[elementor-template id="5531"]

NOTA DE REPÚDIO

Em 31 de março de 1964 a democracia foi violentada, estuprada e humilhada. Em um ato que envergonhou a Nação, suas forças armadas atropelaram a história para sequestrar o poder do povo e deixar uma indelével mancha de ilegítima violência. Endividaram o país, aumentaram o desemprego, desmoralizaram a política, entregaram o país ao estrangeiro.

Por isso, causa espanto não apenas a ausência de pedido de perdão pelas cassações, prisões extrajudiciais, torturas e mortes, inclusive de milhares de indígenas, ocorridas nesse período infame, mas que o ministro da Defesa de um governo apenas formalmente democrático comemore essa data como uma vitória, neste ano de luto pela omissão do governo militar-bolsonarista para controlar a pandemia.

Depois do trabalho consciente, metódico e sistemático dos historiadores brasileiros e estrangeiros para mostrar que nessa data se perpetrou um Golpe Militar contra a normalidade institucional, os militares, que se mostraram despreparados para cumprir a missão para a qual são muito bem pagos, querem corrigir o trabalho de abnegados historiadores para dar sua versão terraplanista dos fatos.

Exigimos dos militares que voltem aos quartéis de onde não deveriam ter saído; que sejam patriotas e reconheçam seus erros; que abandonem seu projeto de poder e que se reconciliem com a sociedade brasileira para se subordinar ao projeto de Defesa Nacional.

 

GEDES

Nota de repúdio ao assédio sexual e à violência política de gênero sofrida pela deputada estadual Isa Penna (PSOL/SP)

O Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES), comprometido com as pautas de respeito à democracia e à igualdade de gênero, vem a público, por meio desta nota, repudiar o assédio sexual e a violência política de gênero sofrida pela Deputada Estadual Isa Penna (PSOL/SP), que ocorreu na Sessão da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo – Alesp, no dia 16 de dezembro de 2020.

As ações empreendidas pelo Deputado Estadual Fernando Cury (Cidadania) demonstram e reafirmam uma crença, que deve ser desconstruída recorrentemente, de que os homens possuem direitos sobre os corpos femininos, aos quais podem ter acesso sem a necessidade de consentimento. Ações como essas, que vão desde abusos físicos, como o que a Deputada vivenciou, até outras práticas mais veladas, como tentativas de silenciamento das vozes das mulheres, são recorrentes nos ambientes domésticos e públicos. Como caso específico, tratou-se de uma agressão a todas as mulheres e uma mostra dissimulada e aviltante de poder e desrespeito, uma tentativa de humilhação que buscou minorar a importância da atuação da Deputada Isa Penna no espaço público e deslegitimá-la enquanto agente político.

Por acreditar que este tipo de conduta deve ser combatido em toda a sociedade, não podendo ser tolerada, principalmente, por parte daqueles que professam a representação e defesa dos interesses da cidadania, demandamos que as devidas medidas legais sejam tomadas contra o Deputado Estadual Fernando Cury. A violência de gênero – em todos os espaços (público e doméstico) e formas (física, psicológica, patrimonial, política) – deve ser combatida por todos e cada um dos cidadãos, em especial, pelas autoridades e aqueles que foram eleitos para representar brasileiros e brasileiras.

O Deputado Fernando Cury não nos representa!

 

Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES)

19 de dezembro de 2020

Partido militar controla o Brasil, mas não controla o Bolsonaro

Pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional vê risco de quebra da hierarquia, se presidente radicalizar

As Forças Armadas tornaram-se onipresentes e um ator político no Brasil de Jair Bolsonaro, e não só por lotearem o governo. Toda confusão criada pelo presidente costuma ser comentada na mídia, em geral de forma anônima, por algum militar, do governo ou não. Quando a confusão beira a guerra com outros poderes, como o Supremo Tribunal Federal (STF), Brasília prende a respiração: “E os militares?”

Pode-se dizer que o País está “tutelado” pelas Forças Armadas, um processo que começou no governo Michel Temer, segundo um longo ensaio publicado recentemente por três pesquisadores do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes), um núcleo da Universidade Estadual Paulista (Unesp). O texto intitula-se “As Forças Armadas no governo Bolsonaro” .

“Uma vez extinto o regime militar, basicamente a tutela política constitui a forma de controle indireto do poder de Estado pelas Forças Armadas. Substitui o exercício direto do poder político pelo controle indireto daqueles que legalmente o exercem, quase numa atitude paternal diante do sujeito tutelado, considerado incapaz de ser responsável pelos seus atos”, escrevem os autores.

O curioso é que os militares tinham o objetivo declarado de tutelar o atual presidente, que é um deles, mas nesse caso não têm tido sucesso. “O partido militar controla o Brasil, mas não controla o Bolsonaro”, afirma uma das autoras do ensaio, Ana Penido, cientista social de formação, mestre em Estudos Estratégicos de Defesa e doutora em Relações Internacionais.

Para Ana, é pouco crível que, com todo seu aparato de inteligência, as Forças Armadas não soubessem das ligações do clã Bolsonaro com milicianos, um dos rolos a machucar a imagem do presidente. Se, ainda assim, aceitaram se vincular a ele desde a campanha, é por nutrirem mais interesses comuns do que divergências.

Na entrevista a seguir, a pesquisadora aborda esse e outros aspectos sobre o papel dos quartéis no Brasil de hoje e a relação deles com Bolsonaro.

 

CartaCapital: O que é o “partido militar” que vocês mencionam no artigo?

Ana Penido: Não fomos os primeiros a empregar esse conceito, ele já foi usado por outros autores da sociologia militar, inclusive conservadores. É uma expressão bem didática, porque as pessoas sabem o que é um partido. Um partido tem algum grau de unidade, ainda que com disputas internas, externamente vota junto, gostaria que suas opiniões fossem majoritárias na população, disputa isso com outros segmentos… Hoje tudo que acontece as pessoas querem saber a opinião dos militares, a imprensa quer saber, eles passaram a dar opinião sobre tudo. Esse “partido militar” passou a tutelar o País, agora faz parte do jogo político. Essa tutela pressupõe uma certa superioridade intelectual, estratégica. Tem sido assim desde o Temer.

 

CC: A ideia de tutela do Bolsonaro existe desde o início do governo, os militares a alimentaram. Funcionou? Ou o Bolsonaro é “intutelável”?

 AP: A expressão “tutela” também é muito didática, as pessoas sabem o que é conselho tutelar, escutam essa expressão nos bairros, sabem os poderes que o conselho tutelar tem no processo de criação das crianças. Acho que, de fato, em algum momento os militares acreditaram que tutelariam o Bolsonaro, segurariam os arroubos dele, por serem mais qualificados, terem mais habilidades. Eles se venderam como os moderados do governo, mas desde o início vimos que não é bem assim. As declarações da ala olavista (discípulos do guru bolsonarista Olavo de Carvalho, que vocalizou a insurgência contra a tutela) chamavam a atenção, a gente se acostumou a ouvir falar em terra plana, coisas desse tipo. Além disso, o Bolsonaro é que tem os votos, ele é que ganhou a Presidência, não foram os militares. As Forças Armadas emprestaram o prestígio ao Bolsonaro, podem até planejar o governo, mas, no fim das contas, o Bolsonaro continua tendo o poder da caneta.

 

CC: Talvez isso explique por que ele testa os limites com críticas, por exemplo, ao Supremo, e as Forças Armadas reajam sempre de forma acanhada, talvez até com benevolência.

 AP: Um militar da ativa não deveria reagir de maneira nenhuma, nem dar entrevista em off  (sem ter no nome revelado pelo órgão de comunicação), não é pra isso que militar da ativa serve, nem que o Bolsonaro falasse qualquer barbaridade. É um absurdo essas entrevistas, é ilegal pelas normas de comportamento que os próprios militares elaboraram para eles e que deveriam seguir (o decreto presidencial 4.346, de 2002, lista como “transgressão” militar a manifestação pública do pessoal da ativa sobre assuntos político-partidários). Os militares da reserva, não, aí é facultado ter opiniões políticas.

 

 CC: Os militares dizem, nessas conversas em off com jornalistas, que não fazem parte do governo, que institucionalmente as Forças Armadas não estão no governo. É verdade essa posição?

 AP: Vejo muitas matérias sobre “os militares estão insatisfeitos”, “os militares gostaram”, “os militares não gostaram”, mas o que a gente pode tomar como opinião institucional são as notas do Ministério da Defesa, o resto são fontes não identificadas que não representam a totalidades da categoria. Sobre a sua pergunta, mais interessante é acompanhar o Diário Oficial da União, ali a gente vê o que de fato os militares estão fazendo.

 

CC: E o que o Diário Oficial mostra?

AP: Já saíram quatro ou cinco portarias, normativos do Ministério da Defesa ou para conter a ida massiva de militares para o governo ou para regulamentá-la segundo os princípios de hierarquia e disciplina que regem o mundo militar (há um decreto específico sobre a ida de militares para o governo, o 10.171, de 11 de dezembro de 2019, assinado pelo ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e pelo presidente). Quem pode indicar quem vai para o governo? As Forças Armadas querem manter isso pra elas. No início do governo não tinha portaria sobre isso. Saiu mais uma (a portaria 34 do GSI, de 29 de abril de 2020, assinada pelo ministro-general Augusto Heleno) dizendo que só as Forças Armadas são responsáveis por vigiar como outro militar está trabalhando, ainda que subordinado a um civil de outro ministério. No mundo civil não há mesma preocupação com siglas, símbolos, o nome exato de cada coisa, e no último mês saiu da Casa Civil um glossário de nomes de cada uma das repartições (da pasta) e suas siglas correspondentes (a portaria 182, de 14 de abril de 2020, assinada pelo ministro-general Walter Souza Braga Netto). Isso é a cultura militarizada. Então, é difícil falar que as Forças Armadas não estão no governo, porque o olhar militar se coloca em todos os espaços.

 

CC: E por que você diria então que existe o esforço retórico de desvinculação?

 AP: Não é retórico, eles tentam preservar a instituição e a própria família militar. O (vice-presidente e general aposentado Hamilton) Mourão assumiu no ano passado que ia ser inevitável que as pessoas associassem as Forças Armadas ao governo, ao presidente, mas, por outro lado, os militares fazem esse esforço contínuo de tentar separar quem manda onde, quem é subordinado a quem.

 

CC: Que interesses aproximam as Forças Armadas e o Bolsonaro?

 AP: O mais nítido, sem dúvida, é a questão do nacionalismo, do patriotismo. É um nacionalismo muito forte do ponto de vista simbólico, de usar a bandeira do Brasil, de cantar o hino nacional, o próprio lema do Bolsonaro vem das Forças Armadas (Brasil acima de tudo, Deus acima de todos). Mas essa noção de pátria é mais territorial, não é de projeto nacional. É um nacionalismo sem um projeto nacional de país que as próprias Forças Armadas já tiveram na década de 1950. Na esquerda, há uma ideia muito forte, até por causa do (penúltimo general-ditador, no poder de 1974 a 1979, Ernesto) Geisel, de que os militares são desenvolvimentistas economicamente, mas eles passaram a sustentar políticas liberais há muito tempo. O patrimônio nacional tem sido vendido desde a época do (ex-presidente tucano no poder de 1995 a 2002) FHC, e as Forças Armadas não reagem. Não se opuseram à venda da Embraer para a Boeing (iniciada no governo Temer e concluída no atual). A ideia de defesa da família e das tradições também aproxima as Forças Armadas e o Bolsonaro.

 

CC: A reabilitação do golpe de 1964 e da ditadura que se seguiu até 1985 também, não?

