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15 anos de guerra no Iraque: notas sobre uma intervenção (quase) esquecida

“Mission accomplished.” – esse foi o termo empregado por Donald Trump para se referir aos últimos bombardeios aéreos realizados na Síria, em resposta a um ataque químico a civis, supostamente perpetrado pelo governo Assad. De modo simbólico, alguns jornais rememoraram o fato de que “mission accomplished” também era o que dizia uma faixa em frente a qual o presidente George W. Bush fora fotografado em 2003, seis semanas após a invasão do Iraque que, no último mês de março, completou 15 anos. A intervenção iraquiana, programada para durar “(…)cinco dias, cinco semanas ou cinco meses (…) Não mais que isso.” , segundo o então secretário de defesa Donald Rumsfeld, atingiu seu décimo quinto aniversário e, assim como a questão síria, parece tudo, menos uma “missão cumprida”.
A expressão é parte do léxico militar e, segundo o twitter do atual presidente republicano, é um termo “tão bom que deveria ser usado com mais frequência”. A operação, no entanto, parece corresponder menos ao tom cabalístico e conclusivo de Trump, e mais a apenas um entre tantos eventos que têm marcado o aumento progressivo da presença militar norte-americana em território sírio. Atualmente, os EUA contam com um efetivo de 2000 soldados e destinam pelo menos 1% dos gastos de defesa ao conflito no país.
No caso iraquiano, o caminho que pavimentou a invasão já foi reconstruído inúmeras vezes em textos, documentários, livros e toda a sorte de veículos informativos. Apesar de iniciados apenas em 2003, os bombardeios foram planejados após os atentados de 11 de setembro de 2001. A justificativa concedida ao Congresso norte-americano e à comunidade internacional – posse de armas químicas pelo governo de Saddam Hussein – foi desmentida depois do início da guerra pela CIA, em um dos episódios mais vergonhosos da administração Bush. Ainda assim, a presença militar estadunidense em território iraquiano foi preservada e o governo Hussein, derrubado, no que fora um nêmesis para a agenda neoconservadora desde os anos 1990.
Logo no início, o conflito iraquiano provou-se mais complexo e oneroso do que os planos iniciais. A partir da resolução 1483 da ONU, implantou-se uma Coalizão de Autoridade Provisória (CPA), liderada por autoridades americanas e britânicas, cuja função declarada era a promoção da transição política do país e a implementação de um sistema de governo democrático. Em 2006, o governo Bush, recém reeleito, incorporou oficialmente os esforços de nation building à estratégia norte-americana para o Iraque, apontando que a presença militar no país seria postergada, mesmo após a realização das eleições, em 2005, que empossaram o primeiro ministro Nouri al-Maliki. Nesse contexto, chama a atenção o fato de que, apesar de muito contestada em seu início, doméstica e internacionalmente, a guerra do Iraque parece ter, gradualmente, silenciado dissidências em ambas as esferas, o que garantiu seu prolongamento, mesmo com a elevação dos déficits públicos, e o caráter quase unilateral de sua execução.
Tal prolongamento também costuma ser atribuído ao processo de abertura do mercado iraquiano ao capital privado internacional, facilitado durante a invasão. Um estudo recente conduzido pelo projeto “Costs of War” da Brown University aponta que, mesmo antes da intervenção, os governos norte-americano e britânico já vinham fechando contratos com empresas privadas para a atuação na reconstrução, segurança privada e transferência de armamentos para o Iraque. Algumas dessas empresas, como o grupo Halliburton – que contava com o vice-presidente Dick Cheney em seu quadro de acionistas – também assumiu funções relacionadas à manutenção da segurança e exploração de reservas petrolíferas.
Ainda no que tange às empresas privadas militares, tanto a guerra do Iraque, quanto do Afeganistão, elevaram consideravelmente o emprego de soldados mercenários pelas potências interventoras. No caso dos EUA, a sobrecarga dos recursos militares provocada pela “Guerra Global ao Terror” fez com que a contratação de efetivos terceirizados fosse consideravelmente elevada, chegando a atingir uma proporção de 3 para 1 em relação aos efetivos regulares. A ausência de regulamentações mais restritas e as imunidades conferidas a esses indivíduos culminaram em uma série de abusos, cujo ápice foi o escândalo Blackwater, em 2007, no qual um grupo de mercenários abriu fogo contra 17 civis iraquianos.
Episódios como esse, somados à ampliação da rejeição iraquiana à presença estadunidense no país – bem como o aumento da resistência da própria opinião pública americana à guerra – levaram à negociação Bush-Maliki de um Status of Forces Agreement (SoFA), que, dentre outras coisas, estabelecia um cronograma de retirada das tropas norte-americanas até 2011 e regulamentava o caráter das relações bilaterais entre os EUA e o Iraque, garantindo que, mesmo após a retirada, a cooperação em segurança e defesa pudesse ser mantida.
Chegando ao poder, em 2009, Barack Obama – um opositor veemente da guerra do Iraque, desde os anos de Senado em Illinois – se propôs a cumprir a agenda de encerramento do conflito. Em 2010, o processo de diminuição de tropas em campo foi iniciado, a partir da transição da operação Iraqi Freedom (2003-2010) para a operação New Dawn (2010-2011). Em outubro de 2011, o presidente declarou oficialmente que a guerra no Iraque estava terminada, feito que se tornaria um importante capital político para sua reeleição, em 2012. Cumpre ressaltar, contudo, que o caráter da retirada foi essencialmente parcial, considerando que parte dos efetivos mercenários se manteve no país. Alguns inclusive fundaram, junto a agentes locais, empresas privadas iraquianas de segurança que lograram a privatização de boa parte do setor de segurança do Iraque, desde então.
O país voltou à mídia norte-americana em 2014, quando o grupo Estado Islâmico assumiu o controle da cidade de Mosul. O território, altamente fragmentado, econômica, religiosa e etnicamente, cedeu às investidas do grupo sunita, enquanto o governo Obama retomou os bombardeios na região e passou a advogar pela aprovação – não lograda até o presente momento – de uma nova Autorização para o Uso da Força Militar no Congresso americano, visando à atuação estadunidense mais limitada e defensiva nas áreas dominadas pelo ISIS. Em 2017, quando Obama deixou o governo, a “presença limitada e restrita” já totalizava 8900 efetivos, entre os territórios de Iraque e Síria, segundo o Departamento de Defesa.
O sucessor de Obama, Donald Trump, também ascendeu à presidência referindo-se à guerra do Iraque como a “pior decisão da história americana”. Todavia, o tom trumpista foi se alterando com o passar do tempo. Em discursoperante a comunidade de inteligência, proferido em 2017, o presidente afirmou que os EUA deveriam ter “ficado com o petróleo do Iraque”, quando tiveram a chance. Posteriormente, em nova declaração, Trump observou que a potência norte-americana nunca deveria ter saído do território iraquiano. A estratégia de segurança nacional de 2017 (NSS 2017), publicada em dezembro do ano passado pela presidência faz também algumas rápidas menções ao Iraque e à Síria, observando que, mesmo após as vitórias da coalizão ocidental sobre o Estado Islâmico – como a retomada de Mosul – a ameaça do terrorismo se mantinha, exigindo a continuidade das ações americanas na região.
Para além das palavras, o governo Trump pediu ao Congresso um montante de US$ 1.269 bilhões – ainda a ser aprovado para o ano fiscal de 2018 – para o financiamento de atividades de cooperação em segurança e transferência de armamentos ao Iraque. Em março de 2018, o atual premiê iraquiano, Haider al-Abadi, anunciou que ele e o presidente Trump estariam renegociando os termos do Status of Forces Agreement, de modo que as bases militares americanas no país fossem mantidas, mesmo após a vitória sobre o Estado Islâmico.
Até agora, os balanços, não só da guerra do Iraque, mas da chamada “Guerra Global ao Terror”, de modo geral, apontam para mais de 350 mil mortos e um rombo de quase US$ 5,6 trilhões nos gastos públicos estadunidenses. Estimativas recentes projetam que esse valor ainda pode atingir a casa dos US$ 7 trilhões, se considerados os encargos da dívida acumulada e o inchaço nos serviços de saúde e manutenção de famílias de veteranos de guerra. A porcentagem de soldados contratados em relação às tropas regulares é menos precisa, mas segundo reportagem da revista The Atlantic, já atingia pelo menos 50% no Iraque e no Afeganistão, em 2016. Seu emprego se tornou uma forma eficiente de reduzir os custos políticos de fazer a guerra nos EUA, à medida que nem o Congresso e muito menos a opinião pública têm acesso aos dados exatos sobre os gastos com oficiais contratados.
E, ainda assim, para 43% dessa mesma opinião pública, a invasão norte-americana no Iraque é considerada, em 2018, “uma decisão correta”, de acordo com uma pesquisa do instituto Pew Research Center. Opinião similar é sustentada e verbalizada por acadêmicos e pesquisadores de think tanks de renome, segundo os quais os EUA não podem e não devem deixar o Iraque nesse momento.
A justificativa é a aproximação das eleições legislativas iraquianas, a serem realizadas em maio desse ano, e que trazem como “novidade” o aumento do protagonismo das forças políticas curdas e de milícias associadas ao Irã, ambas as quais desempenharam importantes papeis no combate ao Estado Islâmico. Alguns desses grupos se opõem à manutenção da presença estadunidense no Iraque e na região. É possível, portanto, que os resultados dessas eleições, que também culminarão na escolha de um novo primeiro ministro, exerçam grande impacto sobre a geopolítica do Oriente Médio. O imbróglio pela definição da arquitetura regional, envolvendo Iraque, Irã e aliados norte-americanos, como Arábia Saudita e Israel, tem ainda como pano de fundo as negociações do acordo nuclear iraniano, que não teve um destino definido pelo governo Trump.
Esse, por fim, continua a se cercar de figuras conservadoras, muitas das quais foram defensoras veementes da intervenção no Iraque, em 2003, como o novo Conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton. Com essas questões em mente, podemos afirmar que a missão no Iraque não se cumpriu e nem pretende se cumprir no curto ou médio prazo. Ela permanece, indefinida e deliberadamente, no arsenal das guerras estadunidenses esquecidas do século XXI.
Imagem: Tanques em Bagdad durante ocupação do Iraque. Por: By Shockabrah, CC, Wikimedia Commons.
Clarissa Forner é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas – UNESP/UNICAMP/PUC-SP e pesquisadora do Gedes.

