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Quando a prima donna sai do palco no meio do espetáculo: A retirada dos EUA do acordo nuclear com o Irã

No dia 8 de maio, o presidente estadunidense Donald Trump anunciou a retirada dos EUA do acordo nuclear com o Irã. Oficialmente intitulado Plano de Ação Abrangente Conjunto (JCPOA, em inglês), o compromisso foi o resultado de um difícil processo de negociação. As suspeitas sobre o programa nuclear iraniano e o receio que o país possa desenvolver armas nucleares não são recentes. Porém, somente no governo Obama foram criadas condições para a promoção de um acordo sobre a questão, uma vez que foi revista a postura anterior estadunidense de demandar o congelamento do programa nuclear como um pré-requisito para as conversas. De todo modo, tratou-se de um processo de negociação complexo e com vários momentos.
O JCPOA foi assinado em 2015, em Viena, e deve ser entendido como o que foi possível contratar, tendo em vista a pluralidade de atores e interesses envolvidos. Além do Irã, o documento foi assinado pelo P5+1, como são conhecidas as cinco potências permanentes do Conselho de Segurança (China, EUA, França, Reino Unido e Rússia) – que são as cinco potências nucleares legítimas reconhecidas pelo Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP) – somadas à Alemanha. Por um lado, o acordo impôs restrições e constrangimentos ao desenvolvimento do programa nuclear iraniano e, por outro lado, prevê o alívio de sanções aplicadas ao Irã. O Plano de Ação possibilitou uma narrativa política dupla: para os EUA, finalmente o Irã aceitou um acordo e foram impostos constrangimentos às suas atividades nucleares; já na perspectiva do governo iraniano, foi possível buscar o alívio de sanções ao mesmo tempo em que não houve cessão total às pressões das potências ocidentais e foi resguardado seu direito soberano de enriquecer urânio – a baixos níveis, para fins pacíficos.
Trump apresenta uma dura crítica ao JCPOA desde a época de sua candidatura à presidência dos Estados Unidos, chegando a classificá-lo como ‘o pior acordo da história’. Em sua perspectiva, os EUA cederam demais ao firmar o compromisso, uma vez que o Irã continua uma ameaça à paz e à segurança, sendo necessário o fim definitivo de seu programa nuclear, o que realmente não foi assegurado no Plano de Ação de 2015. Assim, a saída dos EUA do JCPOA representa o cumprimento de uma promessa de campanha, ato esse muito bem recebido por Israel, aliado tradicional dos EUA que apresenta grande lobby no país norte-americano – e que desenvolveu armas nucleares às margens do regime internacional de não-proliferação, apesar de não o admitir. Trump passa uma postura dura, mas parece duvidosa sua aposta de que o restabelecimento, e também o aprofundamento, das sanções levará o Irã a rever sua postura e aceitar os termos dos Estados Unidos.
A retirada dos EUA do Plano de Ação foi recebida por muitos com apreensão. Como apontou a chanceler alemã Angela Merkel, o acordo não é perfeito, mas é melhor que nada. Apesar de suas limitações, o JCPOA representa um compromisso importante por apontar vontade de negociar e a possibilidade de se colocar restrições ao desenvolvimento nuclear iraniano, ainda que não em termos totais.
Mas se o Irã decidir se retirar do acordo após a saída dos EUA, que tipo de garantias existirá? E se as sanções em um nível extremo não apresentarem os efeitos desejados, qual o próximo passo? Uma guerra? É preciso ter em mente que um ataque militar pode desestruturar o programa iraniano por vários anos, mas não necessariamente findá-lo. Como afirmava ElBaradei, ex-diretor geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), não é possível bombardear o conhecimento. O programa poderia ser reconstituído no futuro. Além disso, uma intervenção estadunidense poderia gerar uma forte onda nacionalista no Irã, agravando ainda mais as tensões. Em 2015, alguns especialistas apontavam que a resolução da questão só ocorreria com a mudança de regime no Irã e, atualmente, alguns analistas especulam que é isso que Trump pretende promover ao aumentar a pressão sobre o país. Se for o caso, trata-se de uma aposta arriscada, com grande potencial de gerar mais insegurança.
A União Europeia em geral, e particularmente a Alemanha, a França e o Reino Unido como signatários, salientam a importância do acordo e estão buscando alternativas para assegurar sua continuidade. Essa postura, aparentemente, encontra respaldo nos governos chinês e russo. Uma grande dificuldade a ser enfrentada para garantir que o acordo permaneça viável no sentido de que o Irã não se retire e continue cumprindo suas obrigações é a questão das sanções secundárias. Tais sanções são aquelas que o governo dos Estados Unidos pode estabelecer não diretamente para o Irã, mas para empresas de outros países que negociem com Teerã, barrando essas empresas estrangeiras no sistema financeiro estadunidense. Algumas empresas europeias já emitiram sinais de retirada de negócios para evitar a possibilidade de serem atingidas. Minimizar os efeitos da retomada de sanções pelos EUA é um objetivo que deve ser perseguido pelos interessados na continuidade do Plano de Ação, em uma perspectiva de também comtemplar os interesses do governo iraniano. É nesse sentido que a imposição das chamadas sanções secundárias representa um desafio, sendo ainda um tópico que possivelmente gerará tensões entre o país da América do Norte e seus aliados europeus.
De todo modo, o Irã deve sofrer as consequências da retomada das sanções. Faz-se necessário recordar que as sanções não constituem uma categoria abstrata de punição contra um país, mas a população, muitas vezes, é fortemente afetada por esse tipo de medida. A postura atual do Irã é aguardar as soluções propostas pelos outros signatários do acordo para garantir a continuidade do JCPOA, sendo que as declarações oficiais variam entre, majoritariamente, afirmar que o Estado continuará com as suas obrigações se seus interesses forem assegurados e ameaçar sair do acordo e retomar seu plano de enriquecimento de urânio se uma resposta adequada não for encontrada.
O ato de Trump pode ser entendido como uma violação da confiança no cenário internacional em termos amplos. Uma das funções de tratados, acordos e regimes é prover as relações internacionais de maior previsibilidade e confiança entre os atores. Os Estados são, em termos jurídicos, soberanos e não existe uma autoridade central no sistema internacional capaz de impor regras e fiscalizar o cumprimento delas. Nesse sentido, os compromissos assumidos pelos Estados são, em tese, voluntários e devem ser obedecidos de boa-fé. Ao anunciar a saída dos EUA do JCPOA, essa lógica é rompida, especialmente por haver garantias da AIEA que o Irã estava cumprindo com suas obrigações e por se tratar de uma medida unilateral. Afinal, torna-se mais difícil confiar em compromissos internacionais quando um dos mais importantes atores resolve sair sozinho de um acordo que, pelo menos nos termos propostos, estava funcionando. A confiança fica abalada mesmo no que se refere aos aliados, como a União Europeia.
Luiza Elena Januário é doutoranda em Relações Internacionais no PPG RI San Tiago Dantas e pesquisadora do Gedes.
Imagem: Secretário Pompeo posa para foto com o Presidente Trump. Por: U. S. Department of State

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O Paraguai e a polêmica mudança de embaixada de Tel Aviv para Jerusalém: alinhamento ou interesses pessoais?