 AP: Sim, essa ideia de revisão histórica… Tenho a impressão de que existe um sentimento muito sincero nos militares, não quer dizer que eu concorde, de que eles saíram injustiçados da ditadura. Injustiçados no sentido de “a gente fez o que combinou com um monte de gente, mas no final das contas o que deu errado caiu foi só na nossa conta”. Mas essa questão do que foi o regime, seus prós e contras, é um tema bem controverso para eles (militares).

 

CC: E o que afasta Bolsonaro e os quartéis, se é que tem algo?

 AP: De forma geral, os militares são discretos, educados no trato, principalmente no trato com os civis, com a imprensa, com o público, são sempre preocupados em passar uma boa imagem da corporação. E  gostam da ordem. O Bolsonaro é o menos discreto possível, faz declarações polêmicas, sempre atua numa lógica de alimentar uma base muito militante que ele tem, que até caminha para o fascismo, se ainda não chegou lá… Ele infla uma coisa com a qual os militares, na história inteira, sempre disseram que não concordavam, essa ideia de que existem polos em disputa. A ideia de unidade nacional é muito forte para eles, e o Bolsonaro investe contra ela todo o tempo. Há também diferença de forma. O militar planeja, ele não improvisa, e o Bolsonaro improvisa muito.

 

CC: Ele estimula de alguma forma a quebra da hierarquia, ao se dirigir às vezes diretamente às baixas patentes militares. Vê risco de quebra da hierarquia, se ele radicalizar? Quem controla as bases, o alto comando ou o presidente?

 AP: Essa é uma pergunta muito difícil, ninguém tem 100% de certeza da resposta. Isso explica um pouco o comportamento das Forças Armadas. Eu levantei essa hipótese pela primeira vez na época da soltura do Lula. Eu pensava: e se, de repente, um major qualquer lá do Paraná se levantar e disser que “não, daqui o Lula não sai, a Justiça pode falar o que quiser, mas daqui o Lula não sai?”. Hoje um jovem que procura essa carreira não necessariamente tem a mesma mentalidade dos generais quatro estrelas. Virou uma carreira pública muito interessante, igual o Judiciário, existe todo um segmento concurseiro que olhou com carinho para essa carreira. Vai mudando um pouco inclusive a forma de exercer a hierarquia. Mas o tempo todo o alto comando vem trabalhado no sentido de reforçar a sua hierarquia.

 

CC: A perda do monopólio da força para PMs e de quebra da hierarquia nelas também é uma preocupação das Forças Armadas? O Bolsonaro é popular entre PMs.

AP: Em todos os planejamentos das Forças Armadas, elas contam com a Polícia Militar como reserva, como capacidade de mobilização, de fato tem policial em cada cidade desse País. Repare que o Ministério da Defesa chamou de greve, o que pelas normativas é um motim, aquilo que aconteceu com PMs no Ceará. O que acontece agora, acho, é que mudou a autoridade moral que as Forças Armadas tiveram em outros momentos da história na área de segurança. Muitas pesquisas da sociologia e da antropologia mostram falas de policiais dizendo assim: “Quem vai pra guerra somos nós, eles (os militares das Forças Armadas) ficam só no escritório”.

 

 

Reproduzido de: https://www.cartacapital.com.br/politica/partido-militar-controla-o-brasil-mas-nao-controla-o-bolsonaro

Crédito imagem: “BOLSONARO E MILITARES DURANTE A CERIMÔNIA COMEMORATIVA DO DIA DO EXÉRCITO” Foto de Marcos Corrêa/PR

As Forças Armadas no governo Bolsonaro

Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

Observatório da Defesa e Soberania – 14 de abril de 2020

Por Ana Penido*, Jorge M. Rodrigues** e Suzeley Kalil Mathias***

 

“Quem chega ao principado com a ajuda dos grandes mantém-se com mais dificuldade do que o que se torna príncipe com a ajuda do povo, porque o primeiro se vê cercado de muitos que parecem ser seus iguais, não podendo, por isso, comandá-los nem manejá-los a seu modo.” Maquiavel

 

Antes de mais nada é preciso dizer que este é um texto escrito no calor dos acontecimentos. Isso significa que, diferente de formulações que podem contar com o distanciamento histórico, ou de escritos que focam no debate teórico, este texto é escrito conforme o desenrolar dos fatos. Se essa característica, por um lado, dificulta a leitura de fundo sobre alguns fenômenos que ainda se desvelam, por outro, permite o exercício mais detalhado do acompanhamento de movimentações das forças militares. Se há dias que valem por anos, as ações políticas de militares que ocorrem desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff ajudam a compreender melhor aspirações e ressentimentos da corporação, que talvez tenham ficado mais de uma década sob névoa, assim como a fragilidade do controle político sobre as Forças Armadas (FFAA).

 

Comportamento militar nos governos petistas

Após um período de relativa estabilidade durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011), as relações civis-militares experimentaram um período de deterioração. Cabe salientar que a estabilidade ocorreu em virtude das ações das FFAA e dos civis na condução política, que mantinham certa equidistância. Em outras palavras, especialmente durante o governo Lula, as FFAA mantiveram-se mais restritas a participar politicamente apenas nas questões que, no entendimento delas, traziam dilemas para a segurança nacional. Apesar das Forças Armadas terem uma doutrina bastante ampla sobre as questões que consideram de segurança nacional, essa amplitude é escalonada ao adotarem comportamentos ativos, reativos ou neutros a depender da situação. Os debates em torno da segurança pública, demarcação de terras indígenas e nas políticas da área de Defesa são alguns exemplos de momentos que contaram com a participação das FFAA. Por outro lado, o petista não adotou medidas que confrontassem a corporação. Em momentos de tensão, a autonomia prevaleceu, como na demissão de José Viegas, primeiro ministro da Defesa de Lula, que não teve apoio do presidente no exercício de sua autoridade frente ao então comandante do Exército, que permaneceu no cargo. O episódio deixa entrever que, diante das inúmeras necessidades de mudanças que exigiam o capital político do presidente, a área de defesa não seria a prioridade, como também não testaria a subordinação das FFAA ao poder civil, talvez por considerar que a própria posse de um operário eleito pelo voto popular já fosse prova suficiente da consolidação da Democracia.

Durante esse período, embora com pouca participação da sociedade civil ou mesmo da comunidade intelectual da área, houve pontos positivos, como a elaboração da Política Nacional de Defesa, da Estratégia Nacional de Defesa e do Livro Branco de Defesa nacional, três documentos capazes de definir e elucidar um pouco melhor o tema no Brasil e as pretensões do país para os seus vizinhos. Nesses documentos, um saldo doutrinário importante foi o conceito de dissuasão, ao esclarecer a tarefa externa a que os militares devem se dedicar e o consequente fortalecimento do poder civil. Como ponto negativo, destaca-se, em conflito com a doutrina, o crescimento expressivo do emprego das Forças Armadas em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), retomando a ideia de inimigo interno e estabelecendo um conceito de dissuasão ‘para dentro’, o que implica na existência, no caso anterior, de dissuasão ‘para fora’.

A deterioração das relações com as FFAA se aprofundou paulatinamente no governo de Dilma Rousseff (2011-2016). Segundo o General Etchegoyen, durante palestra em 2019 no Instituto FHC, os militares entraram em rota de choque com Dilma por questões objetivas e subjetivas. Como questões objetivas, ele cita a Comissão Nacional da Verdade, a troca do ministro Nelson Jobim por Jacques Wagner e o decreto 8515/15, que subordinava a promoção dos generais ao Ministério da Defesa, assinado por Wagner. O rebaixamento do Gabinete de Segurança Institucional (2015) também pode ser destacado enquanto fonte de tensão, uma vez que se trata de um órgão de notório prestígio historicamente ocupado pelas FFAA. Quanto às questões subjetivas, o general foi pouco claro ao dizer que a presidenta afrontava valores da classe média da qual os militares fazem parte. Pode-se inferir que ele se refere a uma visão de mundo expressa na Doutrina de Segurança Nacional, em que políticos de esquerda são considerados populistas, carentes de iniciativa e entusiastas de medidas que provocam polarização ideológica, consideradas por eles disfuncionais ao país. Soma-se a isso o forte machismo, marca indelével dos quartéis brasileiros. Assim, ter uma comandante-em-chefe mulher e ex-guerrilheira, provavelmente foi entendido como uma afronta aos valores castrenses.

Durante o rito processual do golpe, as FFAA mantiveram majoritariamente seu papel institucional. Afirma-se ‘majoritariamente’ e não totalmente, pois a anuência é uma forma de ação perceptível como, por exemplo, a não reação do general Villas Boas aos diversos pronunciamentos críticos à comandante em chefe da nação feitos por militares ainda na ativa, como o atual vice-presidente Hamilton Mourão. Entretanto, o desenrolar das ações dos militares a posteriori, em particular sua postura de fiadores do governo de Michel Temer, deixam dúvida se havia apenas um desejo individual com movimentações golpistas no seio da tropa, ou ainda se ocorreu algum envolvimento extra oficial mais coletivo. Comparado ao processo de impeachment de Fernando Collor de Mello, destituído em 1992, a inação dos comandos militares frente ao processo de Dilma parece mais explicitamente favorável à sua saída do governo.

O governo Temer e o protagonismo sorrateiro

Desde o início do governo Temer (2016-2019), as FFAA colocaram-se como fiadoras da sua legitimidade especialmente em duas dimensões. A primeira, sob demanda delas, Temer recriou o Gabinete de Segurança Institucional e entregou o órgão ao influente Sérgio Etchegoyen, que passou a coordenar o Sistema de Inteligência Nacional, reestruturado por decreto (8793/2016) do presidente. A segunda questão relevante foi o emprego massivo da GLO, seja diante dos protestos sociais que ocorreram fortemente durante todo o período do governo, com pautas e ações variadas, seja utilizando a violência urbana como justificativa, como na intervenção federal no Rio de Janeiro e na crise desencadeada pela greve dos caminhoneiros. Cabe pontuar que Temer aprovou a Lei nº13.491/17, que estabelece que os crimes de morte cometidos por militares contra civis nas operações GLO sejam julgados pelos tribunais militares e não civis.

Não é de se espantar no governo Temer uma postura tutelar das FFAA diante do Estado brasileiro. Uma vez extinto o regime militar, basicamente a tutela política constitui a forma de controle indireto do poder de Estado pelas FFAA. Substitui o exercício direto do poder político pelo controle indireto daqueles que legalmente o exercem, quase numa atitude paternal diante do sujeito tutelado, considerado incapaz de ser responsável pelos seus atos. Há duas interpretações clássicas que derivam desse comportamento. A primeira pressupõe que as FFAA intervenham de maneira cirúrgica e esporádica, porém contundente, diante de situações de crise ampla. Após sanear a situação, as FFAA devolveriam o poder aos civis. A segunda interpretação parte da ideia de que quando as FFAA têm força suficiente para intervir, elas não devolvem o poder que conquistaram, o que culmina na instalação de um governo ditatorial ou autoritário militarizado.

O termo tutela também apresenta outra conotação: os militares se consideram melhores preparados para pensar estrategicamente que os demais grupos, e por isso capazes de tutelar as decisões. Nesse sentido, as Forças Armadas não são um poder moderador, muito menos neutro, para casos de crise. Os militares têm consciência da postura civil de tentar utilizá-los a serviço da facção no poder ou de suas oposições. Ao mesmo tempo, o estrato castrense tem seus interesses corporativos, como formular uma doutrina compatível com a importância que atribuem a si mesmos. Eventualmente os dois interesses convergem, como no fim do governo Dilma.