15 anos de guerra no Iraque: notas sobre uma intervenção (quase) esquecida

“Mission accomplished.” – esse foi o termo empregado por Donald Trump para se referir aos últimos bombardeios aéreos realizados na Síria, em resposta a um ataque químico a civis, supostamente perpetrado pelo governo Assad. De modo simbólico, alguns jornais rememoraram o fato de que “mission accomplished” também era o que dizia uma faixa em frente a qual o presidente George W. Bush fora fotografado em 2003, seis semanas após a invasão do Iraque que, no último mês de março, completou 15 anos. A intervenção iraquiana, programada para durar “(…)cinco dias, cinco semanas ou cinco meses (…) Não mais que isso.” , segundo o então secretário de defesa Donald Rumsfeld, atingiu seu décimo quinto aniversário e, assim como a questão síria, parece tudo, menos uma “missão cumprida”.
A expressão é parte do léxico militar e, segundo o twitter do atual presidente republicano, é um termo “tão bom que deveria ser usado com mais frequência”. A operação, no entanto, parece corresponder menos ao tom cabalístico e conclusivo de Trump, e mais a apenas um entre tantos eventos que têm marcado o aumento progressivo da presença militar norte-americana em território sírio. Atualmente, os EUA contam com um efetivo de 2000 soldados e destinam pelo menos 1% dos gastos de defesa ao conflito no país.
No caso iraquiano, o caminho que pavimentou a invasão já foi reconstruído inúmeras vezes em textos, documentários, livros e toda a sorte de veículos informativos. Apesar de iniciados apenas em 2003, os bombardeios foram planejados após os atentados de 11 de setembro de 2001. A justificativa concedida ao Congresso norte-americano e à comunidade internacional – posse de armas químicas pelo governo de Saddam Hussein – foi desmentida depois do início da guerra pela CIA, em um dos episódios mais vergonhosos da administração Bush. Ainda assim, a presença militar estadunidense em território iraquiano foi preservada e o governo Hussein, derrubado, no que fora um nêmesis para a agenda neoconservadora desde os anos 1990.
Logo no início, o conflito iraquiano provou-se mais complexo e oneroso do que os planos iniciais. A partir da resolução 1483 da ONU, implantou-se uma Coalizão de Autoridade Provisória (CPA), liderada por autoridades americanas e britânicas, cuja função declarada era a promoção da transição política do país e a implementação de um sistema de governo democrático. Em 2006, o governo Bush, recém reeleito, incorporou oficialmente os esforços de nation building à estratégia norte-americana para o Iraque, apontando que a presença militar no país seria postergada, mesmo após a realização das eleições, em 2005, que empossaram o primeiro ministro Nouri al-Maliki. Nesse contexto, chama a atenção o fato de que, apesar de muito contestada em seu início, doméstica e internacionalmente, a guerra do Iraque parece ter, gradualmente, silenciado dissidências em ambas as esferas, o que garantiu seu prolongamento, mesmo com a elevação dos déficits públicos, e o caráter quase unilateral de sua execução.
Tal prolongamento também costuma ser atribuído ao processo de abertura do mercado iraquiano ao capital privado internacional, facilitado durante a invasão. Um estudo recente conduzido pelo projeto “Costs of War” da Brown University aponta que, mesmo antes da intervenção, os governos norte-americano e britânico já vinham fechando contratos com empresas privadas para a atuação na reconstrução, segurança privada e transferência de armamentos para o Iraque. Algumas dessas empresas, como o grupo Halliburton – que contava com o vice-presidente Dick Cheney em seu quadro de acionistas – também assumiu funções relacionadas à manutenção da segurança e exploração de reservas petrolíferas.
Ainda no que tange às empresas privadas militares, tanto a guerra do Iraque, quanto do Afeganistão, elevaram consideravelmente o emprego de soldados mercenários pelas potências interventoras. No caso dos EUA, a sobrecarga dos recursos militares provocada pela “Guerra Global ao Terror” fez com que a contratação de efetivos terceirizados fosse consideravelmente elevada, chegando a atingir uma proporção de 3 para 1 em relação aos efetivos regulares. A ausência de regulamentações mais restritas e as imunidades conferidas a esses indivíduos culminaram em uma série de abusos, cujo ápice foi o escândalo Blackwater, em 2007, no qual um grupo de mercenários abriu fogo contra 17 civis iraquianos.
Episódios como esse, somados à ampliação da rejeição iraquiana à presença estadunidense no país – bem como o aumento da resistência da própria opinião pública americana à guerra – levaram à negociação Bush-Maliki de um Status of Forces Agreement (SoFA), que, dentre outras coisas, estabelecia um cronograma de retirada das tropas norte-americanas até 2011 e regulamentava o caráter das relações bilaterais entre os EUA e o Iraque, garantindo que, mesmo após a retirada, a cooperação em segurança e defesa pudesse ser mantida.
Chegando ao poder, em 2009, Barack Obama – um opositor veemente da guerra do Iraque, desde os anos de Senado em Illinois – se propôs a cumprir a agenda de encerramento do conflito. Em 2010, o processo de diminuição de tropas em campo foi iniciado, a partir da transição da operação Iraqi Freedom (2003-2010) para a operação New Dawn (2010-2011). Em outubro de 2011, o presidente declarou oficialmente que a guerra no Iraque estava terminada, feito que se tornaria um importante capital político para sua reeleição, em 2012. Cumpre ressaltar, contudo, que o caráter da retirada foi essencialmente parcial, considerando que parte dos efetivos mercenários se manteve no país. Alguns inclusive fundaram, junto a agentes locais, empresas privadas iraquianas de segurança que lograram a privatização de boa parte do setor de segurança do Iraque, desde então.
O país voltou à mídia norte-americana em 2014, quando o grupo Estado Islâmico assumiu o controle da cidade de Mosul. O território, altamente fragmentado, econômica, religiosa e etnicamente, cedeu às investidas do grupo sunita, enquanto o governo Obama retomou os bombardeios na região e passou a advogar pela aprovação – não lograda até o presente momento – de uma nova Autorização para o Uso da Força Militar no Congresso americano, visando à atuação estadunidense mais limitada e defensiva nas áreas dominadas pelo ISIS. Em 2017, quando Obama deixou o governo, a “presença limitada e restrita” já totalizava 8900 efetivos, entre os territórios de Iraque e Síria, segundo o Departamento de Defesa.
O sucessor de Obama, Donald Trump, também ascendeu à presidência referindo-se à guerra do Iraque como a “pior decisão da história americana”. Todavia, o tom trumpista foi se alterando com o passar do tempo. Em discursoperante a comunidade de inteligência, proferido em 2017, o presidente afirmou que os EUA deveriam ter “ficado com o petróleo do Iraque”, quando tiveram a chance. Posteriormente, em nova declaração, Trump observou que a potência norte-americana nunca deveria ter saído do território iraquiano. A estratégia de segurança nacional de 2017 (NSS 2017), publicada em dezembro do ano passado pela presidência faz também algumas rápidas menções ao Iraque e à Síria, observando que, mesmo após as vitórias da coalizão ocidental sobre o Estado Islâmico – como a retomada de Mosul – a ameaça do terrorismo se mantinha, exigindo a continuidade das ações americanas na região.
Para além das palavras, o governo Trump pediu ao Congresso um montante de US$ 1.269 bilhões – ainda a ser aprovado para o ano fiscal de 2018 – para o financiamento de atividades de cooperação em segurança e transferência de armamentos ao Iraque. Em março de 2018, o atual premiê iraquiano, Haider al-Abadi, anunciou que ele e o presidente Trump estariam renegociando os termos do Status of Forces Agreement, de modo que as bases militares americanas no país fossem mantidas, mesmo após a vitória sobre o Estado Islâmico.
Até agora, os balanços, não só da guerra do Iraque, mas da chamada “Guerra Global ao Terror”, de modo geral, apontam para mais de 350 mil mortos e um rombo de quase US$ 5,6 trilhões nos gastos públicos estadunidenses. Estimativas recentes projetam que esse valor ainda pode atingir a casa dos US$ 7 trilhões, se considerados os encargos da dívida acumulada e o inchaço nos serviços de saúde e manutenção de famílias de veteranos de guerra. A porcentagem de soldados contratados em relação às tropas regulares é menos precisa, mas segundo reportagem da revista The Atlantic, já atingia pelo menos 50% no Iraque e no Afeganistão, em 2016. Seu emprego se tornou uma forma eficiente de reduzir os custos políticos de fazer a guerra nos EUA, à medida que nem o Congresso e muito menos a opinião pública têm acesso aos dados exatos sobre os gastos com oficiais contratados.
E, ainda assim, para 43% dessa mesma opinião pública, a invasão norte-americana no Iraque é considerada, em 2018, “uma decisão correta”, de acordo com uma pesquisa do instituto Pew Research Center. Opinião similar é sustentada e verbalizada por acadêmicos e pesquisadores de think tanks de renome, segundo os quais os EUA não podem e não devem deixar o Iraque nesse momento.
A justificativa é a aproximação das eleições legislativas iraquianas, a serem realizadas em maio desse ano, e que trazem como “novidade” o aumento do protagonismo das forças políticas curdas e de milícias associadas ao Irã, ambas as quais desempenharam importantes papeis no combate ao Estado Islâmico. Alguns desses grupos se opõem à manutenção da presença estadunidense no Iraque e na região. É possível, portanto, que os resultados dessas eleições, que também culminarão na escolha de um novo primeiro ministro, exerçam grande impacto sobre a geopolítica do Oriente Médio. O imbróglio pela definição da arquitetura regional, envolvendo Iraque, Irã e aliados norte-americanos, como Arábia Saudita e Israel, tem ainda como pano de fundo as negociações do acordo nuclear iraniano, que não teve um destino definido pelo governo Trump.
Esse, por fim, continua a se cercar de figuras conservadoras, muitas das quais foram defensoras veementes da intervenção no Iraque, em 2003, como o novo Conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton. Com essas questões em mente, podemos afirmar que a missão no Iraque não se cumpriu e nem pretende se cumprir no curto ou médio prazo. Ela permanece, indefinida e deliberadamente, no arsenal das guerras estadunidenses esquecidas do século XXI.
Imagem: Tanques em Bagdad durante ocupação do Iraque. Por: By Shockabrah, CC, Wikimedia Commons.
Clarissa Forner é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas – UNESP/UNICAMP/PUC-SP e pesquisadora do Gedes.