No dia 6 de dezembro de 2017, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou mais uma mudança polêmica de seu governo: o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel e, consequentemente, a mudança da embaixada estadunidense de Tel Aviv para Jerusalém. A mudança não foi bem recebida por grande parte da comunidade internacional, chegando a ser considerada nula pela Assembleia Geral das Nações Unidas no dia 21 de dezembro. A União Europeia também se pronunciou afirmando que nenhum dos seus membros iria transferir sua embaixada para Jerusalém. No entanto, logo após o anúncio do governo estadunidense, Guatemala e Paraguai decidiram seguir os Estados Unidos e foram, respectivamente, o segundo e terceiro país a anunciar a transferência de embaixada.
Em relação ao Paraguai, já em abril, o presidente paraguaio, Horácio Cartes, anunciou a intenção de mudar a embaixada paraguaia em Israel de Tel Aviv a Jerusalém, sendo oficialmente confirmado no dia 7 de maio pelo chefe da missão diplomática do Estado de Israel, Zeev Harel. Para Harel, essa mudança significa um grande sinal de reconhecimento por parte do governo paraguaio que Jerusalém é a capital de Israel. Ademais, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Emmanuel Nahshon, ratificou essa decisão do presidente Horácio Cartes como um dos últimos gestos políticos antes do término do seu mandato.
No entanto, essa mudança não foi bem recebida tanto externamente quanto internamente. Externamente, a comunidade palestina proferiu duras críticas ao Paraguai. O líder da Frente para a Libertação Palestina, Wasel Abu Youssef, afirmou que essa decisão vai contra as leis do Direito Internacional e incentiva a ocupação israelense no território. Ademais, o presidente palestino, Mahmud Abas, em reunião na Venezuela com Nicolás Maduro, pediu que os países latino-americanos não transferissem sua embaixada, e reafirmou que a decisão do presidente Horácio Cartes feriu as leis do Direito Internacional. Internamente, essa resolução causou um mal-estar entre os membros do governo. No dia 9 de maio, o futuro ministro das Relações Exteriores, Luis Castiglioni, afirmou que Horácio Cartes rompeu com um equilíbrio nas relações diplomáticas com os palestinos, além de ter tomado essa decisão unilateralmente, sem consulta prévia ao recém presidente eleito, Mario Abdo Benítez, que assumirá o cargo logo mais em agosto. O ex ministro de Relações Exteriores do governo Fernando Lugo (2008-2012), Hector Lacognata, foi ainda mais duro, afirmando que essa decisão foi uma demonstração de um alto nível de irresponsabilidade e alienação à política exterior dos Estados Unidos. Por fim, após essa série de declarações, no dia 16 de maio, o presidente eleito, Mario Abdo, resolveu se pronunciar a respeito e deixou claro que analisará essa decisão com cuidado e não descartou a possibilidade de rever a transferência de embaixada.
Apesar da decisão de Horácio Cartes ter sido tomada como surpresa para muitos, não é a primeira vez que o Paraguai surpreende por aderir a decisões dos Estados Unidos em detrimento da maioria dos países, principalmente os sul-americanos. Historicamente, as relações Paraguai-Estados Unidos foram marcadas por um alto grau de dependência deste primeiro com o segundo. Na época da Guerra Fria, quando o Paraguai estava sendo governado pelo ditador Alfredo Stroessner (1954-1989), os Estados Unidos se tornaram os maiores parceiros políticos do país sul-americano, que tornou-se o terceiro maior beneficiário de dinheiro estadunidense. Esse alto grau de investimento está vinculado ao fato do Paraguai ter sido um dos primeiros países a aderir a Doutrina de Segurança Nacional, cujo objetivo era o combate ao comunismo. Assim, o Paraguai recebia o apoio estadunidense na área de Defesa e Segurança e em troca recebia investimentos econômicos. Dessa maneira, surge um doutrinamento e a criação de uma ideologia militar responsável pela prevalência de preceitos estadunidenses até o atual momento. Essa alienação com as políticas estadunidenses também tem ligação com o próprio partido de Horácio Cartes, o Partido Colorado, que comanda o país desde a época de Stroessner. Esse partido, constituído em sua maioria por membros da elite conservadora, é responsável pela manutenção de uma agenda política vinculada aos Estados Unidos.
O que chama atenção no caso da transferência de embaixada é que mesmo sendo do Partido Colorado, Horácio Cartes enfrenta duras críticas de setores do próprio partido além da oposição. Para muitos, essa rápida decisão não está vinculada somente a relação do Paraguai com os Estados Unidos, como também a relações pessoais do próprio Horácio Cartes. Cartes é amigo pessoal de Dario Messer, conhecido como o “doleiro dos doleiros”, alvo de investigação da Operação Lava-Jato no Brasil. Em 2016, Horácio Cartes tornou-se o primeiro presidente paraguaio a visitar Israel acompanhado de Messer, este que tem família com origem judia e possui importantes vínculos com poderosos grupos judeus. A partir disso, criou-se uma desconfiança que Horácio Cartes foi movido por interesses pessoais do próprio Messer, pessoa que considera como um “segundo pai”.
Independente do verdadeiro motivo da decisão do presidente Horácio Cartes, seja ela por um alinhamento histórico aos Estados Unidos ou por motivos pessoais, resta-nos acompanhar os próximos passos do governo para saber se de fato essa transferência será concretizada e como ficarão daqui para frente as relações com os palestinos, que há anos são pacíficas.
Joana Andrade é mestranda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
.Imagem: Cartes encontra-se com Netanyahu em 2017. Por: Agencia de Información Paraguaya.