O governo Temer foi marcado por uma postura intermediária entre as duas posições. O Exército brasileiro, comandado pelo general Villas Boas, não deu um golpe, mas manteve as instituições sob pressão contínua, inclusive inovando ao se utilizar de tuíteres – em especial na véspera do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do Habeas Corpus de Lula. O próprio Alto Comando reconhece esse comportamento tutelar e tenta desconstruí-lo continuamente em declarações públicas. Nesse sentido, embora as FFAA sempre afirmassem que suas ações estavam pautadas pela estabilidade, legalidade e legitimidade, foram elas próprias que definiram os limites desses três conceitos. E o fizeram, isto é, definiram tais limites, ao longo de todo o processo de transição (1979-1990) e dos governos democráticos (1990-atual). Pode-se inclusive dizer que definiram o próprio entendimento de democracia, pois em nenhum momento se intimidaram quando autoridades reagiram ao esgarçamento das regras, como no próprio caso do tuíter mencionado anteriormente.

Devido a esse protagonismo imediato, há de se acreditar que houve sim um grupo de militares que conspirou sorrateiramente pelo golpe, ainda que as três Forças institucionalmente tenham passado quase ao largo disso. Entretanto, isso não significa que o golpe tenha sido fruto de uma conspiração militar, mas um trabalho de, no mínimo, três grupos com objetivos diferentes que se articularam paralelamente, mas em um determinado momento se unificam e derrubam Dilma Rousseff. A primeira e a mais óbvia é a conspiração dos políticos, capitaneada por Aécio Neves, que desde sua derrota eleitoral adotou um comportamento golpista, e a quem se somaram Temer, Romero Jucá, Eduardo Cunha e outros, cujo objetivo era trocar o grupo político que dominava o poder Executivo. A segunda conspiração, que passa a ficar mais clara com o governo Bolsonaro e com a venda massiva de empresas brasileiras aos Estados Unidos, em evidente disputa geopolítica com a China, foi protagonizada pela Lava Jato e setores do Poder Judiciário, sob os auspícios dos EUA. A terceira conspiração, a mais antiga entre elas, foi a de setores militares, com ressentimentos que datam da criação da Nova República, mas que foram ampliados e se tornaram força golpista com a Comissão da Verdade. Esse desejo de protagonismo das FFAA não foi explícito, por isso chamamos esse comportamento de protagonismo sorrateiro26.

O principal sentimento militar transformado em discurso e utilizado para encobrir o desejo de protagonismo foi a suposta formação de bons quadros técnicos pelas FFAA, continuamente mal aproveitado pelos governos, em virtude da permanência de uma mágoa na liderança civil sobre o que ocorreu durante a ditadura militar. Esse é um sentimento real que muitas vezes coloca os militares até mesmo como vítimas de uma revanche civil.

As últimas eleições que elegeram Jair Bolsonaro à presidência da República não foram marcadas pela técnica ou pelo debate entre programas, mas profundamente por diferenças ideológicas, com forte recorte religioso e uso massivo de notícias falsas, e que contaram com um protagonismo ativo das FFAA. O episódio que talvez tenha maior relevo por ser público e institucional foi a sabatina feita por Villas Bôas aos candidatos à presidência. Não há notícias de outros grupos de servidores públicos do Estado que tenham o mesmo comportamento, típico de corporações e organizações privadas.

O governo Bolsonaro e o partido militar

Se é verdade que as FFAA se utilizam da tutela para se posicionar politicamente, ao mesmo tempo essa postura exige certo distanciamento das decisões rotineiras, de maneira a influenciar o jogo, mas apresentando-se moral e intelectualmente superior diante dos demais jogadores. Portanto, são evitadas ações cotidianas que geram desgaste político existentes em todos os governos, e o jogador em função tutelar aparece apenas em momentos decisivos. Pelo seu desejo de protagonismo, pelo grande número de militares no governo, assim como pela convicção da “necessidade conjuntural” desse tipo de intervenção para estabilizar e reorganizar uma hegemonia da qual fazem parte, as FFAA continuam a exercer as ações sorrateiras, mas de maneira cada vez mais protagonista, formando um dos grupos que desde o início sustenta o presidente Bolsonaro. O maior exemplo dessa nova postura é o general Augusto Heleno. Militares em geral são discretos, mas quando Heleno sobe em um palanque de uma manifestação, ainda que lá embaixo estejam misturados vários recrutas com as mesmas opiniões dos manifestantes, e mesmo que ele não esteja mais na ativa, a instituição Exército fica exposta.

Desde o período da transição do governo Temer para o governo Bolsonaro, as FFAA ocuparam 8 ministérios e cargos chave em diversas secretarias, com um número significativo de militares ainda na ativa. Os generais levaram consigo um enorme contingente de coronéis e majores, nomeando mais de 100 pessoas e adotando o princípio de ocupação em massa do Palácio do Planalto. Além do discurso da técnica, também se mostravam como uma força moralizante e capaz de combater a corrupção no Executivo. Nas palavras de Etchegoyen, Bolsonaro decidiu usar o know how militar. Em outros termos, viraram o ‘Posto Ipiranga’ em várias frentes. Porém, diversos generais rapidamente foram percebendo que as coisas não eram bem assim, como o caso de Jesus Correa, afastado do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Tal afastamento não ocorre em virtude de divergências sobre a política de regularização fundiária ou do modelo produtivo do agronegócio, mas pela constatação prática de que a corrupção tem relação com o sistema político. ‘Combatê-la’ não é uma mera questão de vontade – muito menos tendo à frente Jair Bolsonaro.

Um ponto importante para pensar os militares no governo é a hierarquia. Dentro das FFAA, por exemplo, um general quatro estrelas manda nos demais, bem como nas demais forças de segurança, como policiais e bombeiros. Da mesma forma, dentro de cada patente ou posto, o mais antigo (aquele que chegou no posto a mais tempo) e mais graduado (aquele que, sendo da mesma turma, atingiu as melhores notas), é considerado superior diante dos semelhantes. Sob esta lógica, seria ‘antinatural’ que militares de patentes mais altas ficassem sob a coordenação de patentes mais baixas, como algumas vezes acaba ocorrendo ao assumirem cargos políticos ou burocráticos fora das FFAA. Essa relação é conduzida com contrariedades, da mesma forma em que há um desconforto com o fato da base bolsonarista tradicional estar predominantemente nas polícias, sendo que o primeiro escalão governamental é composto pelas FFAA.

Da vidraça às pedras

As FFAA não foram para o governo enquanto instituição. Porém, os militares no governo se mostraram um grupo bastante coeso e representativo dos interesses das Forças. O efeito direto e imediato disso foi a exposição da instituição, que se tornou alvo de diversos acontecimentos, como a apreensão de cocaína no avião presidencial e os 80 tiros disparados pelo Exército em um carro de família durante uma ronda na cidade do Rio de Janeiro. Tornaram-se, assim, vidraça, e, dessa maneira, se expuseram às pedras. Em contrapartida, a Aeronáutica e a Marinha, ainda que também estejam no governo, mantiveram um perfil mais discreto do que o Exército. Um dos efeitos dessa atuação foi o esvaziamento político do Ministério da Defesa, com cada Força levando adiante a sua própria política, mesmo considerando que o Ministério nunca tenha sido civilizanido36.

Vale ressaltar que os desdobramentos do último período provavelmente não eram o que as FFAA almejavam. Pelo seu comportamento no início do governo Bolsonaro, é possível pensar que elas desejavam exercer uma tutela direta sobre o presidente, tomando decisões concretas por meio do general Heleno, chefe do GSI, e do general Hamilton Mourão, vice-presidente da República. É difícil afirmar em que termos ocorreu esse acordo entre o partido militar e Bolsonaro, mas alguns questionamentos podem ser levantados: eles teriam o poder de veto em algum tema? Levariam adiante o que desejassem implementar nas suas pastas e quem deteria o poder de veto seria Bolsonaro? Há uma combinação entre os dois grupos, com ações coordenadas de “morde e assopra” a depender do tema? Apesar das dúvidas, o que é possível apontar é que esse acordo já sofreu reformulações ao longo do primeiro ano de governo.

Também é possível aventar que as FFAA tivessem o desejo de se afastarem das pautas negativas. Porém, considerando os grupos de apoio ao presidente eleito, e a personalidade de Bolsonaro, é algo praticamente impossível. Os militares tentaram se apresentar como os moderados no governo, em contraponto a uma “facção” radical com o núcleo Olavista, como Damares, Weinjtraub e Ernesto Araújo, responsáveis por executar um conjunto de manobras diversionistas enquanto o projeto de destruição nacional é levado adiante. De fato, no início do governo, aparentavam a voz da razão em alguns temas. Continuam buscando esse papel. Mas não foi possível sustentá-lo por muito tempo, e manifestações irritadas do general Heleno soaram com muito mais radicalidade para a população do que os conselhos sexuais da ministra Damares, com forte apoio popular. Nesse sentido, o “Foda-se” de Heleno para o Congresso Nacional, uma manifestação de golpismo aberto, ocorre apenas num segundo momento, depois da linha do poder tutelar já ter sido cruzada há muito tempo, e a atuação do partido militar ter se tornado mais nítida.

Entretanto, o desenrolar do governo deixou claro que as FFAA não conquistaram a hegemonia do governo durante o primeiro ano, embora o tenham ocupado massivamente. O que sustentou o governo são suas medidas econômicas e argumentos extremistas que mantêm viva uma base reacionária, incluindo militares, em especial das baixas patentes, mas certamente não expressa as posições da instituição, algo facilmente verificável na postura das Forças Armadas sobre a Venezuela. Por outro lado, os militares emprestam a credibilidade da instituição ao governo, pois existe a ideia, pelo menos para parte da elite política (até mesmo à esquerda) de que eles têm a possibilidade de colocar limites às “loucuras” do Bolsonaro, tornando-se uma alternativa, caso o presidente seja afastado.

Pontos de comunhão

Para além das contradições entre FFAA e governo Bolsonaro, há diversos pontos de comunhão entre ambos. Um deles é o revisionismo histórico. As FFAA sempre priorizaram a batalha das ideias, e viviam um sentimento de injustiça por terem ficado com a responsabilidade pelo regime autoritário (1964-1984). Em outros termos, consideram errada a forma como passaram para a História após terem ‘salvado a nação do comunismo e levado ordem e progresso ao país”. Essa luta pelas narrativas se expressa em cada vírgula e representa as FFAA em geral. Chega-se ao ponto de inventar tradições históricas, como a Batalha de Guararapes, apenas para se justificar como a instituição mais antiga do país.

Outra confluência entre as FFAA e Bolsonaro é a forte crítica ao identitarismo e outras pautas contemporâneas. Villas Bôas já expressou isso em algumas falas, mas como um todo, entendem que brancos e negros, homens e mulheres, homossexuais e heterossexuais, são divisões que atacam a identidade de povo brasileiro, formulação clássica da Doutrina de Segurança Nacional. Nesse sentido, há uma convergência com formulações dos neopentecostais no conservadorismo de costumes, base do governo Bolsonaro. Isso se expressa num sentimento difuso, de uma nostalgia de tempos passados e na ideia de “guardiões das tradições”. Para alguns, uma das maiores ameaças atuais às Forças Armadas é um hipotético crescimento do homossexualismo nas suas fileiras. Nessa mesma lógica, questões complexas como drogas e violência entre adolescentes recebem respostas maquiadas nas escolas cívico-militares, por exemplo, por meio da qual as FFAA pretendem regular a socialização civil.

Outro elemento comum é o discurso de defesa da pátria. A corporação acredita que tem como ‘destino manifesto’ salvar a nação. Esse ethos salvacionista é muito forte culturalmente, assim como a ideia de que eles representam o que há de mais puro na nação brasileira. Com isso, parte dos militares que vão para o governo não são necessariamente bolsonaristas, mas acreditam fazer uma “revolução” moralizante e modernizadora do país, corrigindo o rumo e ajustando coisas que julgam pertinentes pelos seus próprios parâmetros. Para outros, a intervenção militar de 1964 proporcionou a preservação e reorganização da democracia, na lógica do “golpe preventivo” ao comunismo.