Reflexões sobre crianças e adolescentes no tráfico do Rio de Janeiro

O emprego das crianças-soldado é apenas uma das formas de violência contra a infância. O envolvimento dessas crianças em conflitos armados, convivendo com as partes beligerantes, portando armas, matando e morrendo gera desconforto e incômodo, pois reúne dois mundos aparentemente separados: o da criança e o do adulto. Porém, existem outras manifestações da violência contra a criança que não são menos preocupantes e estão presentes cotidianamente no Brasil. É o caso do envolvimento de crianças e adolescentes – meninas e meninos – no tráfico de drogas. Ao contrário das crianças-soldado, os jovens do tráfico não necessariamente estão em um contexto de guerra ou conflito armado, mas ainda assim são afetados pela violência diariamente. Este fenômeno pode ser observado, sobretudo, em algumas comunidades do Rio de Janeiro.
A questão específica das crianças envolvidas no narcotráfico no Rio já foi objeto de estudos, de reportagens na mídia e de trabalho de algumas ONGs. O tema merece uma análise atenta devido à sua complexidade e aos fatores estruturais que envolve. Uma criança ou adolescente pode assumir diferentes funções no narcotráfico: vigiar e avisar sobre a chegada de forças de segurança ou grupos rivais, transportar armas e drogas, vender drogas, administrar bocas de fumo e utilizar armas em confrontos. Mas por que empregar pessoas de uma faixa etária tão jovem em atividades como essas?
As crianças e os adolescentes podem representar vantagens imediatas para os adultos que as empregam no tráfico. Apesar da idade, já conseguem desempenhar suas funções com eficiência; conseguem utilizar armas leves; não enfrentam a mesma punição legal que os adultos e recebem um pagamento relativamente menor. Além disso, muitos jovens procuram esse tipo de atividade, pois alguns fatores estruturais os levam a isso. Situações de abandono afetivo; falta de estrutura familiar; dificuldade de continuar nos estudos e, futuramente, de ingressar em uma universidade; necessidade de trabalhar para ajudar na renda familiar; dificuldade de conseguir empregos formais; discriminação racial; baixa perspectiva de ascensão econômica e social; falta de apoio para se inserir em atividades culturais, e contato com parentes e amigos que já estão envolvidos no tráfico também contribuem para que a juventude enxergue nesse trabalho um caminho. Assim, as atividades no tráfico representam uma possibilidade de obter status social e ganhos econômicos difíceis de serem alcançados de outra forma. Existe, pois, a percepção de que entrar para o tráfico é uma forma de compensar parte das desigualdades e injustiças sociais a que são constantemente expostas.
Prevenir que crianças e adolescentes participem do narcotráfico envolve, necessariamente, discussões mais amplas sobre desigualdade econômica e social, racismo, educação e cultura, trabalho infantil, legalização das drogas e as funções da polícia e das forças armadas na sociedade. Tocar nesses pontos demanda um esforço de diálogo entre vários setores da sociedade, mas é um esforço essencial, visto que a compreensão dessas questões mais profundas e das conjunturas nas quais as crianças estão inseridas afeta diretamente a forma pela qual as pessoas – não apenas as crianças – das comunidades em conflito são tratadas.
Outro ponto fundamental é o entendimento e reconhecimento das crianças como atores capazes de expressar opiniões e realizar mudanças em suas comunidades. Geralmente, as crianças e os adolescentes são caracterizados como seres passivos, imaturos e, muitas vezes, são apontados apenas como vítimas das situações que os atingem. Ou seja, há uma idealização e universalização, sobretudo do conceito de criança, atrelado ao imaginário de que o jovem é somente um receptáculo do mundo adulto, isto é, observa e absorve passivamente o que é imposto pelos adultos devido à falta de maturidade para uma reflexão mais aprofundada da realidade. Assim, crianças e adolescentes que fogem desse estereótipo são considerados "menos crianças", no sentido em que estão mais distantes daquilo que é entendido como o universo infantil e mais próximos do universo adulto. Entretanto, crianças e adolescentes envolvidos no tráfico não são "menos crianças". O que acontece é que suas respectivas infâncias foram construídas socialmente de uma maneira que lhes foi bloqueado o acesso a certos direitos que as pessoas pensam ser intrínsecas às crianças como educação, saúde, lazer e afeto. Apesar de existirem alguns documentos que tentam garantir direitos básicos, como a Convenção sobre os Direitos da Criança e o Estatuto da Criança e do Adolescente, isso nem sempre se torna realidade.
O que queremos ressaltar é que as crianças e adolescentes podem não se restringir ao papel de vítimas, visto que podem possuir capacidade para mudar suas realidades. Dizer isso não implica em defender a redução da maioridade penal ou punições mais severas para os jovens, pois essas atitudes agravariam a já preocupante marginalização da juventude das comunidades, além de aprofundar o abismo entre as diferentes infâncias que existem em uma mesma cidade: de um lado, os jovens que gozam de seus direitos, pois têm acesso a condições de vida mais privilegiadas e, de outro, essas crianças e adolescentes que convivem diariamente com a violência do tráfico, da polícia ou das forças armadas. Dizer que crianças e adolescentes têm capacidade de agir e são mais do que somente vítimas significa incluí-los em esforços para reduzir a violência e pensar medidas de redução das desigualdades e ouvir suas opiniões, reconhecendo-os como agentes transformadores e não como inimigos a serem combatidos.
A atual situação em que o Rio se encontra, sob intervenção federal, não melhora as condições de vida, tampouco confere protagonismo a esses jovens. Se, a princípio, pode parecer que as forças armadas fornecem maior segurança para as crianças que vivem nas comunidades, em um olhar mais atento percebemos que os fatores estruturais que citamos não são, de fato, resolvidos por meio do uso da força. Pelo contrário, a intervenção contribui para perpetuar a ideia de que as pessoas que moram nas comunidades são inimigos, não cidadãos. Revistar as mochilas das crianças não garante segurança e ainda escancara o quanto crianças e adolescentes das comunidades cariocas, majoritariamente pobres e negras, são tratadas de modo discriminatório.
A forma de lidar com crianças e adolescentes das comunidades reflete preconceitos estruturais de nossa própria sociedade e reforça a discriminação em nome de uma pretensa segurança e bem-estar dos jovens. A construção da paz passa, necessariamente, pela participação efetiva das crianças e adolescentes. A paz, nesse contexto, é entendida de forma mais ampla, como o pleno aproveitamento das capacidades de ação dos jovens, da melhoria das condições em que eles vivem e da redução das desigualdades. As crianças e os adolescentes ganham mais quando estão inseridos nos debates do que quando têm suas reais capacidades subestimadas.
Giovanna Ayres é doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e pesquisadora do Gedes.
Imagem: Mão de criança atrás de grade. Por: Matteo Canessa,