As "vivandeiras” de ontem e hoje, e a necessidade da Memória

O marechal Humberto de Alencar Castelo Branco garantiu para si um lugar permanente no anedotário político nacional com a seguinte declaração: “São as vivandeiras alvoroçadas que vêm aos bivaques bulir com os granadeiros e causar extravagâncias ao poder militar”. Castelo Branco se referia aos setores que buscavam nos quartéis a força que lhes faltava para depor João Goulart, acusado de comunismo por buscar a mais burguesa de todas as reformas: a agrária. Pois bem, os granadeiros atenderam ao chamado, deram o golpe, e o resto da história é bastante conhecido. Ou, ao menos, deveria ser.
É bem verdade que, atualmente, as circunstâncias são diversas. Aqueles interessados na varrição da esquerda do rol das alternativas políticas encontram hoje na toga préstimos muito mais eficientes do que aqueles prestados pelos coturnos. Persistem, porém, grupos que insistem em ver na intervenção das Forças Armadas a solução para os problemas do país, sobretudo a generalizada repulsa em relação à política e aos políticos. É difícil apresentar uma compreensão unívoca a respeito de tais grupos, mas é possível estabelecer alguns aspectos mais gerais. A racionalidade de fundo parece assumir que em um quadro de degeneração total do sistema político – percepção amplamente devedora da elevação da corrupção ao posto de problema número um do país – a única possibilidade de restauração da política, assimilada em termos da moral comum, do indivíduo, é a intervenção de um ator externo, apartidário, imparcial e com poder para domar a corrupção e impor a ordem e a lei, na sequência, devolver o poder à cidadania. Nesse sentido, interrompe-se a democracia degenerada por sujeitos amorais e purifica-se o sistema pela ação moralizante da caserna, entendida como reduto último do senso de nacionalidade corrompido por projetos de poder escusos. A crença no autoritarismo benevolente assume, assim, que o poder seria devolvido aos civis antes que a exceção se converta em regra.
As Forças Armadas não são atores alheios à política, tampouco imparciais, menos ainda representam um repositório de probidade. Sobre isso, o historiador Pedro Campos (2012, p. 469) afirma que “na ditadura, principalmente nos anos mais fechados, foram vistas poucas acusações contra impropriedades cometidas por construtoras, o que evidencia obviamente não o menor número de casos, mas o amordaçamento dos mecanismos de fiscalização e divulgação das irregularidades, que, crê-se, eram até mais frequentes que nos períodos de abertura política”. O excerto está contido na tese de doutoramento de Campos, publicada no livro “Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988”, vencedor do Prêmio Jabuti de 2015.
Um aspecto ainda mais grave do ponto de vista da construção democrática é a leniência de certos setores com o passivo ético que o regime autoritário possui. Não importa que estes grupos sejam numericamente minoritários ou eleitoralmente inviáveis; que os microfones do parlamento sejam ocupados para render homenagens a torturadores sem que o orador seja punido com rigor por seus pares é um sintoma de que nossa democracia segue como tarefa pendente. Do mesmo modo, as manifestações em defesa de uma intervenção militar que ocorrem no país nos últimos anos deveriam ser objeto das mais explícitas e veementes objeções por parte dos atores políticos mais relevantes – neste caso, os comandos civis e militares das Forças Armadas.
O que se vê, no entanto, desde 2016, são declarações ambíguas e episódios que soam como declaração de prontidão da caserna para atender a tais pedidos. O episódio recente envolvendo o ministro da defesa em relação à paralisação dos caminhoneiros é um exemplo claro disso. Sendo o segundo na hierarquia de comando das Forças Armadas, a expectativa plausível, em uma democracia consolidada, é um inequívoco repúdio aos pedidos de intervenção militar. O ministro, todavia, entende que tais pedidos são expressões legítimas do direito de expressão. Houvesse governo, o ministro deveria, no mínimo, ser publicamente repreendido. Como o que existe em Brasília é um cadáver político insepulto, segue-se o cotidiano como se vivêssemos na normalidade.
Momentos como este explicitam a insuficiência do processo de transição ocorrido no Brasil, no que diz respeito à exposição dos crimes cometidos pelos militares quando no poder. Ressaltar o custo humano do autoritarismo e o quão insuportável para uma sociedade é o extermínio dos seus pelas mãos dos que têm na proteção da cidadania sua razão de existir é um elemento essencial da construção democrática. É preciso, em primeiro lugar, descontruir publicamente falácias travestidas de argumentos, como a tese dos “dois demônios” – muito popular entre a direita argentina na década de 1980, mas devidamente rechaçada no país.
Não existe equiparação possível entre aqueles que usam a violência em reação ao arbítrio do Estado e o uso sistemático da força contra a cidadania por parte dele. Para argumentar neste sentido não é preciso recorrer a nenhuma referência de esquerda. É bastante um tour de force pela filosofia política moderna, insuspeita de esquerdismos, para constatar a inteira legitimidade de o cidadão levantar-se contra o soberano quando este falha em prover aquilo que lhe é de dever. O filósofo inglês John Locke, pai do liberalismo supostamente defendido por algumas vivandeiras, faz uma defesa enfática do direito de resistência dos cidadãos frente ao soberano quando este se baseava da tomada do poder pela força. Mesmo em Thomas Hobbes – defensor do absolutismo – é possível encontrar espaço para uma defesa do direito de resistência do cidadão, em nome da preservação da vida.
É preciso, sobretudo, encampar um processo profundo de recuperação da memória do período autoritário, que exponha para o conjunto da sociedade os fatos que contrapõem a narrativa engendrada pelos militares e que se mostra predominante até hoje. Não se trata, evidentemente, de recorrer ao maniqueísmo e traçar quadros binários e pouco esclarecedores do período. Tampouco significa empregar eufemismos ou malabarismos retóricos e conceituais para justificar o arbítrio do regime. Para isto, revelações como a feita pelo professor Matias Spektor acerca do envolvimento da cúpula do regime no mando de execuções sumárias – são extremamente oportunas, embora insuficientes. É preciso que haja políticas públicas sérias, conduzidas por quem tem legitimidade para tal – os eleitos – com disposição para enfrentar aqueles que ainda se beneficiam da resistência dessas concepções e derrotá-los democraticamente, à luz do dia. Por esta razão, deve-se avançar sobre isto não em salas fechadas e em diálogos herméticos, mas no espaço público, de modo a ensejar um debate amplo e acessível ao conjunto da sociedade, no sentido de desmistificar o regime autoritário e expor como, para muitos, “anos de chumbo” é muito mais que uma metáfora.
Matheus de Oliveira Pereira é doutorando pelo PPG RI San Tiago Dantas e pesquisador do GEDES; é professor na Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP).
Imagem: Corredor restaurado e preservado com as grades da época do funcionamento do DEOSP no prédio do Memorial da Resistência de São Paulo (SP). Por: Larissa Isabelle Herrera Diaz.

70 anos de Israel e da Nakba

Israel completou, no último 14 de maio, 70 anos de independência com cerimônias oficiais e eventos abertos. O assunto que já despontava em 1948 permanece, entretanto, sendo o cerne da política nacional e do debate público na sociedade israelense: a questão palestina. Para os cidadãos árabes de Israel e para os palestinos que vivem sob ocupação israelense há 51 anos.
Mas a situação é ainda mais grave. Um olhar histórico mostra que a Nakba (termo em árabe que significa tragédia, utilizado para descrever a expulsão de palestinos na criação do Estado de Israel) dos palestinos não terminou com o estabelecimento do Estado de Israel. Só começou naquele momento e, de fato, continua até hoje. Israel não desenvolveu uma nova abordagem que leve em conta também os interesses do povo palestino. A política de desapropriação e despejo começou em 1948 e continua desde o começo da ocupação nas áreas de 1967, ano da Guerra dos Seis Dias que despontou o começo da construção de assentamentos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza (desocupada em 2005), com a política de construção de assentamentos.
Enquanto um Estado palestino não for estabelecido, a Nakba e o luto dos palestinos – e dos cidadãos árabes de Israel – não acabarão. O líder do partido Lista Árabe Conjunta, o parlamentar Ayman Odeh, disse em meio as comemorações: "enquanto você se recusa a reconhecer o passado e agir para reparar a realidade atual, não podemos construir juntos um futuro para os judeus e árabes neste país.”
Todavia, o aumento dos assentamentos na região da Cisjordânia promovido por Israel pressiona o cenário no sentido da unificação. A ampliação dos assentamentos pode ser entendida como uma forma de pressão da parte do governo de Benjamin Netanyahu, visando eventualmente à formação da Grande Israel bíblica, mas que terá muitos custos políticos para Israel.
A questão se torna mais complexa uma vez que os assentamentos na Cisjordânia estão se tornando cada vez maiores em número e extensão territorial, com aproximadamente meio milhão de habitantes israelenses, tornando uma desocupação extremamente custosa para o Estado de Israel; caso que já ocorreu em 2005 com a desocupação dos assentamentos israelenses na Faixa de Gaza, mas com uma população muito menor, de aproximadamente 50 mil habitantes. Sendo feita a anexação da Cisjordânia e a cidadania israelense estendida aos palestinos da região, Israel terá um problema demográfico, pois perderá a maioria judaica da população dificultando a manutenção desta característica considerada essencial para o Estado. Se a anexação for realizada, mas sem a cidadania para os palestinos, Israel se consolidará como um Estado de exclusão. Para a manutenção de Israel como um Estado judaico a melhor opção é a criação de um Estado palestino.
As decisões do governo atual do partido Likud estão tornando cada vez mais distante a solução de dois Estados nos moldes dos Acordos de Oslo de 1993, e tornando insustentável a atual realidade de um Estado para Israel pré-1967, um segundo Estado para os colonos da Cisjordânia e um terceiro para os palestinos da Cisjordânia. Se Israel não puder mais transferir os colonos – ou os palestinos – para fora da Cisjordânia, se Israel se recusar a dar aos palestinos o direito à cidadania israelense e ao voto, então o próprio governo estará criando as condições sob as quais uma confederação pode ser a opção mais provável para o futuro na região.
E o que acontece enquanto isso? Israel vai aos poucos deixando de ser o país refúgio para os judeus de todo o mundo e revelando-se uma aberração política no sentido do direito internacional que se aproveita da sua atual condição para obter vantagens territoriais e trabalhistas, uma vez que os palestinos que habitam a Cisjordânia e Gaza não possuem cidadania israelense, mas muitos são obrigados a trabalhar diariamente em Israel por não possuírem oportunidades de trabalho suficientes nos territórios. E por não serem cidadãos israelenses de fato não possuem direitos trabalhistas iguais aos dos habitantes de Israel. Uma brecha que permite ao governo israelense se aproveitar da situação, não tendo anexado a Cisjordânia, entretanto usufruindo diariamente de seu território.
Ao mesmo tempo, o governo de Benjamin Netanyahu, envolvido diretamente em escândalos de corrupção, promove o repúdio a todos aqueles que criticam as ações de sua administração, desde a construção de assentamentos, ocupação, deportação forçada de solicitantes de refúgio africanos até atirar e matar manifestantes desarmados do outro lado de uma fronteira.
A imagem de Israel no cenário internacional continua a se deteriorar progressivamente. Todavia, enquanto a maioria dos organismos internacionais e ONGs condena as políticas de construção de assentamentos e da ocupação dos Territórios Palestinos, os Estados Unidos inauguraram no mesmo dia 14 de maio a Embaixada estadunidense na cidade de Jerusalém, reconhecendo a mesma como capital oficial de Israel. Não é esperado que muitos outros países acompanhem a decisão dos Estados Unidos, mas alguns já sinalizaram ações parecidas, como o Paraguai e a Guatemala. Estas decisões legitimam as políticas realizadas pelo governo de Benjamin Netanyahu, dificultando ainda mais uma resolução pacífica para os dois povos.
Karina Stange Calandrin é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas, pesquisadora do Gedes e professora da Universidade Sagrado Coração (UCS).
Imagem: Força Aérea de Israel faz desfile para comemorar os 63 anos do Estado. Por: Forças de Defesa de Israel.