Neste sentido, as FFAA também se encontram com outra base bolsonarista: o partido da Lava Jato e com a classe média alta. A aliança entre as FFAA e essa parcela do Judiciário parece ser mais firme do que com o próprio presidente. Se não existem guerras reais, inventamos as nossas para combater o que são consideras disfuncionalidades do sistema; nesse caso, como em outros momentos da história, o ‘combate à corrupção’ atua como entrave para o avanço de tentativas progressistas no processo político nacional.

Ainda sobre o patriotismo, é preciso pontuar que, no Brasil, essa ideia sempre esteve associada ao um tipo de nacionalismo, próprio do campo simbólico, e é esse que se apresenta no Bolsonaro e nas FFAA. Sob esse entendimento, a cessão do Centro Espacial de Alcântara não é uma medida antinacional. Assim, a noção de território assume contornos cartográficos, e não de espaço onde habita um povo.

Essa compreensão particular sobre patriotismo também é presente no pensamento sobre a região Amazônica. Há pelo menos 30 anos, a Amazônia passou a ser considerada o principal território para se defender no Brasil. Todavia, mais de 70% do efetivo militar segue no Comando Sul e Sudeste. Isso tem relação com uma cultura institucional muito forte, assim como o baixo interesse pela defesa [do país] e com a pouca noção de “missão”, quando se pensa o próprio bem estar (servir no Sul, Sudeste, ser adido militar, missão de paz ou fazer cursos no exterior é melhor do ir para a Amazônia). Esse fato leva a outro questionamento: teria a corporação capturado as FFAA? O deslocamento para a Amazônia não deveria ser mais intenso? Claro que não se trata de uma decisão pautada apenas na estratégia de defesa, mas deve-se levar em conta custos políticos e econômicos, e mesmo conflitos com as identidades das Armas (das FFAA), como a Cavalaria, bastante atrelada ao Sul. Em última instância, a discussão recai sobre a pergunta: para que servem as FFAA brasileiras?

A pauta econômica é outro ponto de confluência entre FFAA e Bolsonaro. Foi-se o tempo dos nacionais-desenvolvimentistas, herdeiros do projeto tenentista. Atualmente, os generais têm a visão econômica da Fundação Getúlio Vargas, que atua como verdadeiro intelectual orgânico [dos entreguistas] defendendo a privatização inclusive de setores estratégicos. Neste sentido, não surpreende que o ministro de Infraestrutura e engenheiro do Exército, Tarcísio Gomes de Freitas, que leva adiante a agenda de privatização, é considerado um dos melhores ministros pelo empresariado, como comprova o prêmio da LIDE. Eventualmente, há alguma dissidência, como as declarações do general Juarez Cunha, contrário à privatização dos Correios. Mas a venda da Embraer foi a medida mais significativa que corrobora essa tese.

As FFAA também sofreram cortes orçamentários, já que algumas unidades não tinham recursos nem para o rancho (refeição dos soldados) no final de 2019. Mas esse cenário foi modificado em 2020. Mesmo com a crise econômica, a pasta da Defesa teve aumento orçamentário, foram inaugurados um novo campus da Escola Superior de Guerra (ESG), em Brasília, e a nova base na Antártica. Na mesma toada, a Engeprom teve um considerável crescimento e foi fechado um importante acordo de fomento industrial com o BNDES. Importa lembrar que a indústria de defesa tem o Estado como maior comprador. No caso de Brumadinho, por exemplo, helicópteros foram reparados 24 horas pelas empresas para continuar voando nas buscas pelos desaparecidos. Uma aparente contradição nesse tema é a postura de Eduardo Bolsonaro, presidente da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, que critica o que chama de “monopólio da Taurus” e deseja maior abertura do mercado brasileiro para as empresas estadunidenses de armamentos.

Um ponto que deveria ter gerado contradições entre os dois atores é a política externa, o que não ocorreu. O Brasil vinha se construindo na lógica de uma inserção autônoma no mundo. Do ponto de vista objetivo, as relações atuais entre EUA e Brasil são absolutamente diferentes de 1964. Apesar da China ter se transformado no maior exportador de capitais para a América Latina, o Brasil seguiu dependente em termos de equipamentos e doutrina dos EUA na área militar, mesmo com a diversificação de parceiros. Há também grupos militares que acreditam que a cooperação com os EUA e a OTAN renderá ao país compras vantajosas de equipamentos, mesmo se estes forem obsoletos. Nesse sentido, é importante destacar o novo status do Brasil diante da OTAN e o recente acordo militar assinado entre Brasil e EUA.

Para além das questões objetivas, há vínculos simbólicos, como a reedição de alguns raciocínios da Guerra Fria, quando se aponta a necessidade de se aliar aos EUA diante da guerra comercial com a China. Ou mesmo pensamentos como “nossa bandeira jamais será vermelha”. A partir disso, Bolsonaro tem redefinido o papel do Brasil na guerra de quarta geração: controle interno da ordem por meio da segurança integral (todo o país) e preventiva (inteligência e espionagem). Já que não existe um projeto para desenvolver o Brasil enquanto uma “potência”, as FFAA serviriam para acomodar as forças sociais aos interesses internacionais (repressão interna). De fato, existe um grupo que acredita no marxismo cultural62, que estamos em guerra permanente e o inimigo interno deve ser combatido. Essa ideia do emprego interno das FFAA foi consolidada pelas operações GLO, citadas no início do texto. Cabe pontuar que esse é um inimigo interno de ocasião, podendo ser caracterizado como petista, comunista, crime organizado, corruptos ou terrorista, a depender dos interesses. Algumas medidas legislativas estão sendo tomadas nesse sentido, politicamente alinhado ao Bolsonaro e ao general Heleno, como o PL 1595, do Major Vitor Hugo, que pretende dar poderes excepcionais ao Estado brasileiro para reprimir manifestações populares.

Relações estremecidas

A demissão do general Santos Cruz da Secretaria de Governo é muito significativa. Existem muitas explicações para a demissão. A maioria aponta para uma resistência do Santos Cruz a cumprir ordens que contrariavam princípios éticos e morais que ele alimenta. Outros argumentam que o general não se subordinou ao capitão, ou que havia uma disputa por status político dentro do partido militar, derivada dos diferentes reconhecimentos recebidos pela ONU em virtude da participação na Minustah. Quem saiu em defesa do general demitido não foi nenhum dos militares do governo, mas o fiador do governo Temer, o general Etchegoyen. Outro episódio digno de menção foram as ofensas de Olavo de Carvalho a Villas Boas. Por fim, também existiram farpas que partiram dos filhos do presidente em diversos episódios, como a desconfiança em torno da segurança do GSI estimulada por Carlos Bolsonaro, mas ‘amortecida’ pelo próprio general Heleno. Nunca ocorreu na Nova República uma escalada de ofensas às FFAA e aos militares nessa proporção.

O fato é que a demissão de Santos Cruz fragilizou a ideia de bloco e do projeto militar, e ganhou peso os interesses individuais. Isso não significa que eles tenham começado a concorrer entre si, pois em primeiro lugar, vale a corporação militar. Mas fica clara a busca por status, pois mesmo figuras populares na caserna como o general Heleno e Mourão, eram pouco conhecidas da sociedade civil. O mesmo vale para generais com destaque no exterior, como Santos Cruz e Floriano. Para um militar profissional, a maior vaidade da carreira é conseguir a quarta estrela. Entretanto, generais com 4 estrelas, ainda que desempenhem impecavelmente sua tarefa, são esquecidos. A ocupação de cargos políticos e a projeção pública alimentam a vaidade e passaram a ser almejadas. Contrariando qualquer discussão coerente com a profissionalização, seria possível encontrar generais de 2 ou 3 estrelas fazendo cálculos sobre o que vale mais a pena: as estrelas que lhes faltam ou um Ministério. Outro exemplo possível de buscar se projetar publicamente é a utilização massiva das redes sociais, que permite que generais mantenham contato direto com a população. Com isso, pronunciamentos que deveriam ser orientados profissionalmente passam a ser feitos em busca de popularidade. Se isso tem relação com algum sentimento de falta de reconhecimento proveniente das missões no Haiti, é algo que merece aprofundamento, mas não é objeto desse texto.

No entanto, aparentemente ocorreu um afastamento da Instituição Exército em relação ao governo no final do ano de 2019, seja pelos baixos índices de avaliação ou pela dificuldade de conseguir resultados no campo econômico. Como ficaram com o ônus do golpe de 64 nos anais da história, o partido militar tem se precavido e tenta um duplo movimento, aparentando afastamento institucional do governo, coordenado pelo general Pujol, e a manutenção de uma postura tutelar, por exemplo, diante do Supremo Tribunal Federal.

São muitos os sinais para essa hipótese:
1. A ordem do dia do soldado citando o general Leônidas é um recado claro do alto comando: “Bolsonaro, te expulsamos uma vez, podemos expulsar de novo”;
2. Etchegoyen está com diversas movimentações para ‘conter’ o bolsonarismo nas fileiras, e vem fazendo palestras em todo país sobre liderança militar (hierarquia e disciplina) diretamente para baixa oficialidade, enquanto se articula com o setor industrial nacional, que vem tendo perdas com medidas do governo;
3. Desconfortos sobre a distribuição de medalhas militares a congressistas, numa nítida compra de votos para o projeto de reestruturação da carreira;
4. Os militares queriam Etchegoyen para a embaixada de Washington, mas o presidente desejava alguém de sua famiglia;
5. A negativa da quarta estrela para Rego Barros.
6. A indicação do general Amaro para o Comando Sudeste, mesmo ele tendo trabalhado tantos anos com Dilma;
7. Novas baixas entre militares que ocupavam cargos estratégicos no governo.

O projeto de reestruturação da carreira militar, PL1645, foi um momento bastante tenso. Há quem acredite que essa seria uma oportunidade de diálogo à esquerda com a base das FFAA. De fato, o projeto contém benesses aos altos escalões que não se estendem ao conjunto das FFAA, o que poderia gerar contradições hierárquicas. As Forças Armadas contam com um conjunto de direitos que as demais polícias não possuem, e o projeto reforça ganhos na carreira para as patentes mais altas, o que tem gerado insatisfação entre os praças, que deixaram claro que vão seguir o exemplo de insubordinação de Villas Bôas. Existem segmentos dessas baixas patentes que entendem a não manifestação de Bolsonaro a respeito como uma traição, forçando o presidente a adotar medidas paliativas.

Bolsonaro, entretanto, respeitou a hierarquia e aprovou o projeto, favorecendo os altos escalões e prejudicando sua base eleitoral mais antiga. Para mitigar a situação, outras fontes alternativas de renda vêm sendo construídas para esses setores, como o aumento em diárias e ocupações extras, como nas escolas cívico-militares e no INSS. Embora absurdas, seja do ponto de vista das regras da administração pública ou da defesa, essas medidas são coerentes com o objetivo de atender sua base.

A conivência das FFAA no governo com essas e outras medidas que prejudicam a defesa nacional deixa claro algo já argumentado anteriormente. Não adianta os acenos à direita ou à esquerda. Quando a instituição se compromete nesse nível, ela passa a fazer parte do problema, e não da solução. Enfatize-se: não existe um divórcio das baixas patentes militares com o governo, e as dissidências não são contrárias à política econômica adotada nem favoráveis às forças democráticas e progressistas.

Esse conjunto de medidas não ocorreu por divergências ideológicas do Alto Comando com Bolsonaro, mas porque querem mostrar independência e deixar claro aos que almejam entrar na institucionalidade que não falam em nome das FFAA. A finalidade disso é afirmar a autonomia do Estado-Maior no interior da aliança e reforçar quem comanda o partido militar.

