante mobilização popular. O que as forças progressistas necessitam é de um novo projeto para se contrapor e apresentar possibilidades de mudanças. Há necessidade de repensar a forma de comunicação, entender os anseios e expectativas das massas e dirigir-se a elas. Há que se reconhecer que a história não tem fim: sempre há pluralidade e discordância e é necessário compreensão em relação ao que pensa diferente. Afinal, um mundo de uma única narrativa é um mundo onde o contraditório é silenciado.
Lívia Peres Milani é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES.
Imagem: Rèveillon 2013 By: Leandro Neumann Ciuffo

Os setenta anos do Unicef e a estreita relação entre crianças e conflitos armados

No dia 11 de dezembro, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) completou setenta anos. Esse órgão da ONU foi criado em 1946, logo após a Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de prestar assistência emergencial às crianças que sofreram os impactos do conflito armado – como fome, doenças e falta de estrutura familiar. O aniversário do Unicef nos lembra que, mesmo setenta anos depois, ainda presenciamos um contexto de conflitos armados no qual as crianças têm que conviver com a violência.
A relação entre crianças e conflitos armados é estreita e muito anterior à Segunda Guerra. Em diferentes fases da história como na sociedade espartana, nas Cruzadas da Idade Média, na Guerra Civil Americana, na Guerra do Paraguai e na Primeira Guerra Mundial, já havia relatos de criança envolvidas diretamente nas hostilidades ou que enfrentavam as consequências da violência. Entretanto, somente no século XX – sobretudo após a publicação de documentos relevantes como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Declaração dos Direitos da Criança (1959) e a Convenção sobre os Direitos da Criança(1989) – o tema ganhou maior repercussão internacional e o Unicef destacou-se como um órgão dedicado ao bem-estar das crianças.
De fato, muitos avanços foram conquistados desde 1946. O Unicef produziu diversos relatórios apresentando dados sobre as condições nas quais as crianças vivem e denunciando os principais problemas que elas enfrentam em todo o mundo. O órgão também desempenha a função de pressionar os Estados-membros da ONU a reiterar o compromisso com os direitos da criança. O Unicef ainda ampliou seu escopo de atuação e passou a abarcar – além da proteção da criança em conflitos armados – questões como sobrevivência e desenvolvimento infantil, educação básica e igualdade de gênero, crianças com HIV/AIDS, erradicação da pobreza extrema e fome, ensino primário universal, promoção da igualdade entre sexos, autonomia da mulher e saúde materna. Portanto, houve iniciativas para acompanhar a condição de vida das crianças e cobrar maior comprometimento dos Estados com a proteção da infância.
Porém, quando focamos mais em termos práticos, vemos que a violência gerada pelos conflitos armados continua atingindo as crianças de forma preocupante. Os danos aos quais as crianças estão expostas em um conflito são diversos: elas são utilizadas como soldados; perdem familiares e ficam desamparadas; sofrem com as instabilidades políticas e econômicas dos governos locais que, muitas vezes, não conseguem fornecer às crianças seus direitos mais básicos; sofrem com a violência deliberada que não poupa civis; são vítimas de abusos sexuais, físicos e psicológicos.
Na conjuntura atual, a proteção de crianças em conflitos armados é um assunto especialmente necessário e o trabalho do Unicef é ainda mais desafiador: o órgão tem que acompanhar uma pluralidade de conflitos armados intra ou inter estatais que se proliferam nas mais diferentes regiões do mundo e que envolvem atores estatais e não-estatais. Além disso, há uma preocupação não somente com a recuperação de crianças no pós-guerra, mas também com a proteção das crianças durante os conflitos armados. No leste de Aleppo, por exemplo, estima-se que 40% da população é formada por crianças. Quando ocorre um bombardeio em um local assim é quase inevitável que as crianças estejam entre as vítimas. Mesmo quando os ataques cessam, as crianças que sobrevivem deparam-se com a falta de infra-estrutura, perda de familiares e danos físicos e psicológicos. Ou seja, toda uma geração de crianças acaba sendo afetada pela ausência de condições básicas para seu pleno desenvolvimento. Quando as famílias que vivem em zonas de conflito tentam buscar melhores condições em outros países, as crianças também se encontram em situação vulnerável, pois ficam expostas a rotas de imigração perigosas.
O caso do menino sírio, Aylan Kurdi, que foi encontrado morto em uma praia da Turquia é um exemplo das dificuldades que as crianças enfrentam nessas situações. A imagem da Aylan repercutiu na mídia e despertou a atenção para os perigos que os refugiados enfrentam ao tentar deixar as áreas de guerra. Mais recentemente, outra imagem também de um menino sírio se espalhou pelo mundo: a foto mostra Omran Daqneesh coberto de sangue e poeira, após ser resgatado dos escombros de um bombardeio em Aleppo. Apesar de tais imagens chocarem a sociedade internacional, sabemos que essas não serão as últimas fotos de crianças em meio a catástrofes humanitárias.
Atualmente, o Unicef tem o papel de acompanhar as condições em que as crianças se encontram em meio aos conflitos, articular modos de protegê-las e registrar os abusos a que estão expostas. O fato de já existir uma legislação que protege as crianças durante as hostilidades – diferentemente do contexto da Segunda Guerra, em que essa proteção não era assegurada formalmente – faz com que exista uma pressão internacional mais forte para que elas sejam poupadas e protegidas. Assim como a Segunda Guerra foi um marco para a proteção dos direitos da criança, pois somente após esse conflito conferiu-se maior atenção à situação das crianças, os conflitos armados atuais também podem ser um símbolo da necessidade de repensar estratégias de apoio às crianças em contextos de guerras, de reforçar a fiscalização dos direitos que estão sendo infringidos constantemente e de incentivar a continuidade do trabalho do Unicef.
Giovanna Ayres Arantes de Paiva é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES.
Imagem: Menino com AK-47. By: Kevin Lafferty.