Suspensão da participação na UNASUL: reflexos sobre a Segurança e a Defesa regional

Em 2008 foi firmado pelos doze países sul-americanos o Tratado Constitutivo da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), que transformou a então Comunidade Sul-Americana de Nações, nascida por iniciativa brasileira em 2004, em UNASUL, a fim de desenvolver, de forma consensual, o processo de integração social, econômica, política e cultural, buscando eliminar assimetrias socioeconômicas e fortalecer a democracia, a independência e a soberania dos Estados (UNASUR, 2008). Paralelamente, objetivava-se a constituição de uma organização estritamente sul-americana, desvinculada das influências estadunidenses e voltada aos interesses autônomos da região, proporcionando a construção do diálogo e de uma identidade própria entre seus países membros (SOUZA, 2016).
No dia 20 de abril de 2018, uma semana após a oitava edição da Cúpula das Américas, Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai e Peru solicitaram suspensão temporária de participação nas atividades da organização. Sua justificativa foi a falta de consenso para a eleição de um secretário geral, cargo vago já há um ano e meio, solicitando resultados concretos para a manutenção do funcionamento das atividades da União, como também revisão do princípio de unanimidade para as decisões. Nota-se uma suposta manobra de pressão (silla vacía) frente aos entraves e problemas que a UNASUL e seus países membros estão passando, nessa atual conjuntura regional de mudanças e dessincronias.
A UNASUL sempre foi alvo de críticas em relação aos poucos avanços concretos realizados em matéria de integração regional. Embora nunca fosse o intuito da organização, os críticos costumam apontar falta de resultados na área econômica e ênfase excessiva no diálogo político que não resulta em medidas específicas, além da aprovação de declarações com poucos efeitos reais. Nesse marco, o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) foi uma exceção. Geralmente apontado como um dos organismos mais dinâmicos, entre 2009 e 2015 o conselho realizou vinte e cinco reuniões de autoridades dos ministérios de Defesa e sessenta eventos que incluem grupos de trabalho específicos, workshops, seminários e conferências sobre diversas temáticas (VITELLI, 2016). Ademais, criou-se duas instâncias permanentes vinculadas a esse conselho, o Centro de Estudos Estratégicos de Defesa (CEED-CDS) e a Escola Sul-Americana de Defesa (ESUDE).
O surgimento do diálogo, a transparência e a confiança entre as forças armadas da América do Sul certamente antecedem a criação do CDS. Analistas têm apontado, porém, que a UNASUL foi um ator chave na resolução pacífica de conflitos internos e interestatais recentes na região (FERREIRA, 2018), como no conflito entre Colômbia, Equador e Venezuela, em 2008, e em momentos de instabilidade interna na Bolívia, Equador, Paraguai e Venezuela. A inovação particular que nem sempre é apontada, é que, à preexistência de diálogo entre forças armadas o CDS adicionou uma dinâmica e uma institucionalidade de interação entre os ministérios de Defesa, isto é, de uma instância civil e política, não apenas corporativa, no intuito de atingir avanços em matéria de controle civil e a condução política da defesa. Certamente, isto foi um desafio para países, como o Brasil, no qual os ministérios ainda não são controlados efetivamente pelos civis. Desde a crise política brasileira, iniciada com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, nota-se uma intensificação da presença militar, que passa a constituir uma agenda política e estratégica nacional, especialmente com a substituição de Raul Jungmann pelo Gen. Joaquim Silva e Luna no cargo de ministro de Defesa.
O CDS fez esforços em duas dimensões, com resultados diferentes. Por um lado, o organismo se propôs a consolidação de relações pacíficas, de confiança e transparência entre os membros, objetivo que, apesar de desconfianças existentes, conseguiu o consenso de todos os países. Por outro lado, um grupo de membros incentivou a formulação de um conceito estratégico regional sobre a base da preocupação em torno da soberania e da autonomia. Ainda que com nuances, a Venezuela, a Bolívia, o Equador e a Argentina – com o acompanhamento discursivo do ex-ministro brasileiro Celso Amorim – junto à Secretaria Geral da UNASUL, começaram a discutir uma proposta regional de defesa baseada na cooperação para a dissuasão de uma ameaça vinda de potências extrarregionais contra as riquezas naturais sul-americanas. Por diversos motivos, os demais países discordaram desta perspectiva. Este dissenso permite enxergar diferenças ideológicas fundamentais entre os membros, as quais se fortaleceram com mudanças dos governos e culminaram na suspensão voluntária da participação na UNASUL.
Em primeiro lugar, há os países com uma política externa orientada a uma relação privilegiada com os Estados Unidos. Embora não necessariamente o conceito de “cooperação dissuasória” considera a Washington como uma ameaça, ele certamente significa uma dissidência fundamental com a política estadunidense de segurança hemisférica, segundo a qual as forças armadas da região devem apenas se ocupar do crime organizado e da luta contra o terrorismo. Em segundo lugar, o conceito enfrentou a forte oposição de forças armadas que ainda operam sob a lógica da Guerra Fria. Os militares brasileiros, por exemplo, nunca aceitaram a formulação de um conceito estratégico favorecido pelos “países bolivarianos”, da mesma forma que colocaram entraves a outros projetos que tinham participação destes países por considerá-los “ideológicos”.
A mudança da orientação política dos governos também torna-se influente, com o retorno da região ao espectro político de direita, e não mais do alinhamento de ideais de governos progressistas, tendo-se uma alteração no “rumo das políticas domésticas dos países sul-americanos”. O que deixa clara a falta de pragmatismo das políticas exteriores, sem perspectivas de longo prazo e visão regional. O Brasil, ao mesmo tempo que trabalhou arduamente na criação do Conselho de Defesa durante o governo de Lula da Silva, foi um dos países que decidiu suspender-se da UNASUL como um todo. Sua atitude paradoxal mostra o enfraquecimento de seu poder regional, bem como de sua política externa autônoma e de sua visão mediadora e participativa no cenário internacional.
Considerando que não se trata de um abandono definitivo da organização, é difícil elucidar quais são as consequências da suspensão da participação na cooperação em defesa entre os sul-americanos. Tendo em conta o dito aqui, é provável que exista continuidade das iniciativas do CDS que não precisarem de maiores despesas e que contem com a colaboração da ESUDE, organismo muito dinâmico nos últimos dois anos. Já aquelas ações que demandem recursos maiores certamente ficam inviabilizadas com o afastamento dos cinco membros, especialmente por financiarem 80% do orçamento da UNASUL.
Marina Vitelli é doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Rosário (UnR) e pós doutoranda pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP)
Tamires Ap. Ferreira Souza é doutoranda em Relações Internacionais – PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP). Foi investigadora visitante na Universidad Complutense de Madrid (ICEI) entre os anos 2017 e 2018.
Imagem: Sede da Unasul localizada em Quito, Equador. Por: Montserrat Boix.
Referências:
FERREIRA, Marcos Alan. A crise da UNASUL e seus impactos no seu histórico de promotor da paz regional. 2 de maio de 2018. Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança. Disponível em <https://redepcecs.com/2018/05/02/a-crise-da-unasul-e-seus-impactos-no-seu-historico-de-promotor-da-paz-regional>.
SOUZA, Tamires A. Ferreira. As razões de existência do Conselho de Defesa Sul-Americano da UNASUL. Revista Carta Internacional, v.11, n.3, p. 124-148, 2016.
UNASUR. Historia. 2008. Disponível em: <http://www.unasursg.org/inicio/organizacion/historia>.
VITELLI, Marina Gisela. Comunidad e Identidad en la Cooperación Regional en Defensa: Entendimientos en Conflicto sobre Pensamiento Estratégico en el Consejo de Defensa Sudamericano. Revista Da Escola de Guerra Naval, 22 (2): 233–60, 2016.