A ida de militares para diversos postos no governo foi tão grande que o Ministério da Defesa tomou medidas institucionais, como rotatividade, passagem à disposição, impactos na carreira, etc. Isso reforça o desejo de se autopreservarem. Por exemplo, à exceção dos ministros, eles se reservam o direito de indicar qual militar ocupará determinado cargo quando for requisitado. Por outro lado, o mesmo decreto 10171/2019 escancara o desejo dos militares de participarem da política de Brasília, se distanciando de suas funções e dos trabalhos considerados penosos, como as fronteiras. Essas atitudes apenas reforçam o que analistas de defesa vinham afirmando desde o período eleitoral: quando a política entra nos quartéis por uma porta, a profissionalização sai pela janela. A portaria também reforça o corporativismo, já que define que mesmo em cargos civis, os crimes cometidos por militares serão julgados pela Justiça Militar.

Levando em consideração a história das outras intervenções militares no Brasil, existe mais um ponto digno de nota. Militar importante está em comando de tropa, no serviço de informações ou nas escolas de formação. Com Ramos promovido a secretário de governo, Bolsonaro tirou o único comandante alinhado com ele dos comandos de tropa, pois este agora passou a ser mais um palaciano.

Ao chegar ao governo, Ramos fez uma promessa, a de “colocar ordem na casa”. Tal promessa aparentemente expressa o ethos militar, que é ter os meios e o desejo de ordem. No entanto, sua função no governo é a de atuar como articulador, fazendo reuniões com os líderes de governo no legislativo, com bancadas de estados, além de desenhar agendas estratégicas com líderes empresariais e com a imprensa. Assim, Ramos desnuda a ação castrense no poder: é atuação partidária, representando o partido militar, e este é fiel ao presidente da República.

A geopolítica interferiu para fortalecer e para enfraquecer a consonância entre o partido militar e o presidente. A conjuntura na América Latina, que terminou o ano de 2019 com explosões sociais em vários países, entre os quais se destacam Chile e Colômbia, fortaleceu a parceria. Havia uma preocupação nas FFAA de que o mesmo se repetisse no Brasil, o que justificaria medidas de repressão às iniciativas de sublevação dos povos. Por outro lado, em virtude do conflito Irã e EUA, essa proximidade se fragilizou. Se não bastasse o alinhamento incondicional brasileiro aos EUA nas suas formulações sobre terrorismo, o governo ofereceu o Brasil para testar uma aliança contra o Irã. Medidas como essa mostram o Brasil como celeiro de Trump, esvaziam os organismos internacionais e expõem o país a ataques estrangeiros. As declarações atrapalhadas do presidente do ponto de vista de defesa nacional mereceram comentários do gen. Etchegoyen , que junto com Santos Cruz, vem formando um polo de crítica ao governo. Tais atitudes apontariam fraqueza do Ministro Fernando, da Defesa, junto ao presidente.

Mas é bom observar com cautela essas diferenças. A mídia hegemônica tenta aumentar a distância entre os dois grupos, seguindo o desejo das FFAA de se apresentarem apenas como moderadores do governo, embora estejam enfronhados nele até os cabelos. Porém, esquecem que o partido militar, enquanto partido político, tem suas tendências internas, importantes inclusive para representar os diversos interesses existentes nos quartéis na construção do consenso. Todavia, não se pode esquecer do elemento básico na construção do partido, que é a espinha dorsal da profissão, a obediência disciplinada à hierarquia. Por isso, ao fim e ao cabo, tomada a decisão, o partido militar agirá como corporação, valendo o princípio dos “3 Ds”: não duvidar, não divergir, não discutir.

2020 e a consolidação do Partido Militar

As FFAA entram no ano de 2020 com um projeto mais elaborado quanto à sua participação no governo, atuando como um verdadeiro partido. Estão bem posicionados para isso, com quase 2.500 pessoas em cargos de assessoria ou chefia, em ministérios ou repartições. Também reivindicaram para sua coordenação assuntos que consideram mais relevantes para defesa e segurança nacional, como a questão da Amazônia, que passou a ser coordenada pelo vice-presidente Mourão, depois das trapalhadas que envolveram as intensas queimadas no ano de 2019. Até recentemente, Bolsonaro era funcional para esse projeto.

O mais importante acontecimento que mostra a mudança de qualidade na atuação do partido militar foi a nomeação do general Braga Netto, ex-interventor federal no Rio de Janeiro, para a Casa Civil. A partir dessa movimentação, o Palácio do Planalto se torna exclusivamente militar. Essa nomeação revela a unidade de ação da reserva e da ativa, ou seja, a unidade do partido, mesmo não sendo homogêneo como qualquer outro partido.

Embora poucos defendessem uma divisão entre militares e Bolsonaro, muitos analistas percebiam um distanciamento ao final do primeiro ano de governo. A nomeação de Braga Netto vem no sentido contrário. Ele está na ativa (antecipou sua ida para a reserva), assim como Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, e Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia. Até o fim do ano passado, Rego Barros (Comunicação) também estava na ativa. A nomeação também parece apontar uma ação mais ordenada do Alto Comando, contradizendo argumentos surgidos na nomeação do Ramos, que apontavam para a antiga amizade com o presidente ou na coincidência religiosa. Praticamente todos os generais de todas as estrelas da geração do capitão estão empregados no governo (1975-79), e foram formados sob a mesma estrutura de pensamento e atuam sob o princípio de ocupação em massa e em “ordem unida”. Estão organicamente vinculados ao restante, especialmente ao ministro Sergio Moro.

A questão não é apenas pragmática. Óbvio que muitos militares estão no governo motivados por ganhos pessoais ou para a corporação, ainda que travestidos de projetos políticos. Mas importa destacar que esses são bônus advindos da entrada no governo, não seu objetivo principal. Existe um projeto de poder e um objetivo, como passar a limpo acordos feitos na Constituinte, situações em que os militares se consideram prejudicados. As diferenças internas não são significativas no espectro político–ideológico, mas corporativas. São, como aconteceu durante a ditadura, pequenas disputas por vaidades, hegemonia nas armas, regionais, especializações, referências internacionais. Os principais generais são garantidores das privatizações e desnacionalizações (na linha do que é defendido pelos doutores em economia da Fundação Getúlio Vargas), alinhamento automático aos EUA na Política Externa (linha OTAN, embora aqui caibam contradições e não aceitem o chanceler de bom grado), esvaziamento das estruturas de Ciência, Tecnologia e Educação, em especial das Universidades Públicas, e controle de Artes e Cultura. Enfim, da soberania nacional. Fundamentalmente, veem-se a si mesmos como representantes da ‘verdadeira’ nacionalidade, aquela que afirma que o brasileiro é essencialmente cumpridor dos seus deveres, ciente de seu lugar e, portanto, ordeiro, cordial e pró-EUA.

Essa atualização conjuntural acontece em pleno estouro da crise do Coronavírus. Enquanto as forças progressistas pensam em salvar o povo brasileiro, sem dúvida há um conjunto de militares pensando nos efeitos colaterais que a crise traz, assim como na janela de oportunidades que se apresenta. Certamente cálculos sobre a utilidade de manter Bolsonaro na presidência estão sendo feitos pelas FFAA e pelos diversos grupos político-econômicos. Em meio a crise, o presidente convocou uma manifestação, usando imagens dos militares para passar credibilidade e foi criticado por isso. Também conclamou manifestações na porta dos quartéis pedindo intervenção militar no aniversário do golpe de 64, entrando em conflito direto com o STF e Congresso Nacional, além de conflitar com os governos estaduais e seu próprio Ministério da Saúde sobre as medidas sanitárias adequadas. Em um momento que todos os governos devem buscar a unidade nacional, Bolsonaro continua com seu discurso polarizador e de enfrentamento.

Embora este texto não tenha focado em questões de defesa, obviamente estas vêm sendo impactadas pelo governo Bolsonaro e pelo comportamento partidarizado dos seus principais servidores públicos: os militares. Num cenário de crise, é difícil explicar que apenas essa área seja beneficiada com aumento orçamentário. Há denúncias de benefícios individuais a militares, que tiveram o acesso ampliado para si e para a sua família a cursos e viagens internacionais. Essas denúncias são sérias e expressariam a cooptação individual de militares em ascensão, a fim de manter apoio político ao governo, mesmo que em detrimento da defesa nacional. Exemplo claro nesse sentido e que expôs o país a constrangimento internacional e mal estar com seus vizinhos foi o documento vazado com cenários prospectivos para 2040, elaborado pela Escola Superior de Guerra do RJ, que chega a mencionar a hipótese de conflito com a França. Segundo eles, foram feitas 11 reuniões regionais e ouvidas 500 pessoas. Em outros termos, o conteúdo não é um delírio localizado. É um plano de governo, reflexo da subordinação automática e auto-imposta aos EUA, estes preocupados com a geopolítica energética.

Hipóteses de cenários

Entre todas as questões que seriam pertinentes, selecionamos três elementos fundamentais a serem aprofundados. O primeiro diz respeito à perda do monopólio do exercício da força estatal por parte das FFAA. O segundo, relacionado ao primeiro, é sobre a quebra de hierarquia generalizada. O terceiro trata da destruição das instituições estatais e sua reorganização enquanto Estado autoritário.

A primeira hipótese ocorre em virtude da forte ligação entre Bolsonaro e as milícias armadas. É estranho que as FFAA não soubessem dessas ligações antes da eleição, devido ao seu acesso privilegiado às ferramentas de informações, ao seu envolvimento em várias GLOs no Rio de Janeiro, e mesmo na intervenção federal em que se destacou o chefe da Casa Civil, gen. Braga Netto. Ao que se sabe, as milícias se profissionalizaram, passando não somente a controlar territórios, populações e economias locais, mas também a ter arranjos com organizações criminosas internacionais. Se as FFAA sabiam dessas ligações, também é estranho terem endossado um presidente fortemente apoiado por essas forças também armadas, ainda que milicianas, mas que disputam com as próprias FFAA o monopólio de usar a força do Estado. Existiria um medo de que, caso as FFAA não ocupassem seu espaço formal no governo, esse vácuo de poder seria ocupado por forças armadas informais (paramilitares)?

Esse medo faz sentido não apenas diante de forças informais, mas também das formais, como as polícias militares. Por muito tempo, as polícias (ou guarda nacional) tiveram efetivos maiores e até equipamentos melhores que as FFAA. A missão militar francesa, por exemplo, veio antes profissionalizar a força pública de São Paulo, hoje polícia militar, e só depois o Exército brasileiro. Foi uma conquista das FFAA, portanto, a subordinação das polícias, com a criação da Inspetoria Geral de Polícias Militares dentro do Exército. Todos os projetos de mobilização das FFAA em território nacional em caso de grave ameaça contam com a utilização dessa força auxiliar extremamente pulverizada. Mas o que vemos hoje são disputas das FFAA até mesmo com a Polícia Federal, pelo controle do Palácio do Planalto, por exemplo. Nesse processo, a autoridade moral sobre as demais vai sendo contestada.

A maioria dos intelectuais escreve sobre o medo da policialização das FFAA devido ao seu emprego em GLO. Do ponto de vista de um cidadão comum isso é correto, mas do ponto de vista das FFAA, o verdadeiro medo é o aumento da militarização das polícias, de modo a se tornarem mais importantes do que elas. O mesmo vale para as milícias, sobre as quais, cabe lembrar, não houve nenhuma medida por parte do combatente ministro Sérgio Moro. Perder esse monopólio seria o fim das FFAA brasileiras, que diferente de outros países da América Latina, não conviviam com forças paramilitares, mas têm na memória institucional momentos em que essas disputas ocorreram.