Reflexões sobre crianças e adolescentes no tráfico do Rio de Janeiro

O emprego das crianças-soldado é apenas uma das formas de violência contra a infância. O envolvimento dessas crianças em conflitos armados, convivendo com as partes beligerantes, portando armas, matando e morrendo gera desconforto e incômodo, pois reúne dois mundos aparentemente separados: o da criança e o do adulto. Porém, existem outras manifestações da violência contra a criança que não são menos preocupantes e estão presentes cotidianamente no Brasil. É o caso do envolvimento de crianças e adolescentes – meninas e meninos – no tráfico de drogas. Ao contrário das crianças-soldado, os jovens do tráfico não necessariamente estão em um contexto de guerra ou conflito armado, mas ainda assim são afetados pela violência diariamente. Este fenômeno pode ser observado, sobretudo, em algumas comunidades do Rio de Janeiro.
A questão específica das crianças envolvidas no narcotráfico no Rio já foi objeto de estudos, de reportagens na mídia e de trabalho de algumas ONGs. O tema merece uma análise atenta devido à sua complexidade e aos fatores estruturais que envolve. Uma criança ou adolescente pode assumir diferentes funções no narcotráfico: vigiar e avisar sobre a chegada de forças de segurança ou grupos rivais, transportar armas e drogas, vender drogas, administrar bocas de fumo e utilizar armas em confrontos. Mas por que empregar pessoas de uma faixa etária tão jovem em atividades como essas?
As crianças e os adolescentes podem representar vantagens imediatas para os adultos que as empregam no tráfico. Apesar da idade, já conseguem desempenhar suas funções com eficiência; conseguem utilizar armas leves; não enfrentam a mesma punição legal que os adultos e recebem um pagamento relativamente menor. Além disso, muitos jovens procuram esse tipo de atividade, pois alguns fatores estruturais os levam a isso. Situações de abandono afetivo; falta de estrutura familiar; dificuldade de continuar nos estudos e, futuramente, de ingressar em uma universidade; necessidade de trabalhar para ajudar na renda familiar; dificuldade de conseguir empregos formais; discriminação racial; baixa perspectiva de ascensão econômica e social; falta de apoio para se inserir em atividades culturais, e contato com parentes e amigos que já estão envolvidos no tráfico também contribuem para que a juventude enxergue nesse trabalho um caminho. Assim, as atividades no tráfico representam uma possibilidade de obter status social e ganhos econômicos difíceis de serem alcançados de outra forma. Existe, pois, a percepção de que entrar para o tráfico é uma forma de compensar parte das desigualdades e injustiças sociais a que são constantemente expostas.
Prevenir que crianças e adolescentes participem do narcotráfico envolve, necessariamente, discussões mais amplas sobre desigualdade econômica e social, racismo, educação e cultura, trabalho infantil, legalização das drogas e as funções da polícia e das forças armadas na sociedade. Tocar nesses pontos demanda um esforço de diálogo entre vários setores da sociedade, mas é um esforço essencial, visto que a compreensão dessas questões mais profundas e das conjunturas nas quais as crianças estão inseridas afeta diretamente a forma pela qual as pessoas – não apenas as crianças – das comunidades em conflito são tratadas.
Outro ponto fundamental é o entendimento e reconhecimento das crianças como atores capazes de expressar opiniões e realizar mudanças em suas comunidades. Geralmente, as crianças e os adolescentes são caracterizados como seres passivos, imaturos e, muitas vezes, são apontados apenas como vítimas das situações que os atingem. Ou seja, há uma idealização e universalização, sobretudo do conceito de criança, atrelado ao imaginário de que o jovem é somente um receptáculo do mundo adulto, isto é, observa e absorve passivamente o que é imposto pelos adultos devido à falta de maturidade para uma reflexão mais aprofundada da realidade. Assim, crianças e adolescentes que fogem desse estereótipo são considerados “menos crianças”, no sentido em que estão mais distantes daquilo que é entendido como o universo infantil e mais próximos do universo adulto. Entretanto, crianças e adolescentes envolvidos no tráfico não são “menos crianças”. O que acontece é que suas respectivas infâncias foram construídas socialmente de uma maneira que lhes foi bloqueado o acesso a certos direitos que as pessoas pensam ser intrínsecas às crianças como educação, saúde, lazer e afeto. Apesar de existirem alguns documentos que tentam garantir direitos básicos, como a Convenção sobre os Direitos da Criança e o Estatuto da Criança e do Adolescente, isso nem sempre se torna realidade.
O que queremos ressaltar é que as crianças e adolescentes podem não se restringir ao papel de vítimas, visto que podem possuir capacidade para mudar suas realidades. Dizer isso não implica em defender a redução da maioridade penal ou punições mais severas para os jovens, pois essas atitudes agravariam a já preocupante marginalização da juventude das comunidades, além de aprofundar o abismo entre as diferentes infâncias que existem em uma mesma cidade: de um lado, os jovens que gozam de seus direitos, pois têm acesso a condições de vida mais privilegiadas e, de outro, essas crianças e adolescentes que convivem diariamente com a violência do tráfico, da polícia ou das forças armadas. Dizer que crianças e adolescentes têm capacidade de agir e são mais do que somente vítimas significa incluí-los em esforços para reduzir a violência e pensar medidas de redução das desigualdades e ouvir suas opiniões, reconhecendo-os como agentes transformadores e não como inimigos a serem combatidos.
A atual situação em que o Rio se encontra, sob intervenção federal, não melhora as condições de vida, tampouco confere protagonismo a esses jovens. Se, a princípio, pode parecer que as forças armadas fornecem maior segurança para as crianças que vivem nas comunidades, em um olhar mais atento percebemos que os fatores estruturais que citamos não são, de fato, resolvidos por meio do uso da força. Pelo contrário, a intervenção contribui para perpetuar a ideia de que as pessoas que moram nas comunidades são inimigos, não cidadãos. Revistar as mochilas das crianças não garante segurança e ainda escancara o quanto crianças e adolescentes das comunidades cariocas, majoritariamente pobres e negras, são tratadas de modo discriminatório.
A forma de lidar com crianças e adolescentes das comunidades reflete preconceitos estruturais de nossa própria sociedade e reforça a discriminação em nome de uma pretensa segurança e bem-estar dos jovens. A construção da paz passa, necessariamente, pela participação efetiva das crianças e adolescentes. A paz, nesse contexto, é entendida de forma mais ampla, como o pleno aproveitamento das capacidades de ação dos jovens, da melhoria das condições em que eles vivem e da redução das desigualdades. As crianças e os adolescentes ganham mais quando estão inseridos nos debates do que quando têm suas reais capacidades subestimadas.
Giovanna Ayres é doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e pesquisadora do Gedes.
Imagem: Mão de criança atrás de grade. Por: Matteo Canessa,

Baluartes da moral e a ressaca do autoritarismo: sobre a insistência em fazer Política

Aos que sonhavam com a estabilidade, o ano de 2018 veio para comprovar que não há crise que não possa piorar. O caos político instaurado com o processo ilegítimo de deposição da presidenta Dilma Rousseff levou a uma verdadeira profusão de forças conservadoras em nossa sociedade. É gritante a ascensão de movimentos políticos reivindicando, por paradoxal que o seja, a restrição dos direitos sociais. É ainda mais alarmante a movimentação de setores militares no ímpeto de sobressair-se enquanto atores políticos, articulando candidaturas e aproximando-se inclusive de tais grupos políticos.
Para a pesquisadora Maria Celina D’Araujo[1] as forças armadas brasileiras “se beneficiaram da maturação do corporativismo como política de Estado para fazer valer seus interesses e, passado o período de governo autoritário, utilizaram esse recurso como forma de explicitar e evidenciar demandas da corporação”, estando “fora do campo político-eleitoral” desde sua retirada do poder ao final dos anos 1980. Se em algum momento houve, de fato, tal retirada do campo político-eleitoral, no cenário atual esta tese cai por terra. Para além das controversas declarações do atual comandante do Exército, general Villas Bôas, chama atenção o movimento de militares da reserva que buscam não apenas a candidatura de pessoal próprio, mas também a alavancada de candidatos que, em seus parâmetros, condizem com o que o Brasil “precisa” em termos de política.
Na ativa ou na reserva, é inegável a insistência de setores das forças armadas brasileiras em se conformar enquanto ator político. A princípio, os militares da reserva têm garantidos os seus direitos de manifestação política. Os da ativa, como Villas Bôas, ao fazê-lo desrespeitam o Regulamento Disciplinar de suas respectivas forças, quebram a hierarquia a qual estão submetidos e erroneamente se configuram enquanto atores políticos em contexto no qual só lhes cabe acatar ordens. Como se prevendo os fatos acima mencionados, matéria da revista Le Monde Diplomatique Brasil, veiculada em Março de 2018, trazia um apontamento interessante acerca da insistente manifestação política dos militares. O pesquisador Fábio Malini, citado na matéria, em uma análise das redes políticas brasileiras aponta que há uma considerável participação de membros das forças armadas em redes sociais, tecendo comentários similares aos do comandante do Exército e dos demais generais que o seguiram.
A pergunta é: tendo em vista que o pacto hobbesiano implica a cessão do direito de uso dos meios de violência enquanto forma de resolução dos conflitos sociais em troca da garantia de ordem e proteção providas pelo Estado, seria sensato que os integrantes dos braços armados deste mesmo Estado estivessem inseridos na atividade política? Em outras palavras: num quadro democrático, é possível conceber que indivíduos advindos das forças policiais e militares se conformem enquanto atores políticos? Não bastasse o exercício de funções alheias aos seus deveres constitucionais – como a administração de escolas –, os militares insistem em fazer política, intenção que nunca esteve verdadeiramente ausente.
Resultado de um processo de transição pactuado, sempre houve na caserna a pretensão de tutela em relação à política brasileira, como se a eles coubessem o resguardo da vida política e, sobretudo, da ordem no país. Os resquícios de tal processo são diversos. Citamos aqui a crescente participação das forças armadas em ações de segurança pública enquanto fruto de tais prerrogativas mantidas quando da negociação de sua saída do governo. Sua função seria, portanto, a de um Poder Moderador, responsável pelo funcionamento das demais instituições. É sintomática, nesse sentido, a declaração do general Hamilton Mourão, famoso pelas manifestações controversas e antidemocráticas acerca de uma possível intervenção militar no país, sobre a “necessidade de candidaturas militares” a postos políticos. Em 26 de Fevereiro de 2018, o general, atualmente na reserva, afirmou “planejar uma frente de candidatos das Forças Armadas” para as eleições deste ano. Mesmo na reserva, o general se mostra ativo em fazer dos militares atores políticos. Sua crítica da intervenção federal no Rio de Janeiro exemplifica sua linha de pensamento, uma vez que enfoca, justamente, o fato de os militares terem recebido “apenas” poder militar. Por absurdo que o seja, para ele a situação demandaria que os militares obtivessem também poder político!
Daí que retomo o questionamento: podem os militares fazer política? A questão aqui não é negar aos militares os direitos inerentes à cidadania. Entretanto, pelas razões já abordadas, a preocupação com os efeitos da ascensão militar a cargos decisórios é justificada. A questão posta é se os militares estão dispostos a jogar o jogo político e se submeterem às regras de uma sociedade alegadamente democrática ou se, mais uma vez, romperão com tais regras quando, por seus padrões morais, a sociedade estiver desvirtuada. O ranço autoritário que permeia setores das forças armadas brasileiras é contraditório às iniciativas de participação nas dinâmicas político-partidárias. O jogo democrático da representação política dispensa o uso da violência e do autoritarismo.
[1] Militares, Democracia e Desenvolvimento: Brasil e América do Sul. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010, p. 125-126.
Imagem 1: Tweet do general Villas Bôas, comandante do Exército.
Imagem 2: Paraqueditas dos Exército Brasileiro. Por: Exército Brasileiro.
Jorge Matheus Oliveira Rodrigues é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP).