Suspensão da participação na UNASUL: reflexos sobre a Segurança e a Defesa regional

Em 2008 foi firmado pelos doze países sul-americanos o Tratado Constitutivo da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), que transformou a então Comunidade Sul-Americana de Nações, nascida por iniciativa brasileira em 2004, em UNASUL, a fim de desenvolver, de forma consensual, o processo de integração social, econômica, política e cultural, buscando eliminar assimetrias socioeconômicas e fortalecer a democracia, a independência e a soberania dos Estados (UNASUR, 2008). Paralelamente, objetivava-se a constituição de uma organização estritamente sul-americana, desvinculada das influências estadunidenses e voltada aos interesses autônomos da região, proporcionando a construção do diálogo e de uma identidade própria entre seus países membros (SOUZA, 2016).
No dia 20 de abril de 2018, uma semana após a oitava edição da Cúpula das Américas, Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai e Peru solicitaram suspensão temporária de participação nas atividades da organização. Sua justificativa foi a falta de consenso para a eleição de um secretário geral, cargo vago já há um ano e meio, solicitando resultados concretos para a manutenção do funcionamento das atividades da União, como também revisão do princípio de unanimidade para as decisões. Nota-se uma suposta manobra de pressão (silla vacía) frente aos entraves e problemas que a UNASUL e seus países membros estão passando, nessa atual conjuntura regional de mudanças e dessincronias.
A UNASUL sempre foi alvo de críticas em relação aos poucos avanços concretos realizados em matéria de integração regional. Embora nunca fosse o intuito da organização, os críticos costumam apontar falta de resultados na área econômica e ênfase excessiva no diálogo político que não resulta em medidas específicas, além da aprovação de declarações com poucos efeitos reais. Nesse marco, o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) foi uma exceção. Geralmente apontado como um dos organismos mais dinâmicos, entre 2009 e 2015 o conselho realizou vinte e cinco reuniões de autoridades dos ministérios de Defesa e sessenta eventos que incluem grupos de trabalho específicos, workshops, seminários e conferências sobre diversas temáticas (VITELLI, 2016). Ademais, criou-se duas instâncias permanentes vinculadas a esse conselho, o Centro de Estudos Estratégicos de Defesa (CEED-CDS) e a Escola Sul-Americana de Defesa (ESUDE).
O surgimento do diálogo, a transparência e a confiança entre as forças armadas da América do Sul certamente antecedem a criação do CDS. Analistas têm apontado, porém, que a UNASUL foi um ator chave na resolução pacífica de conflitos internos e interestatais recentes na região (FERREIRA, 2018), como no conflito entre Colômbia, Equador e Venezuela, em 2008, e em momentos de instabilidade interna na Bolívia, Equador, Paraguai e Venezuela. A inovação particular que nem sempre é apontada, é que, à preexistência de diálogo entre forças armadas o CDS adicionou uma dinâmica e uma institucionalidade de interação entre os ministérios de Defesa, isto é, de uma instância civil e política, não apenas corporativa, no intuito de atingir avanços em matéria de controle civil e a condução política da defesa. Certamente, isto foi um desafio para países, como o Brasil, no qual os ministérios ainda não são controlados efetivamente pelos civis. Desde a crise política brasileira, iniciada com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, nota-se uma intensificação da presença militar, que passa a constituir uma agenda política e estratégica nacional, especialmente com a substituição de Raul Jungmann pelo Gen. Joaquim Silva e Luna no cargo de ministro de Defesa.
O CDS fez esforços em duas dimensões, com resultados diferentes. Por um lado, o organismo se propôs a consolidação de relações pacíficas, de confiança e transparência entre os membros, objetivo que, apesar de desconfianças existentes, conseguiu o consenso de todos os países. Por outro lado, um grupo de membros incentivou a formulação de um conceito estratégico regional sobre a base da preocupação em torno da soberania e da autonomia. Ainda que com nuances, a Venezuela, a Bolívia, o Equador e a Argentina – com o acompanhamento discursivo do ex-ministro brasileiro Celso Amorim – junto à Secretaria Geral da UNASUL, começaram a discutir uma proposta regional de defesa baseada na cooperação para a dissuasão de uma ameaça vinda de potências extrarregionais contra as riquezas naturais sul-americanas. Por diversos motivos, os demais países discordaram desta perspectiva. Este dissenso permite enxergar diferenças ideológicas fundamentais entre os membros, as quais se fortaleceram com mudanças dos governos e culminaram na suspensão voluntária da participação na UNASUL.
Em primeiro lugar, há os países com uma política externa orientada a uma relação privilegiada com os Estados Unidos. Embora não necessariamente o conceito de “cooperação dissuasória” considera a Washington como uma ameaça, ele certamente significa uma dissidência fundamental com a política estadunidense de segurança hemisférica, segundo a qual as forças armadas da região devem apenas se ocupar do crime organizado e da luta contra o terrorismo. Em segundo lugar, o conceito enfrentou a forte oposição de forças armadas que ainda operam sob a lógica da Guerra Fria. Os militares brasileiros, por exemplo, nunca aceitaram a formulação de um conceito estratégico favorecido pelos “países bolivarianos”, da mesma forma que colocaram entraves a outros projetos que tinham participação destes países por considerá-los “ideológicos”.
A mudança da orientação política dos governos também torna-se influente, com o retorno da região ao espectro político de direita, e não mais do alinhamento de ideais de governos progressistas, tendo-se uma alteração no “rumo das políticas domésticas dos países sul-americanos”. O que deixa clara a falta de pragmatismo das políticas exteriores, sem perspectivas de longo prazo e visão regional. O Brasil, ao mesmo tempo que trabalhou arduamente na criação do Conselho de Defesa durante o governo de Lula da Silva, foi um dos países que decidiu suspender-se da UNASUL como um todo. Sua atitude paradoxal mostra o enfraquecimento de seu poder regional, bem como de sua política externa autônoma e de sua visão mediadora e participativa no cenário internacional.
Considerando que não se trata de um abandono definitivo da organização, é difícil elucidar quais são as consequências da suspensão da participação na cooperação em defesa entre os sul-americanos. Tendo em conta o dito aqui, é provável que exista continuidade das iniciativas do CDS que não precisarem de maiores despesas e que contem com a colaboração da ESUDE, organismo muito dinâmico nos últimos dois anos. Já aquelas ações que demandem recursos maiores certamente ficam inviabilizadas com o afastamento dos cinco membros, especialmente por financiarem 80% do orçamento da UNASUL.
Marina Vitelli é doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Rosário (UnR) e pós doutoranda pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP)
Tamires Ap. Ferreira Souza é doutoranda em Relações Internacionais – PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP). Foi investigadora visitante na Universidad Complutense de Madrid (ICEI) entre os anos 2017 e 2018.
Imagem: Sede da Unasul localizada em Quito, Equador. Por: Montserrat Boix.
Referências:
FERREIRA, Marcos Alan. A crise da UNASUL e seus impactos no seu histórico de promotor da paz regional. 2 de maio de 2018. Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança. Disponível em <https://redepcecs.com/2018/05/02/a-crise-da-unasul-e-seus-impactos-no-seu-historico-de-promotor-da-paz-regional>.
SOUZA, Tamires A. Ferreira. As razões de existência do Conselho de Defesa Sul-Americano da UNASUL. Revista Carta Internacional, v.11, n.3, p. 124-148, 2016.
UNASUR. Historia. 2008. Disponível em: <http://www.unasursg.org/inicio/organizacion/historia>.
VITELLI, Marina Gisela. Comunidad e Identidad en la Cooperación Regional en Defensa: Entendimientos en Conflicto sobre Pensamiento Estratégico en el Consejo de Defensa Sudamericano. Revista Da Escola de Guerra Naval, 22 (2): 233–60, 2016.