Essa preocupação foi recentemente confirmada com o motim da polícia militar do Ceará. As FFAA foram empregadas, a pedido do governo estadual petista e por pressão das mesmas, conformando uma GLO. Bolsonaro resistiu até onde pode, pois se a situação naquele estado saísse do controle, teria como bônus a demonstração da sua força de mobilização nas polícias, criando caldo para a nacionalização das milícias cariocas, além de desestabilizar um governo opositor. O ministro da justiça Moro atuou muito fracamente. Outro militar que também passou panos quentes na indisciplina foi o coronel comandante da Força Nacional de Segurança, Aginaldo de Oliveira, que elogiou a atuação dos PM. Se já havia dúvidas no Alto Comando sobre as relações carnais entre a família do presidente e as forças de segurança, estatais ou não, o episódio ligou a luz vermelha.

Passemos ao segundo cenário: a hipótese de quebra de hierarquia, pilar fundamental das FFAA junto à disciplina. Quando entraram no governo, as FFAA tinham a firme crença de que tutelariam Bolsonaro. Na realidade, Bolsonaro foi mais habilidoso e fez o que sempre fez: sindicalismo militar e política para o baixo clero. Ele fala diretamente com a baixa oficialidade e com os praças. Não perde nenhuma formatura, assim como fazia quando era deputado. A baixa oficialidade pode argumentar que a desobediência à hierarquia é exemplo do próprio comando, e Villas Bôas já deu diversas demonstrações de proteger insubordinações militares contra o poder civil, cometidas pelo próprio Mourão.

Sabendo dessa fragilidade, Bolsonaro disputa os estratos inferiores e força os generais a posicionamentos públicos mais radicais, sob pena de perderam uma base mais ideologicamente bolsonarista nas próprias FFAA. As diferenças também surgirão entre os oficiais. Por exemplo, um coronel no Banco Central receberá um salário condizente ao de outros gestores do mesmo nível, maior que o de generais em final de carreira. Em outras palavras, a hierarquia vai sendo solapada pela distribuição de oficiais em empregos a partir de critérios distintos para a promoção, salário e benefícios. A profissionalização é desestabilizada pela nova divisão de trabalho e suas recompensas.

Num país que não vive em guerra, os oficiais se diferenciavam dos sargentos pela sua formação. Agora a maioria dos soldados tem curso superior, alguns até pós-graduação em Universidades civis. Os comandantes precisam encontrar outras formas para demonstrar sua autoridade, para além das simbólicas, como medalhas e demais identificações. Quando se trata do poder civil, esse fosso é ainda maior. Exemplo recente foi visto na formatura da Polícia Militar de São Paulo. Na ocasião, o chefe da Polícia, o governador João Doria, foi vaiado, enquanto o presidente Bolsonaro foi aclamado.

A fraqueza do comandante que cede à pressões, sejam elas internas ou externas, é uma das variáveis que compõe nossa terceira hipótese, de que o bolsonarismo estaria conseguindo desestabilizar todas as instituições do Brasil, incluindo as mais tradicionais, como as FFAA e o Judiciário. Nesse sentido, o governo vem distribuindo cargos para militares por toda a administração federal. A justificativa é que militares e policiais são técnicos e, por isso, bem preparados para gerir a burocracia sem se corromper.

Regimes nos quais o sistema de controles mútuos entre os poderem funcionam, temem a paralisia decisória que conflitos entre os poderes podem provocar. Tomando o mesmo desenho, a militarização da burocracia pode levar ao seu colapso. Por um lado, agrada sua base, inclusive com ganhos financeiros – quebrando a hierarquia militar. Por outro lado, ao colocar pessoas despreparadas e, ao mesmo tempo, que tem por missão uma determinada ação que contraria sua própria função – por exemplo, um produtor de agrotóxico cuidar do financiamento para agricultura orgânica – em cargos chave, desestrutura o processo de corrente de transmissão de decisões, levando ao colapso da burocracia.

Sem resultados na economia, o governo se sustenta a partir de uma forte retórica ideológica, elegendo pautas que alimentam uma base social militante em torno de 15% a 30% da população, segundo as pesquisas. Bolsonaro organizou e mantém mobilizado esse exército informal militante. Porém, um elemento altamente preocupante é que parte desse exército é armado, como é caso do apoio miliciano e das polícias militares. Essa foi uma das características básicas de sustentação de governos fascistas.

Independentemente da confirmação dos cenários anteriores, com a perda ou não do monopólio da força e a quebra de hierarquia, Bolsonaro tem hoje um forte exército pretoriano, jamais visto por algum outro governante da Nova República.

Nesse cenário, também não é descartável a hipótese de militarização da política, distinta de 1964, mas com uma questão comum. Antes de mais nada, para garantir sua própria existência, as FFAA precisam garantir a existência do Estado. Sem uma estrutura de mediação política (função da República) para os conflitos estruturais que inevitavelmente surgirão num cenário de crise social, triunfa a mediação da violência. O problema moral e político das FFAA é que seu cliente é algo abstrato, como instituições coletivas ou até imaginadas, como a Constituição, maiorias eleitorais, nação, líder, frequentemente em conflito entre si. Elas não são responsáveis por essas tensões, mas recorrentemente conduzem as FFAA a impasses.

Por outro lado, as FFAA não querem ficar mais uma vez com a pecha de golpistas, afinal, Bolsonaro foi eleito. Da mesma maneira, não desejam abrir espaço para um retorno da esquerda ao governo. Nesse sentido, tão importante quanto acompanhar a movimentação das camadas superiores do governo é perceber a militarização que ocorre no seio da sociedade, bem como as alterações que ocorrem na percepção do povo brasileiro sobre as FFAA. Para isso, é preciso levar em conta a cultura violenta e autoritária que estrutura o país e o tipo de transição do regime burocrático autoritário para o governo democrático que aqui se construiu. Mas isso é tema para outro artigo.

Terminamos este texto diante da explosão dos casos de Coronavírus no Brasil. Até agora, as respostas do presidente mantiveram a subordinação ao raciocínio dos EUA no combate a crise, até mesmo negando a gravidade da pandemia. Essa não é uma guerra, mas é sem dúvida o maior teste que as FFAA terão, como reconhecido em recente pronunciamento do comandante do Exército, gen. Edson Pujol. Suas capacidades de comando, mobilização, logística, articulação política, cooperação com outras instituições, apoio humanitário, pronta resposta e muitas outras serão colocadas à prova. Simultaneamente, é uma janela de oportunidade para a militarização da política. Sem dúvida, as FFAA sairão desse processo em outro patamar. Se melhor ou pior, veremos. Assim como em todo o mundo, os próximos meses determinarão o que esse século será para o Brasil. Todavia, uma certeza deve guiar a todos nós: O povo brasileiro não pode entregar seu destino aos generais.

 

*Ana Penido é pesquisadora em estágio de pós doutoral (bolsista Capes) do Instituto de Políticas Públicas em Relações Internacionais (IPPRI – UNESP), investigadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

** Jorge M. Rodrigues é mestre em Relações Internacionais pelo Programa ‘San Tiago Dantas’, investigador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

***Suzeley Kalil Mathias é professora Associada em Relações Internacionais (FCHS-Unesp; Programa ‘San Tiago Dantas’), investigadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq-PQ2).

 

Disponível em: https://www.thetricontinental.org/pt-pt/brasil/as-forcas-armadas-no-governo-bolsonaro/?fbclid=IwAR01Ke6q6qM4ssjvYJhjJ0GY27fq97G4UIjfmCu7BUYl3v0gwSLs0mdqRIE

Os possíveis desdobramentos sobre a presença dos militares no poder

Quebra de hierarquia, instituições fragilizadas e disputa do monopólio da força com milícias estão no cenário do governo

Ana Penido, Jorge M. Rodrigues e Suzeley Kalil Mathias
Brasil de Fato | São Paulo (SP) |  

Uma advertência: este é um texto escrito no calor dos acontecimentos. Isso significa que, diferentemente de formulações que podem contar com o distanciamento histórico, ou de escritos que focam no debate teórico, este texto é escrito conforme o desenrolar dos fatos.

Antecedentes

Depois de uma noite que durou 21 anos, um civil eleito chegou, em 1985, à Presidência da República brasileira. A saída das Forças Armadas do centro do poder político foi altamente controlada pelos militares, em um processo de transição transada, com todas as garantias de que eles não seriam julgados pelo regime imposto a partir do golpe de 1964.

Fernando Collor de Mello, civil eleito com um projeto de reformas, durou pouco: dois anos depois de chegar ao Planalto, foi afastado em um processo de impeachment no qual ficou comprovado crime de responsabilidade resultante de alta corrupção, e na qual os comandantes militares mantiveram calculada equidistância.

As questões políticas e especialmente econômicas mais imediatas empurraram a necessária reforma militar para um futuro cada vez mais distante. Exemplo disso foi a criação do Ministério da Defesa com a supressão dos ministérios militares, que aconteceu apenas em 1999, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Além de medidas administrativas como esta, pouco se fez para subordinar os militares ao controle civil.

Após relativa estabilidade durante o governo de Luiz Inácio Lula de Silva (PT), as relações civis-militares experimentaram um período de deterioração.

A calmaria ocorreu em virtude das ações das Forças Armadas Brasileiras (FFAA) e dos civis na condução política, que mantinham certo distanciamento. Por outro lado, viu-se crescer as Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), o que retoma a ideia de inimigo interno, com o emprego das FFAA em questões de segurança pública.

A deterioração aprofundou-se paulatinamente no governo Dilma  Rousseff (PT). Para além do machismo – afinal, os generais teriam que bater continência para uma mulher, sua comandante em chefe –,    segundo o General Etchegoyen, os militares entraram em rota de choque com Dilma por questões objetivas, como, por exemplo, o funcionamento da Comissão da Verdade, e subjetivas (algo como “políticos de esquerda são populistas e apostam na polarização ideológica”). Durante o rito processual do golpe, as FFAA mantiveram majoritariamente seu papel institucional. Afirma-se “majoritariamente” pois a anuência é uma forma de ação perceptível.

As Forças Armadas se colocaram como fiadoras da legitimidade do governo de Michel Temer (MDB), que foi marcado por um comportamento tutelar por parte dessas mesmas FFAA, cujo comportamento, exemplificado pelo general Villas Boas, manteve as instituições sob contínua pressão. Isto é, embora as FFAA sempre afirmassem que suas ações estavam pautadas pela estabilidade, pela legalidade e pela legitimidade, foram elas mesmas quem definiram os limites desses três conceitos.

Devido a esse protagonismo imediato, acreditamos que houve sim um grupo de militares que conspirou sorrateiramente pelo golpe contra Dilmas, ainda que as três forças institucionalmente tenham passado quase ao largo disso. Entretanto, o golpe não foi fruto de uma conspiração militar, mas sim do trabalho de, no mínimo, três grupos conspiradores com objetivos diferentes, mas que em determinado momento se unificam e derrubam a presidenta: os políticos, o poder judiciário – especialmente a Lava Jato – e o grupo militar. Esse desejo de protagonismo por parte de setores militares não foi explícito, e por isso chamamos esse comportamento de protagonismo sorrateiro.

::Linha do tempo: o que os vazamentos da operação Lava Jato revelaram até agora::

Com Bolsonaro, as FFAA tornaram-se, desde a campanha, abertamente jogadoras, formando um dos grupos de sustentação ao governo. Embora sempre tenham afirmado que não foram para o governo enquanto instituição, se mostraram um grupo bastante coeso, comportando-se como um partido militar. O efeito direto e imediato disso foi a exposição da instituição, especialmente do Exército, e o esvaziamento político do Ministério da Defesa.