Baluartes da moral e a ressaca do autoritarismo: sobre a insistência em fazer Política

Aos que sonhavam com a estabilidade, o ano de 2018 veio para comprovar que não há crise que não possa piorar. O caos político instaurado com o processo ilegítimo de deposição da presidenta Dilma Rousseff levou a uma verdadeira profusão de forças conservadoras em nossa sociedade. É gritante a ascensão de movimentos políticos reivindicando, por paradoxal que o seja, a restrição dos direitos sociais. É ainda mais alarmante a movimentação de setores militares no ímpeto de sobressair-se enquanto atores políticos, articulando candidaturas e aproximando-se inclusive de tais grupos políticos.
Para a pesquisadora Maria Celina D’Araujo[1] as forças armadas brasileiras “se beneficiaram da maturação do corporativismo como política de Estado para fazer valer seus interesses e, passado o período de governo autoritário, utilizaram esse recurso como forma de explicitar e evidenciar demandas da corporação”, estando “fora do campo político-eleitoral” desde sua retirada do poder ao final dos anos 1980. Se em algum momento houve, de fato, tal retirada do campo político-eleitoral, no cenário atual esta tese cai por terra. Para além das controversas declarações do atual comandante do Exército, general Villas Bôas, chama atenção o movimento de militares da reserva que buscam não apenas a candidatura de pessoal próprio, mas também a alavancada de candidatos que, em seus parâmetros, condizem com o que o Brasil “precisa” em termos de política.
Na ativa ou na reserva, é inegável a insistência de setores das forças armadas brasileiras em se conformar enquanto ator político. A princípio, os militares da reserva têm garantidos os seus direitos de manifestação política. Os da ativa, como Villas Bôas, ao fazê-lo desrespeitam o Regulamento Disciplinar de suas respectivas forças, quebram a hierarquia a qual estão submetidos e erroneamente se configuram enquanto atores políticos em contexto no qual só lhes cabe acatar ordens. Como se prevendo os fatos acima mencionados, matéria da revista Le Monde Diplomatique Brasil, veiculada em Março de 2018, trazia um apontamento interessante acerca da insistente manifestação política dos militares. O pesquisador Fábio Malini, citado na matéria, em uma análise das redes políticas brasileiras aponta que há uma considerável participação de membros das forças armadas em redes sociais, tecendo comentários similares aos do comandante do Exército e dos demais generais que o seguiram.
A pergunta é: tendo em vista que o pacto hobbesiano implica a cessão do direito de uso dos meios de violência enquanto forma de resolução dos conflitos sociais em troca da garantia de ordem e proteção providas pelo Estado, seria sensato que os integrantes dos braços armados deste mesmo Estado estivessem inseridos na atividade política? Em outras palavras: num quadro democrático, é possível conceber que indivíduos advindos das forças policiais e militares se conformem enquanto atores políticos? Não bastasse o exercício de funções alheias aos seus deveres constitucionais – como a administração de escolas –, os militares insistem em fazer política, intenção que nunca esteve verdadeiramente ausente.
Resultado de um processo de transição pactuado, sempre houve na caserna a pretensão de tutela em relação à política brasileira, como se a eles coubessem o resguardo da vida política e, sobretudo, da ordem no país. Os resquícios de tal processo são diversos. Citamos aqui a crescente participação das forças armadas em ações de segurança pública enquanto fruto de tais prerrogativas mantidas quando da negociação de sua saída do governo. Sua função seria, portanto, a de um Poder Moderador, responsável pelo funcionamento das demais instituições. É sintomática, nesse sentido, a declaração do general Hamilton Mourão, famoso pelas manifestações controversas e antidemocráticas acerca de uma possível intervenção militar no país, sobre a “necessidade de candidaturas militares” a postos políticos. Em 26 de Fevereiro de 2018, o general, atualmente na reserva, afirmou “planejar uma frente de candidatos das Forças Armadas” para as eleições deste ano. Mesmo na reserva, o general se mostra ativo em fazer dos militares atores políticos. Sua crítica da intervenção federal no Rio de Janeiro exemplifica sua linha de pensamento, uma vez que enfoca, justamente, o fato de os militares terem recebido “apenas” poder militar. Por absurdo que o seja, para ele a situação demandaria que os militares obtivessem também poder político!
Daí que retomo o questionamento: podem os militares fazer política? A questão aqui não é negar aos militares os direitos inerentes à cidadania. Entretanto, pelas razões já abordadas, a preocupação com os efeitos da ascensão militar a cargos decisórios é justificada. A questão posta é se os militares estão dispostos a jogar o jogo político e se submeterem às regras de uma sociedade alegadamente democrática ou se, mais uma vez, romperão com tais regras quando, por seus padrões morais, a sociedade estiver desvirtuada. O ranço autoritário que permeia setores das forças armadas brasileiras é contraditório às iniciativas de participação nas dinâmicas político-partidárias. O jogo democrático da representação política dispensa o uso da violência e do autoritarismo.
[1] Militares, Democracia e Desenvolvimento: Brasil e América do Sul. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010, p. 125-126.
Imagem 1: Tweet do general Villas Bôas, comandante do Exército.
Imagem 2: Paraqueditas dos Exército Brasileiro. Por: Exército Brasileiro.
Jorge Matheus Oliveira Rodrigues é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP).

Limites da relação entre tecnologia e autonomia nacional: o caso do Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações

O Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações (SGDC) é um projeto do governo brasileiro, aprovado em 2013, que envolve o atual Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC) e o Ministério da Defesa, por meio da Força Aérea Brasileira. Ao longo do seu desenvolvimento, o projeto recebeu R$2,7 bilhões em investimentos e é voltado para atender às demandas civis e militares na área de comunicação. Para tanto, opera em duas faixas de frequência: 70% em banda Ka, utilizada para missões civis como a comunicação estratégica do governo e a implementação do Programa Nacional de Banda Larga, aumentando o acesso à internet; e 30% em banda X, para uso das Forças Armadas.
Os satélites geoestacionários são utilizados principalmente para fins meteorológicos e de comunicação. No entanto, a necessidade de um equipamento nacional é antiga, tendo em vista que, atualmente, o acesso a esses serviços depende da disponibilidade de empresas estrangeiras. No caso do setor de comunicação, tanto para fins civis quanto militares, até 2007 o serviço era fornecido ao governo brasileiro pela estadunidense Star One, que opera os satélites da Embratel. Esse recebimento gratuito remonta à privatização da Embraer, em 1998, adquirida pela empresa estadunidense MCI que, em 2004, foi comprada pelo grupo mexicano Telemex. A privatização concedeu o fornecimento dos serviços do satélite às Forças Armadas brasileiras até 2007. Porém, com a necessidade de substituir os satélites, esse acordo deixou de valer e, a partir de 2008, as comunicações militares sigilosas passaram a ser contratadas da Star One por 12 milhões de dólares por ano.
Além da demanda na área de comunicações, o desenvolvimento do satélite geoestacionário insere-se no quadro mais amplo de ascensão das questões de Defesa na agenda política do país nos anos 2000. Exemplos desse movimento foram as iniciativas em prol da revitalização da Base Industrial de Defesa (BID) e o desenvolvimento de medidas voltadas para uma maior institucionalização do setor, como a atualização da Política Nacional de Defesa (PND), em 2005 e 2012, e o lançamento da Estratégia Nacional de Defesa (END), em 2008 e atualizada em 2012. Outra importante medida foi o estabelecimento de parcerias estratégicas com foco na transferência de tecnologia com países como a Ucrânia e a Suécia.
Foi nesse contexto de valorização do setor da Defesa que o SGDC foi iniciado, em 2012, a partir de uma parceria com a França, visando a transferência de tecnologia na produção de satélites geoestacionários. A aquisição do projeto foi feita pela empresa Telebrás que, para o gerenciamento do mesmo, estabeleceu uma joint venture com a Embraer, criando a empresa Visiona. Entre 2012 e 2016, profissionais vinculados ao projeto estiveram envolvidos no processo junto à empresa francesa Thales Alenia Space. Embora houvesse previsões de lançamento do satélite para o fim de 2016, isso só ocorreu no dia 4 de maio de 2017, a partir do Centro Espacial de Korou, na Guiana Francesa.
Contudo, embora o projeto inicial previsse que a operação dos dados do satélite fossem realizadas por empresas nacionais, em fevereiro de 2018 a Telebrás anunciou o contrato estabelecido com a empresa estadunidense Viasat, por meio do qual esta teria acesso a 100% da capacidade da banda Ka do SGDC, com a implementação da rede terrestre e da infraestrutura da Viasat para o fornecimento de serviços de banda larga residencial, empresarial e governamental. A contratação da empresa estrangeira foi justificada pela ausência de interesse de empresas nacionais, quando da publicação do edital para o serviço de banda larga, em 2017. Essa medida levantou protestos das empresas de operação de telecomunicações, as quais alegaram que as empresas nacionais não conseguiriam atender às condições do edital, o qual teria sido flexibilizado para a Viasat. No entanto, em março de 2018 o acordo foi suspenso pela Justiça do Amazonas, devido ao pedido de suspensão protocolado pela empresa amazonense de comunicações Via Direta.
O lançamento do primeiro satélite geoestacionário brasileiro é uma conquista importante que remete ao engajamento do país na produção de satélites, na década de 1990. Embora disponha de um satélite de coleta de dados e outros dois para o sensoriamento remoto – sendo os últimos decorrentes de uma parceria estratégica com a China da década de 1980 –, a alternativa para o país no âmbito das comunicações ainda era a contratação de serviços estrangeiros. Os quais não são custosos apenas em termos financeiros, mas também na questão da segurança, uma vez que o fornecimento das informações depende do controle dessas empresas, mesmo que as estações de controle se situem em território nacional.
A produção de ciência e tecnologia em países em desenvolvimento depende, em larga medida, das parcerias realizadas internacionalmente, e no âmbito aeroespacial isso não é diferente. A alternativa dos governos Lula e Dilma para que essas parcerias ampliassem o horizonte da busca pela autonomia foi a ênfase em projetos de transferência de tecnologia. Trata-se de uma alternativa que possui suas limitações: a aquisição de tecnologia estrangeira pode aprofundar os padrões de dependência de um país, uma vez que se torna refém do processo de produção da mesma, dos serviços para sua atualização, dos materiais para sua produção, etc. Contudo, traz também importantes benefícios, especialmente a aceleração de projetos fundamentais para o governo e a população que, sem a cooperação, poderiam levar mais outros longos anos. Nesse sentido, o lançamento do satélite representa outro importante ganho.
No entanto, se o objetivo era garantir um mínimo de autonomia e segurança nas comunicações governamentais, expandir o acesso à internet para toda a população e, no quadro mais geral, fortalecer a indústria nacional de Defesa, a operacionalização do satélite por uma empresa estrangeira compromete todas essas questões. Por outro lado, também demonstra como o processo de desenvolvimento tecnológico não pode ter pleno sucesso se não estiver inserido em um projeto mais amplo de desenvolvimento social. Primeiramente, não se levou em consideração a capacidade das empresas nacionais de operarem os dados do SGDC em sua totalidade, fator fundamental quando se pretende um projeto totalmente nacional; segundo, o processo de transferência de tecnologia depende fundamentalmente dos recursos humanos disponíveis não só para aquele momento, mas para dar continuidade ao conhecimento adquirido e adequá-lo à realidade do país. Isso não pode se sustentar se o orçamento para a Ciência e Tecnologiasofre grandes cortes e se há um descaso com âmbito da educação do país, especialmente na sua base.
A busca pelo desenvolvimento tecnológico, articulada ao projeto mais amplo de desenvolvimento e autonomia nacional, passando pelas questões de Defesa e Segurança, exige investimentos em todos os setores sociais do país, juntamente com uma articulação das visões de curto, médio e longo prazo dos projetos. A aquisição de tecnologia sem levar em conta os alcances e limites da sociedade na produção ou reprodução da mesma apenas torna mais complexa as dinâmicas de dependência política e tecnológica.
Imagem: Presidente e ministros acompanham o lançamento do Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas – SGDC. Por: Beto Barata/Palácio do Planalto.
Adriane Almeida é mestranda em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP) e membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

Limites da relação entre tecnologia e autonomia nacional: o caso do Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações

O Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações (SGDC) é um projeto do governo brasileiro, aprovado em 2013, que envolve o atual Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC) e o Ministério da Defesa, por meio da Força Aérea Brasileira. Ao longo do seu desenvolvimento, o projeto recebeu R$2,7 bilhões em investimentos e é voltado para atender às demandas civis e militares na área de comunicação. Para tanto, opera em duas faixas de frequência: 70% em banda Ka, utilizada para missões civis como a comunicação estratégica do governo e a implementação do Programa Nacional de Banda Larga, aumentando o acesso à internet; e 30% em banda X, para uso das Forças Armadas.
Os satélites geoestacionários são utilizados principalmente para fins meteorológicos e de comunicação. No entanto, a necessidade de um equipamento nacional é antiga, tendo em vista que, atualmente, o acesso a esses serviços depende da disponibilidade de empresas estrangeiras. No caso do setor de comunicação, tanto para fins civis quanto militares, até 2007 o serviço era fornecido ao governo brasileiro pela estadunidense Star One, que opera os satélites da Embratel. Esse recebimento gratuito remonta à privatização da Embraer, em 1998, adquirida pela empresa estadunidense MCI que, em 2004, foi comprada pelo grupo mexicano Telemex. A privatização concedeu o fornecimento dos serviços do satélite às Forças Armadas brasileiras até 2007. Porém, com a necessidade de substituir os satélites, esse acordo deixou de valer e, a partir de 2008, as comunicações militares sigilosas passaram a ser contratadas da Star One por 12 milhões de dólares por ano.
Além da demanda na área de comunicações, o desenvolvimento do satélite geoestacionário insere-se no quadro mais amplo de ascensão das questões de Defesa na agenda política do país nos anos 2000. Exemplos desse movimento foram as iniciativas em prol da revitalização da Base Industrial de Defesa (BID) e o desenvolvimento de medidas voltadas para uma maior institucionalização do setor, como a atualização da Política Nacional de Defesa (PND), em 2005 e 2012, e o lançamento da Estratégia Nacional de Defesa (END), em 2008 e atualizada em 2012. Outra importante medida foi o estabelecimento de parcerias estratégicas com foco na transferência de tecnologia com países como a Ucrânia e a Suécia.
Foi nesse contexto de valorização do setor da Defesa que o SGDC foi iniciado, em 2012, a partir de uma parceria com a França, visando a transferência de tecnologia na produção de satélites geoestacionários. A aquisição do projeto foi feita pela empresa Telebrás que, para o gerenciamento do mesmo, estabeleceu uma joint venture com a Embraer, criando a empresa Visiona. Entre 2012 e 2016, profissionais vinculados ao projeto estiveram envolvidos no processo junto à empresa francesa Thales Alenia Space. Embora houvesse previsões de lançamento do satélite para o fim de 2016, isso só ocorreu no dia 4 de maio de 2017, a partir do Centro Espacial de Korou, na Guiana Francesa.
Contudo, embora o projeto inicial previsse que a operação dos dados do satélite fossem realizadas por empresas nacionais, em fevereiro de 2018 a Telebrás anunciou o contrato estabelecido com a empresa estadunidense Viasat, por meio do qual esta teria acesso a 100% da capacidade da banda Ka do SGDC, com a implementação da rede terrestre e da infraestrutura da Viasat para o fornecimento de serviços de banda larga residencial, empresarial e governamental. A contratação da empresa estrangeira foi justificada pela ausência de interesse de empresas nacionais, quando da publicação do edital para o serviço de banda larga, em 2017. Essa medida levantou protestos das empresas de operação de telecomunicações, as quais alegaram que as empresas nacionais não conseguiriam atender às condições do edital, o qual teria sido flexibilizado para a Viasat. No entanto, em março de 2018 o acordo foi suspenso pela Justiça do Amazonas, devido ao pedido de suspensão protocolado pela empresa amazonense de comunicações Via Direta.
O lançamento do primeiro satélite geoestacionário brasileiro é uma conquista importante que remete ao engajamento do país na produção de satélites, na década de 1990. Embora disponha de um satélite de coleta de dados e outros dois para o sensoriamento remoto – sendo os últimos decorrentes de uma parceria estratégica com a China da década de 1980 –, a alternativa para o país no âmbito das comunicações ainda era a contratação de serviços estrangeiros. Os quais não são custosos apenas em termos financeiros, mas também na questão da segurança, uma vez que o fornecimento das informações depende do controle dessas empresas, mesmo que as estações de controle se situem em território nacional.
A produção de ciência e tecnologia em países em desenvolvimento depende, em larga medida, das parcerias realizadas internacionalmente, e no âmbito aeroespacial isso não é diferente. A alternativa dos governos Lula e Dilma para que essas parcerias ampliassem o horizonte da busca pela autonomia foi a ênfase em projetos de transferência de tecnologia. Trata-se de uma alternativa que possui suas limitações: a aquisição de tecnologia estrangeira pode aprofundar os padrões de dependência de um país, uma vez que se torna refém do processo de produção da mesma, dos serviços para sua atualização, dos materiais para sua produção, etc. Contudo, traz também importantes benefícios, especialmente a aceleração de projetos fundamentais para o governo e a população que, sem a cooperação, poderiam levar mais outros longos anos. Nesse sentido, o lançamento do satélite representa outro importante ganho.
No entanto, se o objetivo era garantir um mínimo de autonomia e segurança nas comunicações governamentais, expandir o acesso à internet para toda a população e, no quadro mais geral, fortalecer a indústria nacional de Defesa, a operacionalização do satélite por uma empresa estrangeira compromete todas essas questões. Por outro lado, também demonstra como o processo de desenvolvimento tecnológico não pode ter pleno sucesso se não estiver inserido em um projeto mais amplo de desenvolvimento social. Primeiramente, não se levou em consideração a capacidade das empresas nacionais de operarem os dados do SGDC em sua totalidade, fator fundamental quando se pretende um projeto totalmente nacional; segundo, o processo de transferência de tecnologia depende fundamentalmente dos recursos humanos disponíveis não só para aquele momento, mas para dar continuidade ao conhecimento adquirido e adequá-lo à realidade do país. Isso não pode se sustentar se o orçamento para a Ciência e Tecnologiasofre grandes cortes e se há um descaso com âmbito da educação do país, especialmente na sua base.
A busca pelo desenvolvimento tecnológico, articulada ao projeto mais amplo de desenvolvimento e autonomia nacional, passando pelas questões de Defesa e Segurança, exige investimentos em todos os setores sociais do país, juntamente com uma articulação das visões de curto, médio e longo prazo dos projetos. A aquisição de tecnologia sem levar em conta os alcances e limites da sociedade na produção ou reprodução da mesma apenas torna mais complexa as dinâmicas de dependência política e tecnológica.
Imagem: Presidente e ministros acompanham o lançamento do Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas – SGDC. Por: Beto Barata/Palácio do Planalto.
Adriane Almeida é mestranda em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP) e membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