Os militares no governo Temer: segurança pública e controle político

Durante o governo de Michel Temer duas questões trouxeram as Forças Armadas para o centro do debate público: o constante direcionamento dos militares a missões de segurança pública e as constantes declarações políticas de militares da ativa e da reserva. Enquanto a primeira, característica histórica da instituição, parece ter atingido novas dimensões com a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, a segunda coloca em questão o que era considerado por alguns como assunto encerrado: o controle civil sobre os militares e o afastamento dos mesmos da política.
A mobilização de tropas no interior das fronteiras nacionais para cumprir missões que envolvem o emprego da força não consisti uma exclusividade da gestão de Michel Temer, pelo contrário, pode ser observada durante toda a história do Brasil, tento ganhado considerável corpo legal nos últimos governos. De qualquer forma, a atribuição deste tipo de tarefa ao instrumento militar, fundamentada no dispositivo legal da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), foi uma constante desde o início do governo Temer, podendo ser indicada como uma característica do mesmo. Apesar de o ex-ministro da Defesa, Raul Jungmann, no começo de sua gestão ter denunciado o que chamou de banalização do uso das Forças Armadas em segurança pública, logo assumiu uma posição proeminente nas declarações sobre a segurança do Rio de Janeiro nos noticiários, relegando o ministro da Justiça, Torquato Jardim, ao segundo plano. A título de exemplo, pode-se citar, entre outros casos, o emprego dos militares no Espírito Santo, diante da greve da Polícia Militar; em varredura de presídios; em operações de segurança pública na região metropolitana de Natal; e em diversas ações na cidade do Rio de Janeiro desde o início de 2017, culminando na intervenção federal em segurança pública no estado. Estas medidas são constantemente questionadas em diversas dimensões como a da sua efetividade e de suas consequências em termos de direitos humanos, para aqueles que residem nas áreas que são alvo das operações de GLO [1][2][3].
A mobilização política explícita dos militares – definida na legislação como uma transgressão – foi outra marca das relações civis-militares durante o governo Temer. Destacamos aqui as figuras do general Antônio Hamilton Mourão e do Comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas. Mourão, que já havia sido centro de polêmica em governos anteriores, durante a gestão Temer sugeriu por duas vezes [1][2] que deveria haver uma intervenção militar caso as instituições brasileiras não fossem capazes de lidar com as instabilidades políticas. O general não apenas não teve sua conduta repreendida pelo Ministério da Defesa, como passou para a reserva de forma ilustre, sob elogios do Comandante do Exército. Deve-se pontuar que em seu último discurso Mourão enalteceu o coronel Carlos Brilhante Ustra, reconhecido como torturador pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade de 2014. Villas Boas, por sua vez, às vésperas do julgamento do habeas corpus do ex-presidente, Luiz Inácio da Silva, fez declarações sobre corrupção e afirmou que os militares devem ficar atentos às suas funções institucionais. Ainda que não tenha deixado claro o significado exato das funções a serem observadas, o tom das declarações feitas pelo general, assim como a ressonância que teve no meio militar e o momento específico em que as fez gerou a percepção de que as Forças Armadas estariam pressionando a votação no Supremo Tribunal Federal. Como podemos então compreender o vínculo entre estas duas dimensões da questão militar?
É comum a concepção de que a atuação das forças armadas no âmbito doméstico estaria vinculada ao ímpeto militar por manter seu poder de influência política, seria então resultado da falta de controle político dos civis sobre a instituição castrense. Esta visão pressupõe que existe uma homogeneidade de interesses tanto entre os militares quanto entre os civis. Considera, desta forma, que os primeiros são necessariamente favoráveis à atuação em tarefas internas e que os segundos são automaticamente contrários à mesma. Sob está ótica negligencia-se a responsabilidade do governo civil em alocar as forças armadas neste tipo de missão, ao se pressupor que quando este tiver o total controle da escolha política, decidirá pelo afastamento das forças armadas da segurança pública, quando o que se observa no governo Temer, e não só, é o governo civil como principal propositor deste tipo de tarefa. Não se pode ignorar ainda a aceitação que este tipo de operação encontra na sociedade civil.
Com efeito, não é possível analisar o período em tela a partir desta concepção, uma vez que seria pouco plausível afirmar que o recorrente emprego das forças armadas em segurança pública durante pelo governo Temer seja resultado de pressões castrenses. Isto não significa, porém, entender a instituição militar como um ator inerte. Esta possui uma agenda própria e movimenta-se politicamente não apenas no âmbito específico das tarefas de segurança pública que lhes são atribuídas, mas também no panorama político nacional. Pode-se indicar a pressão das Forças Armadas, com destaque para o general Villas Boas, por maior segurança jurídica para os militares que atuam em missões de segurança pública, no sentido da qual, em outubro de 2017, foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República a Lei 13.491, que estabelece a Justiça Militar como foro de julgamento dos crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis durante operações de GLO.
Há, portanto, uma relação complexa na qual à medida que o governo civil emprega seu instrumento militar em questões intensamente sensíveis para o debate público, como é a segurança pública e a violência urbana, buscando afirmar uma atuação supostamente mais rígida e definitiva contra o crime organizado, gera uma relação de dependência política com as forças armadas, vinculando a imagem e aprovação de seu governo à atuação dos militares. Este processo aumenta o poder de barganha política da corporação militar, trazendo à tona uma questão que aparenta nunca ter sido totalmente resolvida no Brasil: a insistência da instituição castrense de arrogar a si mesma a legitimidade de se posicionar acima das regras do jogo democrático, quando considerar necessário para a garantia de uma ordem, cujo significado é redefinido de acordo com a necessidade e conjuntura política.
Imagem: Coletiva sobre o decreto de intervenção federal no Rio. Por: Agência Brasil Fotografias.
David Succi Junior é doutorando pelo PPG em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisador do GEDES.