O desenrolar do governo deixou claro que as FFAA não conquistaram a hegemonia do governo, embora o tenham ocupado massivamente. Apesar disso, as FFAA disputam tal hegemonia com um projeto melhor pensado e organizado e, portanto, melhor aparelhado para atuar como um verdadeiro partido. Estão bem posicionados para isso, ocupando quase 2,5 mil cargos de assessoria ou chefia em ministérios ou repartições. Até recentemente, Bolsonaro era funcional para esse projeto.

Hipóteses de cenários

Entre todas as questões que seriam pertinentes, selecionamos três elementos fundamentais a serem aprofundados. O primeiro diz respeito à perda do monopólio do exercício da força estatal por parte das Forças Armadas. O segundo, que se relaciona com o anterior, diz respeito à quebra de hierarquia generalizada. O terceiro trata da destruição das instituições estatais e sua reorganização enquanto Estado autoritário.

A primeira hipótese ocorre em virtude da forte ligação entre Bolsonaro e as milícias armadas. É estranho que as FFAA não soubessem dessas ligações antes da eleição, devido ao seu acesso privilegiado às ferramentas de informações. Se as FFAA sabiam dessas ligações, também é estranho terem endossado um presidente fortemente apoiado por essas forças também armadas, ainda que milicianas, que disputam com as próprias FFAA o monopólio de usar a força do Estado. Existiria um medo de que, caso as FFAA não ocupassem seu espaço formal no governo, esse vácuo de poder seria ocupado por forças armadas informais (paramilitares)?

Esse medo faz sentido também diante das forças formais, como as polícias militares. Foi uma conquista das FFAA a subordinação das polícias e todos os projetos de mobilização das FFAA em território nacional em caso de grave ameaça, que contam com a utilização dessa força auxiliar extremamente pulverizada. A maioria dos intelectuais escreve sobre o medo da policialização das FFAA, especialmente em razão da banalização de operações GLO. Entretanto, também é preciso pensar o aumento da militarização das polícias, de modo a se tornarem mais importantes do que as próprias Forças Armadas. Esse cenário recentemente se confirmou com o motim da polícia militar do Ceará. O ministro da Justiça, Sergio Moro, atuou muito fracamente, assim como o coronel comandante da Força Nacional de Segurança Pública.

O segundo cenário diz respeito à hipótese de quebra de hierarquia, pilar fundamental das FFAA, junto à disciplina. Acredita-se que as FFAA, quando assumiram o projeto de governo, tinham a firme crença de que tutelariam Bolsonaro. Na realidade, Bolsonaro foi mais habilidoso e fez o que sempre fez: sindicalismo militar e política para o baixo clero. Mesmo entre os oficiais, essas diferenças se apresentaram. Em outras palavras, a hierarquia vai sendo solapada pela distribuição de oficiais em empregos a partir de critérios distintos para a promoção, salários, benefícios.

A fraqueza do comandante que cede à pressões, sejam elas internas ou externas, é uma das variáveis que compõe nossa terceira hipótese, de que o bolsonarismo estaria conseguindo desestabilizar todas as instituições do Brasil, incluindo as mais tradicionalistas, como as Forças Armadas e o Poder Judiciário. Regimes nos quais o sistema de controles mútuos entre os poderem funcionam, temem a paralisia decisória que conflitos entre os poderes podem provocar. Tomando o mesmo desenho, a militarização da burocracia pode levar ao seu colapso.

Bolsonaro organizou e mantém mobilizado esse exército informal militante. Todavia, parte desse exército é armado, como é perceptível pelo forte apoio miliciano e nas polícias militares que o presidente possui, constituindo uma bomba relógio pronta para explodir. Com ou sem a confirmação dos cenários anteriores, ou seja, com ou sem o fim do monopólio da força e, com ou sem a quebra de hierarquia, Bolsonaro tem hoje um forte exército pretoriano, como nenhum governante da Nova República sequer sonhou.

Nesse cenário, também não é descartável a hipótese de militarização da política, distinta de 1964, mas com uma questão comum. Antes de mais nada, para garantir sua própria existência, as FFAA precisam garantir a existência do Estado. Sem uma estrutura de mediação política (que é a função da República) para os conflitos estruturais que inevitavelmente surgirão num cenário de crise social, triunfa a mediação da violência, os senhores da guerra. O problema moral e político das FFAA é que seu cliente são abstrações, instituições coletivas ou até imaginárias (como a Constituição, maiorias eleitorais, nação, líder…), frequentemente em conflito entre si. Elas não são responsáveis por essas tensões, mas recorrentemente conduzem as FFAA a impasses.

Por outro lado, as FFAA não querem ficar mais uma vez com a pecha de golpistas, afinal, Bolsonaro foi eleito (com ou sem fraude é outro debate). Da mesma maneira, não desejam abrir espaço para um retorno da esquerda ao governo. Nesse sentido, tão importante quanto acompanhar a movimentação das camadas superiores do governo é perceber a militarização que ocorre no seio da sociedade e as alterações que ocorrem na percepção do povo brasileiro sobre as FFAA. Para isso, é preciso levar em conta a cultura violenta e autoritária que estrutura o país e o tipo de transição do regime burocrático autoritário para o governo democrático que aqui se construiu. Mas isso é tema para outro artigo.

Estas análises são feitas diante da explosão dos casos de coronavírus no Brasil, que, sem dúvida, será o maior teste que as FFAA terão das suas capacidades. Simultaneamente, é uma janela de oportunidade para a militarização da política. Sem dúvida, as FFAA sairão desse processo em outro patamar. Se melhor ou pior, veremos. Assim como para o mundo, os próximos meses determinarão o que será esse século para o Brasil.

Terminamos com nova advertência. Propositadamente, este texto não focou em questões de defesa, mas estas vêm sendo impactadas pelo governo Bolsonaro e pelo comportamento partidarizado dos seus principais servidores públicos, os militares. Exemplo claro nesse sentido e que expôs o país a constrangimento internacional e mal-estar com seus vizinhos foi o documento vazado com cenários prospectivos para 2040, elaborado pela Escola Superior de Guerra (RJ), cuja principal hipótese de conflito é com a França.

 

*Ana Penido, Jorge M. Rodrigues e Suzeley Kalil Mathias são pesquisadores do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional da UNESP.

**O estudo completo que deu origem a este artigo será publicado no Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Edição: Rodrigo Chagas

Imagem: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

Ditadura Nunca Mais!

O dia 31 de março de 1964 marca um triste capítulo da história brasileira. Nesse dia as Forças Armadas romperam, pela força, o estatuto da democracia e tomaram partido pelo estrangulamento dos movimentos sociais, violou-se a institucionalidade do Brasil para instalar um regime militar-autoritário que subordinou a defesa nacional brasileira ao combate a um “inimigo interno” arbitrariamente definido. Durante esse período suspenderam-se as atividades políticas normais para dar lugar a um regime de exceção. A constituição nacional foi abolida, a informação cerceada e a comunicação censurada. A tortura, a morte e os desaparecimentos e outras práticas abomináveis passaram a ser a conduta cotidiana dos carrascos do regime. As decisões nacionais foram sequestradas pelos militares que governaram em nome da corporação. A memória desses tempos sombrios está consolidada nos relatórios da Comissão Nacional da Verdade negados pelos militares ainda hoje.

O Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional, desde a sua fundação, tem na construção da democracia e dos direitos humanos seus compromissos pétreos e a integração regional como horizonte. Por isso, desenvolvemos estudos que ensejam a autonomia estratégica brasileira, para que o Brasil possa decidir soberanamente o seu destino, sem imperar sobre seus vizinhos como expressa a Estratégia de Defesa Nacional. Por isso neste dia em que lembramos com luto o momento em que os militares quebraram a cadeia de comando para atentar contra a nação, queremos manifestar nossa alerta para que nunca mais se repitam tais crimes de Lesa-Pátria.

Diante da convergência atual das crises econômica, sanitária, moral e política, quando saídas autoritárias começam a ser aventadas no Brasil, o GEDES adverte que não há saída fora da democracia.

Lançamento do livro “As guerras de vingança e as relações internacionais”

O tema da guerra acompanha o imaginário e ocupa a comunicação da humanidade desde seus primórdios. Suas pinturas rupestres mostram homens empunhando suas armas tanto contra bestas, na procura do alimento, como contra outros homens, na busca de segurança, honra, pilhagem ou vingança. Em As guerras de vingança e as relações internacionais: um diálogo com a antropologia política sobre os Tupi-Guarani e os Yanomami, lançamento da Editora Unesp, Alberto Montoya Correa Palacios Junior empreende uma minuciosa investigação sobre as guerras dos povos Tupi-Guarani [principal grupo indígena do Brasil] e Yanomami [indígenas caçadores-agricultores que habitam o Brasil e a Venezuela] e suas implicações para o estudo do assunto nas Relações Internacionais.

Ao longo dos oito capítulos, Montoya articula os temas da vingança e da guerra em dois âmbitos: intrassocietário, em que os ideais coletivos de vingança incentivam a lealdade para a guerra e justificam o sacrifício do inimigo; e intersocietário, em que os imperativos de vingança inibem a possibilidade de resolução diplomática dos conflitos. O debate em torno das “novas guerras” que o autor propõe foi responsável por instigar os analistas internacionais a pensarem o tema para além da sua manifestação estatal. “Faz-se necessário superar as limitações das abordagens e fórmulas clássicas que sejam restritas ao ponto de vista do Estado quando empregadas no estado da guerra contemporânea, que nem sempre se apresenta como interestatal”.

As guerras de vingança e as relações internacionais sai de lado uma visão eurocêntrica dos estudos sociais, que trata as práticas guerreiras indígenas como exóticas ou brutais, e recusa visões que consideram vingança, guerra e canibalismo como primitivismo selvagem. “O exame das guerras de vingança se faz oportuno em um contexto internacional marcado por conflitos armados que escapam aos conceitos e teorias clássicas das RI – ou não se deixam explicar por eles. Nas últimas décadas, pesquisadores envolvidos no debate sobre as ‘novas guerras’ chamaram atenção da comunidade de RI para que a guerra seja compreendida para além das suas manifestações interestatais.” Dessa maneira, Montoya descortina os mecanismos políticos de gerenciamento de guerras que subjazem a uma vida aparentemente simples e coloca toda essa complexidade em relevo para o autor.

Sobre o autor– Alberto Montoya Correa Palacios Junior é doutor e mestre em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas/Pró-Defesa (Unesp-Unicamp-PUC-SP). Atualmente, é pesquisador de pós-doutorado no Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI) da Unesp e professor visitante no Latin American Research Centre (LARC).

Título: As guerras de vingança e as Relações Internacionais: um diálogo com a antropologia política sobre os Tupi-Guarani e os Yanomani
Autor: Alberto Montoya Correa Palacios Junior
Número de páginas384
Formato: 14X21cm
Preço: R$ 68,00
ISBN: 978-85-393-0821-7

Assessoria de Imprensa da Fundação Editora da Unesp
imprensa.editora@unesp.br
(11) 3242-7171 ramal 517

 

Disponível para compra no site da Editora Unesp: http://editoraunesp.com.br/catalogo/9788539308217,as-guerras-de-vinganca-e-as-relacoes-internacionais

Série Especial de entrevistas discute a nova versão dos Documentos de Defesa Nacional

Entrevista Prof. Dr. Alcides Costa Vaz (UnB)

Na primeira entrevista de nossa Série Especial sobre os novos Documentos de Defesa brasileiros, o Professor Dr. Alcides Costa Vaz (UnB) faz uma apresentação sobre os principais pontos de mudança e inflexão nas novas versões, além de abordar as relações entre Academia, Governo e Forças Armadas no país e a cooperação em Defesa e Segurança no âmbito da América do Sul. ​O Prof. Dr. Alcides Costa Vaz é graduado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB), com mestrado pela mesma instituição e doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professor no curso de Relações Internacionais da UnB e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) (http://lattes.cnpq.br/6295515302675804).