As relações russo-estadunidenses e o caso Skripal: um balanço do governo Trump

O noticiário internacional recente se devotou, em larga escala, ao caso Sergei Skripal e suas repercussões sobre as relações entre as grandes potências. Sem prover evidências conclusivas, o Reino Unido – onde, em 4 de março, foi envenenado o ex-agente duplo da inteligência militar russa – logo responsabilizou Moscou pelo ocorrido e ordenou, dez dias depois, a expulsão de 23 diplomatas da embaixada russa no país.
Os EUA prontamente se solidarizaram com seu tradicional parceiro transatlântico. Em 15 de março, em nota conjunta assinada com o Reino Unido, a Alemanha e a França, Washington compartilhou o diagnóstico britânico de que não haveria “alternativa plausível” à “altamente provável” autoria do governo russo no caso. No final de março, a condenação norte-americana ganhou impulso com a expulsão de diplomatas russos dos EUA, decisão que rapidamente suscitou medidas recíprocas da Rússia.
A escalada das retaliações em torno do caso Skripal contribuiu para o agravamento das relações entre as duas maiores potências nucleares, e se soma a uma série de outros eventos e tendências que vêm desmentindo as projeções largamente difundidas de uma aproximação entre Rússia e EUA sob Trump. Do ponto de vista russo, a nova administração vem, em muitos sentidos, dando seguimento às práticas e discursos que ocasionaram os cíclicos períodos de azedamento das relações entre os dois países no pós-Guerra Fria. Ao atacar as forças do governo sírio em abril de 2017, por exemplo, Trump sinalizou a persistência do espírito punitivo com que os EUA unilateralmente castigam, via força ou sanções, o que consideram ser os rogue states. O espectro do unilateralismo estadunidense, tradicionalmente criticado pela Rússia por desconsiderar seu poder de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas, foi reforçado pelas intimidações dirigidas à Coreia do Norte.
No que tange às sanções contra a Rússia ocasionadas por seu envolvimento no conflito na Ucrânia, a administração Trump vem dando seguimento à política de Barack Obama. A remoção das sanções permanece condicional à revogação da anexação da Crimeia e ao fim do apoio de Moscou às repúblicas secessionistas de Donetsk e Luhansk. Na dimensão militar, o atual governo norte-americano foi além da administração anterior ao aprovar a venda de armamentos para a Ucrânia. O apoio de Washington a Kiev corrobora a enraizada visão russa de que o suporte dos EUA aos governos oriundos das chamadas revoluções coloridas constitui tão somente uma plataforma para o avanço do cerco estratégico à Rússia.
A atuação da OTAN, por sua vez, permanece nos moldes criticados por Moscou. O governo Trump vem desmentindo, no discurso e na prática, a visão negativa que o presidente dizia ter sobre a aliança antes da vitória eleitoral. A nova administração vem dando seguimento às iniciativas de Obama no sentido de afirmar a presença militar dos EUA na Europa, bem como desenvolver sua cooperação com os aliados da OTAN para contrapor-se à Rússia. O tema da expansão, por sua vez, continua em voga: embora efetivamente bloqueada nas fronteiras russas pelas ações militares de Moscou na Geórgia (2008) e na Ucrânia (2014), a agenda do alargamento da aliança tem sido compensada por novas incursões nos Bálcãs, região que tem figurado crescentemente no discurso antirrusso de oficiais estadunidenses.
Em junho de 2017, Trump autorizou a entrada do Montenegro na OTAN, coroando um processo pesadamente racionalizado com base na ameaça russa. A aliança encaminha, ainda, a admissão da Macedônia em suas fileiras. Embora se trate de uma região que não figura entre as prioridades da política externa russa – o que significa que eventuais expansões provavelmente não suscitarão reação significativa por parte do Kremlin –, a atuação da OTAN nos Bálcãs, em conjunto com as iniciativas de fortalecimento da aliança de um modo geral, dão continuidade às formas de exclusão da Rússia do sistema de segurança europeu capitaneado pelos EUA. A percepção da ameaça russa que vem racionalizando tal processo acentua ainda mais as incompatibilidades entre Washington e Moscou.
Por fim, os documentos estratégicos da gestão Trump aprofundaram a narrativa da ameaça russa à primazia global estadunidense. A Estratégia de Segurança Nacional publicada em dezembro de 2017 repetidamente menciona a Rússia, ao lado da China, como principal desafiadora dos EUA no sistema internacional. Utilizando “táticas subversivas”, Moscou estaria desafiando o “poder, a influência e os interesses” dos EUA em busca de construir um mundo “contrário a seus valores”. O documento elenca uma série de diretrizes necessárias para conter a “subversão e a agressão” russas. Na Revisão de Postura Nuclear e no Resumo da Estratégia Nacional de Defesa, ambos de 2018, o tema da ameaça russa (e chinesa), com os correspondentes deveres de contenção a serem assumidos pelos EUA, também é recorrente.
As desmentidas expectativas de uma aproximação entre os dois países devem-se, largamente, a um clima geral bastante negativo e beligerante sobre a Rússia e Vladimir Putin nos EUA em virtude da suposta ingerência de Moscou na eleição presidencial norte-americana de 2016. Tal atmosfera é alimentada por uma cobertura midiática de contornos histéricos sobre o assunto, cujos reflexos têm sido sentidos no campo político. As acusações de conluio com o Kremlin desafiam a legitimidade do mandato de Trump e constituem importante constrangimento para que o presidente dos EUA busque uma aproximação com a Rússia.
Nesse sentido, congressistas democratas e até mesmo copartidários republicanos de Trump, por vezes utilizando linguagem que beira o cômico, têm cobrado atitude mais firme contra a Rússia. Em março último, as pressões por punições a Moscou se consubstanciaram em legislação que resultou em medidas concretas tomadas pela Casa Branca, como as sanções impostas a entidades e cidadãos russos acusados de interferir na eleição estadunidense de 2016. No início de abril, em combate à “atividade maligna global” da Rússia, as autoridades dos EUA anunciaram mais sanções a indivíduos e empresas ligados ao governo russo.
Se tal quadro de inimizade contraria muitas predições sobre o período Trump, o mesmo não se pode dizer da perspectiva daquele que é certamente o personagem principal das atuais desavenças entre Rússia e EUA, Vladimir Putin. Em uma das entrevistas concedidas ao cineasta norte-americano Oliver Stone, o presidente russo foi perguntado sobre suas expectativas quanto ao mandato do então recém-eleito Donald Trump. “Esse é o seu quarto presidente [dos EUA], estou certo? O que muda?”, perguntou Stone. Calejado pela experiência de quase duas décadas lidando com líderes dos EUA, Putin respondeu rapidamente, sem esconder o sarcasmo denunciado por seu discreto sorriso: “Quase nada”.
A resposta transparece a percepção de um caráter aparentemente imutável das posições dos EUA sobre a Rússia. Na ótica russa, a permanente incongruência entre os dois países deve-se à insistência dos EUA em afirmar sua posição hegemônica em nível global, fundamentada na conservação da supremacia política, econômica e militar do país. Desde o fim da Guerra Fria, esse esforço tem subtendido as tentativas de sufocamento de qualquer polo de poder independente e contestador da hegemonia de Washington. Nesse sentido, o America First de Trump, ao atribuir mais ênfase à ação unilateral e ao poder dos EUA, pode soar mais cru e agressivo do que American Leadership ou qualquer outro slogan mais vendável produzido por políticos e acadêmicos norte-americanos. Contudo, como atestam as tendências e decisões mencionadas acima, o governo Trump compartilha, em essência, o objetivo básico de conservar a primazia inconteste dos EUA no sistema de Estados.
No que diz respeito à Rússia, esse esforço assumiu diversos matizes. Nos termos do russólogo britânico Richard Sakwa, passou-se da “contenção branda” (soft containment) para a “contenção dura” (“hard containment”): enquanto a primeira variante, mais saliente nas duas primeiras décadas do pós-Guerra Fria, reprimia a Rússia de forma implícita pelo não compartilhamento do poder decisório, a segunda, impulsionada pela crise ucraniana, enfatiza elementos de pressão, coerção e isolamento. Ambas compartilham, todavia, a visão fundamental da Rússia como um rival definitivamente derrotado na Guerra Fria e, por isso, indigno de tratamento equitativo.
Como destacou recentemente o analista russo Dmitri Trenin, essa percepção choca-se de modo frontal com um consenso historicamente enraizado na elite de seu país: a percepção da Rússia como uma eterna grande potência que, não obstante eventuais disparidades de poder, deve sempre conservar sua autonomia, identidade e posição de igualdade perante os Estados mais poderosos. Em sua versão putinista, essa espécie de excepcionalismo russo se traduz na preferência por um concerto de grandes potências à frente da política internacional, no qual a superioridade de capacidades dos EUA conviveria e seria balanceada pelo compartilhamento do poder decisório com a Rússia e outras potências. A consecução desse objetivo não descarta o uso da força para resguardar os interesses russos, inclusive em teatros antes tidos como espaços dominados pelos EUA, como o Oriente Médio.
A assertividade da Rússia de Putin faz com que o país, mesmo que não seja percebido como competidor estratégico mais sério dos EUA a longo prazo – posto que pertence à China – assuma a representação de um rival bastante indigesto para a elite norte-americana. Por isso, dentro das fronteiras que a dissuasão nuclear permite, ela deve ser punida por sua insistência em não se submeter aos imperativos estratégicos dos EUA. As recentes mudanças na composição do governo Trump sinalizam a possibilidade de manutenção, ou mesmo de aprofundamento, desse direcionamento. Figuras como Mike Pompeo, que assume a função de secretário de Estado, e John Bolton, designado como assessor de segurança nacional no lugar de Herbert McMaster – que já se notabilizara por posição pouco amigável sobre a Rússia –, são conhecidos por suas visões negativas sobre Moscou. Não por acaso, suas nomeações repercutiram negativamente na Rússia e geraram expectativas de continuidade das pressões vindas dos EUA.
A responsabilidade a priori atribuída por Washington a Moscou no caso Skripal, assim como a retaliação que a seguiu, são indicativos desse estado de hostilidade e de predisposição ao conflito. Levando em conta esse contexto, as ações dos EUA de Trump podem ser compreendidas como o aproveitamento de um pretexto útil para prosseguir no caminho das sanções e outros tipos de punição à Rússia. Elas contribuem, desse modo, para perpetuar as incongruências que as lideranças dos dois países possuem sobre a ordem internacional e a posição que nela ocupam seus Estados, sinalizando o quão difícil pode ser a concretização do cenário de relaxamento duradouro nas relações entre Rússia e EUA.
Imagem: Putin com o presidente Trump. Por Kremlin.
Gustavo Oliveira Teles de Menezes é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP).