Os militares no governo Temer: segurança pública e controle político

Durante o governo de Michel Temer duas questões trouxeram as Forças Armadas para o centro do debate público: o constante direcionamento dos militares a missões de segurança pública e as constantes declarações políticas de militares da ativa e da reserva. Enquanto a primeira, característica histórica da instituição, parece ter atingido novas dimensões com a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, a segunda coloca em questão o que era considerado por alguns como assunto encerrado: o controle civil sobre os militares e o afastamento dos mesmos da política.
A mobilização de tropas no interior das fronteiras nacionais para cumprir missões que envolvem o emprego da força não consisti uma exclusividade da gestão de Michel Temer, pelo contrário, pode ser observada durante toda a história do Brasil, tento ganhado considerável corpo legal nos últimos governos. De qualquer forma, a atribuição deste tipo de tarefa ao instrumento militar, fundamentada no dispositivo legal da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), foi uma constante desde o início do governo Temer, podendo ser indicada como uma característica do mesmo. Apesar de o ex-ministro da Defesa, Raul Jungmann, no começo de sua gestão ter denunciado o que chamou de banalização do uso das Forças Armadas em segurança pública, logo assumiu uma posição proeminente nas declarações sobre a segurança do Rio de Janeiro nos noticiários, relegando o ministro da Justiça, Torquato Jardim, ao segundo plano. A título de exemplo, pode-se citar, entre outros casos, o emprego dos militares no Espírito Santo, diante da greve da Polícia Militar; em varredura de presídios; em operações de segurança pública na região metropolitana de Natal; e em diversas ações na cidade do Rio de Janeiro desde o início de 2017, culminando na intervenção federal em segurança pública no estado. Estas medidas são constantemente questionadas em diversas dimensões como a da sua efetividade e de suas consequências em termos de direitos humanos, para aqueles que residem nas áreas que são alvo das operações de GLO [1][2][3].
A mobilização política explícita dos militares – definida na legislação como uma transgressão – foi outra marca das relações civis-militares durante o governo Temer. Destacamos aqui as figuras do general Antônio Hamilton Mourão e do Comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas. Mourão, que já havia sido centro de polêmica em governos anteriores, durante a gestão Temer sugeriu por duas vezes [1][2] que deveria haver uma intervenção militar caso as instituições brasileiras não fossem capazes de lidar com as instabilidades políticas. O general não apenas não teve sua conduta repreendida pelo Ministério da Defesa, como passou para a reserva de forma ilustre, sob elogios do Comandante do Exército. Deve-se pontuar que em seu último discurso Mourão enalteceu o coronel Carlos Brilhante Ustra, reconhecido como torturador pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade de 2014. Villas Boas, por sua vez, às vésperas do julgamento do habeas corpus do ex-presidente, Luiz Inácio da Silva, fez declarações sobre corrupção e afirmou que os militares devem ficar atentos às suas funções institucionais. Ainda que não tenha deixado claro o significado exato das funções a serem observadas, o tom das declarações feitas pelo general, assim como a ressonância que teve no meio militar e o momento específico em que as fez gerou a percepção de que as Forças Armadas estariam pressionando a votação no Supremo Tribunal Federal. Como podemos então compreender o vínculo entre estas duas dimensões da questão militar?
É comum a concepção de que a atuação das forças armadas no âmbito doméstico estaria vinculada ao ímpeto militar por manter seu poder de influência política, seria então resultado da falta de controle político dos civis sobre a instituição castrense. Esta visão pressupõe que existe uma homogeneidade de interesses tanto entre os militares quanto entre os civis. Considera, desta forma, que os primeiros são necessariamente favoráveis à atuação em tarefas internas e que os segundos são automaticamente contrários à mesma. Sob está ótica negligencia-se a responsabilidade do governo civil em alocar as forças armadas neste tipo de missão, ao se pressupor que quando este tiver o total controle da escolha política, decidirá pelo afastamento das forças armadas da segurança pública, quando o que se observa no governo Temer, e não só, é o governo civil como principal propositor deste tipo de tarefa. Não se pode ignorar ainda a aceitação que este tipo de operação encontra na sociedade civil.
Com efeito, não é possível analisar o período em tela a partir desta concepção, uma vez que seria pouco plausível afirmar que o recorrente emprego das forças armadas em segurança pública durante pelo governo Temer seja resultado de pressões castrenses. Isto não significa, porém, entender a instituição militar como um ator inerte. Esta possui uma agenda própria e movimenta-se politicamente não apenas no âmbito específico das tarefas de segurança pública que lhes são atribuídas, mas também no panorama político nacional. Pode-se indicar a pressão das Forças Armadas, com destaque para o general Villas Boas, por maior segurança jurídica para os militares que atuam em missões de segurança pública, no sentido da qual, em outubro de 2017, foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República a Lei 13.491, que estabelece a Justiça Militar como foro de julgamento dos crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis durante operações de GLO.
Há, portanto, uma relação complexa na qual à medida que o governo civil emprega seu instrumento militar em questões intensamente sensíveis para o debate público, como é a segurança pública e a violência urbana, buscando afirmar uma atuação supostamente mais rígida e definitiva contra o crime organizado, gera uma relação de dependência política com as forças armadas, vinculando a imagem e aprovação de seu governo à atuação dos militares. Este processo aumenta o poder de barganha política da corporação militar, trazendo à tona uma questão que aparenta nunca ter sido totalmente resolvida no Brasil: a insistência da instituição castrense de arrogar a si mesma a legitimidade de se posicionar acima das regras do jogo democrático, quando considerar necessário para a garantia de uma ordem, cujo significado é redefinido de acordo com a necessidade e conjuntura política.
Imagem: Coletiva sobre o decreto de intervenção federal no Rio. Por: Agência Brasil Fotografias.
David Succi Junior é doutorando pelo PPG em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisador do GEDES.

A participação da Força Alternativa Revolucionária do Comum nas eleições colombianas

No dia 11 de março de 2018, a Colômbia realizou as primeiras eleições legislativas com a participação de candidatos da Força Alternativa Revolucionária do Comum, partido criado após a conclusão do acordo de paz para o conflito que evolveu por cinco décadas as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (FARC-EP). A Força Alternativa recebeu menos de 100 mil votos na estreia eleitoral. No entanto, o acordo de paz garantiu a seleção de 10 membros do partido para os exercícios legislativos entre 2018 e 2026 como alternativa para permitir a representação política do grupo e iniciativa para impulsionar a reconciliação nacional, apesar dos resultados das urnas. É prudente destacar que outros grupos minoritários possuem a garantia de assentos nas casas legislativas colombianas, sob o exemplo significativo das representações de lideranças indígenas. Outra consideração relevante à análise consiste na não-obrigatoriedade do voto no país latino-americano.
Em contrapartida, a informalmente denominada “Coalizão do Não”, composta por partidos de direita e que conta com a figura do ex-presidente colombiano, Álvaro Uribe, conquistou 50 das 108 cadeiras do Senado, e 83 dos 171 assentos da Câmara de Representantes. O grupo reúne representantes contrários ao acordo de paz como o senador pelo partido Centro Democrático e candidato à presidência da República da Colômbia, Iván Duque. O presidenciável posicionou-se favoravelmente à realização de modificações significativas nos acordos negociados com as FARC-EP.
É preciso notar que o plebiscito que buscou mensurar a aprovação dos cidadãos colombianos aos resultados do processo de paz, realizado em 2 de outubro de 2016, foi marcado por intensa polarização. O resultado da apuração indicou que 50,2% dos votantes se opôs à conclusão do acordo com as FARC-EP. O ex-presidente Uribe foi porta-voz de uma intensa campanha contrária à decisão pela paz. Nota-se, em agravo, que a abstenção ao pleito alcançou o marcador de 60% da população registrada para votação.
O processo de paz na Colômbia compreende etapas de desarmamento, desmobilização e reintegração dos antigos combatentes do antigo grupo guerrilheiro. A etapa de deposição das armas das FARC-EP e o cessar-fogo bilateral foram monitorados por atores internacionais. A Organização das Nações Unidas, sob pedido das partes beligerantes, autorizou o envio de uma missão de verificação para a primeira etapa de cessão das hostilidades. As iniciativas de reintegração dos ex-combatentes também são supervisionadas por uma missão internacional.
É possível considerar que o termo “reintegração” remete frequentemente à ideia de que o combatente não participa do cotidiano social do país. No entanto, percebemos que, ao longo dos 52 anos de conflito, a ação dos guerrilheiros e das forças de segurança colombianas enraizaram-se no dia-a-dia colombiano. A associação de grupos guerrilheiros colombianos à produção e tráfico de entorpecentes, assim como a realização de sequestros, tornou-se uma fonte de financiamento de suas atividades. É adequado considerar que, sob o símbolo revolucionário, as FARC-EP buscaram se opor à institucionalidade do Estado colombiano. Observamos também ações deliberadas de governos e agências do Estado colombiano com o objetivo de marginalizar o movimento guerrilheiro, sobretudo ao imputar associações imediatas entre os grupos irregulares e a criminalidade. Dessa maneira, é prudente considerar que as ações de reintegração dos ex-combatentes referem-se ao objetivo de permitir sua participação política através da institucionalidade estatal.
Os registros de violência, para além de implicações relativas ao combate entre o aparelho de segurança estatal e as forças guerrilheiras, geraram traumasna população civil. Nesse sentido, enfatiza-se a relevância de promover iniciativas para a reconciliação nacional. Argumentamos que, sob o afã de concluir os acordos de paz, iniciativas de justiça de transição foram submetidas ao objetivo de participação política pelo antigo grupo guerrilheiro. Reiteramos, assim, a necessidade de considerar a participação dos atores locais no processo de construção da paz. A consolidação de uma conjuntura pacífica demanda a compreensão das posições refratárias à conclusão dos acordos com o grupo guerrilheiro.
Em quadro geral, a perspectiva pela consolidação da paz depara-se com uma série de obstáculos significativos, visto a resistência de partes significativas da liderança política à participação dos antigos combatentes na sociedade civil colombiana. Ao observar o esforço pela paz na sociedade colombiana, é preciso destacar as negociações em torno do conflito entre o governo colombiano e o Exército de Libertação Nacional. O cessar-fogo temporário, apesar de violações por ambas as partes, pode ser interpretado como um avanço em análises otimistas. Indicamos, no entanto, que o crescimento de quadros políticos contrários aos acordos de paz nas eleições 2018 representam uma resistência grave à consolidação de uma conjuntura pacífica no país. Ademais, é preciso considerar a manifestação popular no plebiscito realizado no ano de 2016 de maneira a implementar ações de promoção da paz. Corroboramos, nesse sentido, o argumento de que a consolidação da paz demanda uma análise extensiva dos efeitos da violência ao longo das cinco décadas de conflito.
Compreendemos que a possibilidade de representação política dos interesses do antigo grupo guerrilheiro constitui um marco significativo para a construção de uma sociedade pacífica. No entanto, assinalamos que a condução das iniciativas para a construção da paz demanda um espectro temporal próprio, avaliado de acordo com os obstáculos impostos. Assim, reitera-se a necessidade de promover uma iniciativa ampla de reconciliação nacional, capaz de mobilizar os atores locais para a resolução de problemas que afetam a sociedade colombiana.
Leonardo Dias de Paula é mestrando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas e pesquisador do Gedes.
Imagem: Elecciones 2018. Por CNE. Por: Consejo Nacional Electoral.

A participação da Força Alternativa Revolucionária do Comum nas eleições colombianas

No dia 11 de março de 2018, a Colômbia realizou as primeiras eleições legislativas com a participação de candidatos da Força Alternativa Revolucionária do Comum, partido criado após a conclusão do acordo de paz para o conflito que evolveu por cinco décadas as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (FARC-EP). A Força Alternativa recebeu menos de 100 mil votos na estreia eleitoral. No entanto, o acordo de paz garantiu a seleção de 10 membros do partido para os exercícios legislativos entre 2018 e 2026 como alternativa para permitir a representação política do grupo e iniciativa para impulsionar a reconciliação nacional, apesar dos resultados das urnas. É prudente destacar que outros grupos minoritários possuem a garantia de assentos nas casas legislativas colombianas, sob o exemplo significativo das representações de lideranças indígenas. Outra consideração relevante à análise consiste na não-obrigatoriedade do voto no país latino-americano.
Em contrapartida, a informalmente denominada “Coalizão do Não”, composta por partidos de direita e que conta com a figura do ex-presidente colombiano, Álvaro Uribe, conquistou 50 das 108 cadeiras do Senado, e 83 dos 171 assentos da Câmara de Representantes. O grupo reúne representantes contrários ao acordo de paz como o senador pelo partido Centro Democrático e candidato à presidência da República da Colômbia, Iván Duque. O presidenciável posicionou-se favoravelmente à realização de modificações significativas nos acordos negociados com as FARC-EP.
É preciso notar que o plebiscito que buscou mensurar a aprovação dos cidadãos colombianos aos resultados do processo de paz, realizado em 2 de outubro de 2016, foi marcado por intensa polarização. O resultado da apuração indicou que 50,2% dos votantes se opôs à conclusão do acordo com as FARC-EP. O ex-presidente Uribe foi porta-voz de uma intensa campanha contrária à decisão pela paz. Nota-se, em agravo, que a abstenção ao pleito alcançou o marcador de 60% da população registrada para votação.
O processo de paz na Colômbia compreende etapas de desarmamento, desmobilização e reintegração dos antigos combatentes do antigo grupo guerrilheiro. A etapa de deposição das armas das FARC-EP e o cessar-fogo bilateral foram monitorados por atores internacionais. A Organização das Nações Unidas, sob pedido das partes beligerantes, autorizou o envio de uma missão de verificação para a primeira etapa de cessão das hostilidades. As iniciativas de reintegração dos ex-combatentes também são supervisionadas por uma missão internacional.
É possível considerar que o termo “reintegração” remete frequentemente à ideia de que o combatente não participa do cotidiano social do país. No entanto, percebemos que, ao longo dos 52 anos de conflito, a ação dos guerrilheiros e das forças de segurança colombianas enraizaram-se no dia-a-dia colombiano. A associação de grupos guerrilheiros colombianos à produção e tráfico de entorpecentes, assim como a realização de sequestros, tornou-se uma fonte de financiamento de suas atividades. É adequado considerar que, sob o símbolo revolucionário, as FARC-EP buscaram se opor à institucionalidade do Estado colombiano. Observamos também ações deliberadas de governos e agências do Estado colombiano com o objetivo de marginalizar o movimento guerrilheiro, sobretudo ao imputar associações imediatas entre os grupos irregulares e a criminalidade. Dessa maneira, é prudente considerar que as ações de reintegração dos ex-combatentes referem-se ao objetivo de permitir sua participação política através da institucionalidade estatal.
Os registros de violência, para além de implicações relativas ao combate entre o aparelho de segurança estatal e as forças guerrilheiras, geraram traumasna população civil. Nesse sentido, enfatiza-se a relevância de promover iniciativas para a reconciliação nacional. Argumentamos que, sob o afã de concluir os acordos de paz, iniciativas de justiça de transição foram submetidas ao objetivo de participação política pelo antigo grupo guerrilheiro. Reiteramos, assim, a necessidade de considerar a participação dos atores locais no processo de construção da paz. A consolidação de uma conjuntura pacífica demanda a compreensão das posições refratárias à conclusão dos acordos com o grupo guerrilheiro.
Em quadro geral, a perspectiva pela consolidação da paz depara-se com uma série de obstáculos significativos, visto a resistência de partes significativas da liderança política à participação dos antigos combatentes na sociedade civil colombiana. Ao observar o esforço pela paz na sociedade colombiana, é preciso destacar as negociações em torno do conflito entre o governo colombiano e o Exército de Libertação Nacional. O cessar-fogo temporário, apesar de violações por ambas as partes, pode ser interpretado como um avanço em análises otimistas. Indicamos, no entanto, que o crescimento de quadros políticos contrários aos acordos de paz nas eleições 2018 representam uma resistência grave à consolidação de uma conjuntura pacífica no país. Ademais, é preciso considerar a manifestação popular no plebiscito realizado no ano de 2016 de maneira a implementar ações de promoção da paz. Corroboramos, nesse sentido, o argumento de que a consolidação da paz demanda uma análise extensiva dos efeitos da violência ao longo das cinco décadas de conflito.
Compreendemos que a possibilidade de representação política dos interesses do antigo grupo guerrilheiro constitui um marco significativo para a construção de uma sociedade pacífica. No entanto, assinalamos que a condução das iniciativas para a construção da paz demanda um espectro temporal próprio, avaliado de acordo com os obstáculos impostos. Assim, reitera-se a necessidade de promover uma iniciativa ampla de reconciliação nacional, capaz de mobilizar os atores locais para a resolução de problemas que afetam a sociedade colombiana.
Leonardo Dias de Paula é mestrando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas e pesquisador do Gedes.
Imagem: Elecciones 2018. Por CNE. Por: Consejo Nacional Electoral.