Regras de Engajamento: breves considerações sobre os limites para a atuação das Forças Armadas

O decreto que autorizou a intervenção militar do governo federal no setor de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro gerou dúvida em relação aos limites da ação de militares das Forças Armadas. A intervenção deve se estender até o fim de 2018 e tem como objetivo solucionar os graves problemas de segurança no estado fluminense. É adequado considerar que a confusão foi gerada pela ausência de planejamento e negociação entre os atores relevantes para a decisão. Com efeito, a relatora do projeto na Câmara dos Deputados, Laura Carneiro, questionou a falta de detalhes sobre a disponibilidade de recursos financeiros e estratégias de atuação dos militares no texto editado pelo Palácio do Planalto. Contudo, a iniciativa foi aprovada em ambas as casas legislativas com relativa tranquilidade.
É possível observar ao menos duas perspectivas referentes à delimitação das Regras de Engajamento, conjunto de disposições operacionais que limitam o emprego da força por contingentes das Forças Armadas. Por um lado, representantes da sociedade civil destacam a necessidade de definir com exatidão os limites para o engajamento de militares durante o período de intervenção. Defende-se a relevância de manter a transparência e mecanismos de verificação da iniciativa do governo federal. De maneira complementar, mecanismos de verificação contribuem para a observância das normas relacionadas a direitos e liberdades fundamentais aos indivíduos. Em contrapartida, militares requisitam maior proteção jurídica para desempenhar as atividades e “flexibilidade” nas regras de engajamento. O comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, enfatizou a necessidade de garantias para evitar que militares enfrentem “uma nova Comissão Nacional da Verdade”. Assim, ensaia-se a relevância de determinar Regras de Engajamento para evitar excessos na atuação de contingentes militares.
Ao observar os diálogos referentes à atuação das Forças Armadas em missões relacionadas à “pacificação” ou a “manutenção da ordem e segurança públicas” é possível descrever pouca ênfase sobre o debate de formulação das Regras de Engajamento para militares. Reconhece-se que o principal argumento para a manutenção do sigilo da tática de ação consiste na possibilidade de comprometimento da missão e, consequentemente, redução de sua eficiência. No entanto, é adequado afirmar que o uso da força constitui uma ferramenta e um meio para a imposição de um modelo de organização social, frequentemente associados a ideais considerados mais eficientes para a manutenção de instituições estatais.
Observa-se que a atuação das Forças Armadas no estado do Rio de Janeiro é frequentemente comparada à presença de contingentes militares brasileiros no Haiti sob o mandato da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH). O cenário predominantemente urbano e a presença de grupos armados com diferentes estruturas hierárquicas no estado do Rio de Janeiro são utilizados por parte dos atores da mídia e por autoridades locais e nacionais como imagens similares ao cenário de segurança observado, sobretudo, nos anos iniciais da MINUSTAH.
Contudo, convém diferenciar os limites impostos à ação dos militares em ambos os casos. Compreende-se que a ação militar no país caribenho é amparada por regras de engajamento mais flexíveis quando comparadas à mobilização das Forças Armadas em operações no território brasileiro. O contingente militar da missão no Haiti, amparado pelo Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, possuía prerrogativa para o uso da força em situações de ameaça e confronto. Em agravo, os Estados que contribuem com tropas para as Operações de Paz das Nações Unidas requisitam uma série de garantias para os contingentes mobilizados no exterior. Acordos celebrados antecipadamente garantem, por exemplo, que os militares enviados a uma Operação de Paz sejam julgados pelo setor judiciário de sua nacionalidade. Em agravo, é prudente considerar também que a acessibilidade aos canais de denúncia e investigação sobre as ações de militares em Operações de Paz é frequentemente reduzida. Assim, observam-se casos significativos de impunidade em relação a condutas excessivas e crimes perpetrados por militares estrangeiros.
Ao debater os limites para a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, reitera-se a ausência de definição para a atuação das Forças Armadas no decreto presidencial. Não se ignora, que a intervenção federal, apesar de prevista na Constituição de 1988, constitui uma medida inédita. As missões internas desempenhadas pelas forças militares em outras ocasiões foram formuladas segundo o dispositivo de Garantia da Lei e da Ordem, que permite o emprego das Forças Armadas com a função de força policial. Assim, a atuação das Forças Armadas durante o período de intervenção federal no estado do Rio de Janeiro é circunscrita a limites bastante similares ao trabalho policial cotidiano.
No entanto, é possível descrever ao menos um traço de semelhança entre ambas as operações: o aspecto autoritário e a frequência do uso excessivo da força. É preciso considerar que, apesar do discurso militar e diplomático, a participação brasileira na missão de imposição da paz é marcada por questionamentos e acusações referentes a excessos cometidos por militares do país. Nota-se que a atuação de militares no estado do Rio de Janeiro é fundamentada pela possibilidade de emprego de meios coercitivos para a manutenção da ordem pública. Em agravo, as atuações em comunidades periféricas do estado do Rio de Janeiro são descritas a partir da posição autoritária violenta das forças de segurança.
O pedido das Forças Armadas por regras de engajamento mais flexíveis e garantias jurídicas excepcionais desperta atenção para a possibilidade de impunidade de ações excessivas e violações a direitos e liberdades fundamentais. Convém considerar que, a partir do governo de Michel Temer, crimes cometidos por militares contra civis durante ações das forças castrenses são julgados pela Justiça Militar, tradicionalmente favorável aos membros das Forças Armadas. É possível ilustrar a impunidade a membros das Forças Armadas sob o exemplo da participação não investigada de dezessete soldados em mortes ocorridas em novembro de 2017 na cidade do Rio de Janeiro. Compreende-se, então, que os militares mobilizados para a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro já detêm privilégios jurídicos.
Nesse sentido, é possível descrever ao menos três possíveis implicações negativas para a flexibilização dos limites para o recurso a meios coercitivos e a ampliação da proteção jurídica aos militares mobilizados para a intervenção federal no estado fluminense: (i) a elevação da intensidade dos confrontos entre militares e associações do crime organizado; (ii) a violação de direitos e liberdades fundamentais; (iii) a impunidade a crimes cometidos por militares contra civis. Dessa maneira, é adequado considerar a necessidade de delimitar a ação militar durante o período de intervenção e estabelecer mecanismos de verificação que permitam ampliar a transparência das operações conduzidas sob o decreto presidencial.
Leonardo Dias de Paula é mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação San Tiago Dantas – UNESP/UNICAMP/PUC-SP e pesquisador do Gedes.
Imagem: Forças armadas já estão operando nas ruas e avenidas do Rio. Por: Agência Brasil de Fotografia.