Entrevista: Victor Teodoro (Mestrando PPGRI San Tiago Dantas)

Gravação: Jorge Rodrigues (Mestrando PPGRI San Tiago Dantas)

 

Entrevista Prof. Dr. Paulo Fagundes Visentini (UFRGS)

Na segunda entrevista, conversamos com o Professor Dr. Paulo Fagundes Visentini (UFRGS) sobre o entorno estratégico brasileiro na nova versão dos documentos, com enfoque no Atlântico Sul. Também aborda as relações do Brasil com os países africanos, o lugar da África na Política Externa brasileira e projetos de inserção e cooperação no âmbito da Defesa. ​O Prof. Dr. Paulo Gilberto Fagundes Visentini é graduado em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com Mestrado em Ciência Política pela mesma instituição. Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorado em Relações Internacionais pela London School of Economics (Inglaterra). Atualmente é Professor Titular de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Professor Visitante no NUPRI/USP, da Universidade de Leiden (Holanda), Universidade de Cabo Verde, Instituto de Relações Internacionais (Moçambique), Universidade de Oxford (Inglaterra) e Universidade de Veneza CaFoscari (Itália) (http://lattes.cnpq.br/2013094835500963).

Entrevista: Victor Teodoro (Mestrando PPGRI San Tiago Dantas)

Gravação: Ronaldo Canesin (Mestrando PPGRI San Tiago Dantas

 

Entrevista Prof. Dr. Paulo Pereira Santos (UNIFA)

Em mais uma entrevista da Série Especial Documentos de Defesa, o Professor Dr. Paulo Pereira Santos (UNIFA) que aborda os principais desafios e oportunidades para o setor Aeroespacial brasileiro, assim como as questões de gênero nas Forças Armadas. O Prof. Dr. Paulo Pereira Santos é Mestre e Doutor em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É Professor da Universidade da Força Aérea (UNIFA) e do Mestrado em Ciências Aeroespaciais da instituição, onde coordena a disciplina de Seminários de Pesquisa. Faz parte também do Centro de Estudos Estratégicos da UNIFA (http://lattes.cnpq.br/9030207975485748).

Entrevista: Victor Teodoro (Mestrando PPGRI San Tiago Dantas)

Gravação: Ronaldo Canesin (Mestrando PPGRI San Tiago Dantas)

 

Entrevista Prof. Humberto Lourenção (AFA/UNIFA)

Nessa entrevista, o Professor Dr. Humberto Lourenção (AFA/UNIFA) trata da forma como a Amazônia é abordada nas novas versões e os principais desafios para esta região, as relações civis-militares no Brasil e as oportunidades e inflexões para o desenvolvimento de projetos aeroespaciais no país. O Prof. Dr. Humberto Lourenção é graduado em Filosofia e Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Ciência Política e Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Possui Pós-doutorado em Ciências Militares na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). Research Fellow na National Defense University (NDU-EUA) É atualmente Professor Associado III na Academia da Força Aérea e professor de Ciência Política do Programa de Mestrado em Ciências Aeroespaciais da Universidade da Força Aérea (UNIFA) (http://lattes.cnpq.br/1778251358380714).

Entrevista: Victor Teodoro (Mestrando PPGRI San Tiago Dantas)

Gravação: Jorge Rodrigues (Mestrando PPGRI San Tiago Dantas)

 

Entrevista Prof. Dr. Sérgio Luiz Cruz Aguilar (UNESP)

Na entrevista, o Professor Dr. Sérgio Luiz Cruz Aguilar (UNESP) aborda a temática das Operações de Paz nas novas versões dos documentos, além de fazer um balanço sobre a participação brasileira na MINUSTAH (Haiti) e com o seu encerramento quais as perspectivas para os efetivos envolvidos com esta missão e possibilidades de participação em outras sob o mandato da ONU. O Prof. Dr. Sérgio Luiz Cruz Aguilar possui Graduação em Ciências Militares na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), Mestrado em Integração Latino-Americana na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), é Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), Pós-doutorado em Segurança Internacional pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e é Livre-Docente em Segurança Internacional na UNESP. É Professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da UNESP, Campus de Marília, do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC- SP) e do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais (UNESP/Marília). Foi observador da ONU na United Nations Peace Force na Bósnia-Hezergovina e na United Nations Transnational Administration for Easter Slovania na Croácia durante a guerra-civil na antiga Iugoslávia (http://lattes.cnpq.br/7971139957298760).

Entrevista: Victor Teodoro (Mestrando PPGRI San Tiago Dantas)

Gravação: Ronaldo Canesin (Mestrando PPGRI San Tiago Dantas)

 

Entrevista Prof. Dr. José Miguel Arias Neto (UEL)

Nesta edição da Série especial Documentos de Defesa, contamos com a presença do Professor Dr. José Miguel Arias Neto (UEL), que aborda a relação entre militares e desenvolvimento tecnológico no Brasil, os impactos para os setores tecnológicos que decorrem desta relação e como esta temática está sendo abordada nas novas versões dos Documentos de Defesa. O Prof. Dr. José Miguel Arias Neto é graduado em História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), possui mestrado e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Realizou estágio pós-doutoral em Estudos Estratégicos na Universidade Federal Fluminense e no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). É atualmente Professor Associado de História Contemporânea na Graduação em História e Docente do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina (http://lattes.cnpq.br/4096402583066476).

Entrevista: Victor Teodoro (Mestrando PPGRI San Tiago Dantas)

Gravação: Ronaldo Canesin (Mestrando PPGRI San Tiago Dantas)

 

Entrevista Profa. Dra. Ariela Diniz Leske (ECEME)

A Série Especial Documentos de Defesa recebe nesta entrevista a Professora Dra. Ariela Diniz Leske que nos apresenta como as novas versões dos Documentos de Defesa tratam a Base Industrial de Defesa (BID), quais os desafios e avanços na última década e qual a importância deste setor para o desenvolvimento nacional. A Prof. Dra. Ariela Cordeiro Diniz Leske é graduada em Economia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), com Mestrado em Economia pela mesma Instituição. Doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente é Professora e Pesquisadora da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) (http://lattes.cnpq.br/3597964998395390).

Entrevista: Victor Teodoro (Mestrando PPGRI San Tiago Dantas)

Gravação: Ronaldo Canesin (Mestrando PPGRI San Tiago Dantas)

 

Entrevista Prof. Dr. Marcos Barbieri (UNICAMP)

Em mais uma entrevista da Série Especial Documentos de Defesa, recebemos o Professor Dr. Marcos Barbieri (UNICAMP) para tratar da Base Industrial de Defesa (BID) nas novas versões. Também nos explica a importância do Governo e das empresas na promoção de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação – PDI, as relações sobre este desenvolvimento nos projetos de inserção internacional do Brasil, assim como a relação do país com seus vizinhos no âmbito da cooperação e as oportunidades e desafios para a Indústria de Defesa. O Prof. Dr. Marcos José Barbieri Ferreira é graduado e Mestre em Ciências Econômicas pelo INstituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Doutor em Teoria Econômica pela mesma instituição. Especialista em Organização Industrial pelo Institut Aéronautic et Spatial (IAS) em Toulouse, França. É Professor de Economia do Instituto de Economia da UNICAMP e coordena o Laboratório de Estudos das Indústrias Aeroespaciais e de Defesa (LabA&D) desde 2013. Recebeu da Presidência da República em 2012 o título de Membro da Ordem do Mérito Militar, grau de Cavaleiro (http://lattes.cnpq.br/8059777565985852).

Entrevista: Victor Teodoro (Mestrando PPGRI San Tiago Dantas)

Gravação: Ronaldo Canesin (Mestrando PPGRI San Tiago Dantas)

 

Entrevista Profa. Dra. Érica Winand

Na última edição da Série Especial sobre as novas versões dos Documentos de Defesa brasileiros contamos com a participação da Professora Dra. Érica Winand (UFS), que aborda as novas versões dos Documentos de Defesa, com foco em Cooperação Regional e Política Externa. A Prof. Dra. Érica Cristina Alexandre Winand é bacharela em História e Mestre e Doutora em História e Cultura Política, com ênfase em História militar, da Guerra e das Relações Internacionais, pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). É Professora Adjunta IV do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Docente da Pós-Graduação em Gestão e Modernização da Segurança Pública (RENAESP/UFS). Pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e líder do Grupo de Estudos Comparados em Política Externa e Defesa (COPEDE). Foi secretária adjunta da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) na gestão 2012-2014. Foi Secretária Executiva da mesma Associação (2014-2015). Exerce o cargo de Diretora Financeira Adjunta da ABED (gestão 2016-2018) (http://lattes.cnpq.br/1898444282498966).

Entrevista: Victor Teodoro (Mestrando PPGRI San Tiago Dantas)

Gravação: Ronaldo Canesin (Mestrando PPGRI San Tiago Dantas)

“Temos Forças Armadas para defender os interesses dos EUA”, aponta pesquisador

Para Héctor Luís Saint-Pierre, é um paradoxo militares apoiarem a desregulação da economia e a entrega de patrimônios

*Entrevista concedida à Ana Penido, pesquisadora do Instituto Tricontinental

Brasil de Fato | São Paulo (SP) 26 de Outubro de 2019 às 10:16

Com a ampla participação de militares no governo de Jair Bolsonaro, há mais interesse em compreender quais ideias carregam essa categoria especial de servidores públicos. “O sentimento de pertença à corporação militar parece superar o sentimento nacional e até o ‘patriótico’, do qual se consideram guardiões”, aponta Héctor Luís Saint-Pierre, coordenador executivo do Instituto de Políticas Públicas e Relações internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Em entrevista ao Brasil de Fato, o pesquisador argentino avalia também a política de Defesa e diplomacia encampada pelo atual governo a partir de uma composição eminentemente militar. Ele relembra que a liderança regional exercida pelo Brasil durante o “governo de Luiz Inácio Lula da Silva foi deliberadamente abandonada”. “Quem imaginava que, pelo comprometimento dos militares com o governo Bolsonaro, prevaleceriam os valores nacionais e a defesa da soberania, pode constatar o abandono desses valores (…). Assim, poder-se-ia concluir paradoxalmente que temos Forças Armadas para defender os interesses norte-americanos, entre os quais, a desregulação da economia nacional e a apropriação das riquezas brasileiras”, avalia. Confira, a seguir, a entrevista:

 

Brasil de Fato – Seria possível afirmar que, guardado espaço para algumas heterogeneidades, existe um fio condutor do pensamento dos militares brasileiros?

Hector Saint Pierre – A corporação militar não é monolítica, como pareceriam indicar seus uniformes. Apesar de se apresentem para fora sempre unidos e subordinados a uma sólida estrutura hierárquica, internamente existem posicionamentos nem sempre coincidentes, como ficou evidenciado historicamente em movimentos que contestaram algum aspecto das decisões da cúpula militar. Assim ocorreu na Marinha com a Revolta da Chibata em 1910; no Exército, com o movimento tenentista na década de 1920; os expurgos na era Vargas; e, particularmente, na notável repressão interna às três forças durante o golpe de 1964, com prisões, desaparições, tortura e morte de muitos militares, como ficou denunciado pela Comissão da Verdade. Cada período histórico está caracterizado por uma direção da corporação definida por algum grupo hegemônico, oscilando entre o nacionalismo e o liberalismo (por não dizer entreguismo), entre a procura de uma autonomia política que busque a liberdade de ação estratégica de maneira não confrontativa até o alinhamento automático.

Se há algum fio condutor que tem resistido às mudanças de posições dos militares com relação à política são os valores corporativos que se mantém por cima de qualquer outro. O sentimento de pertença à corporação militar parece superar o sentimento nacional e até o “patriótico”, do qual se consideram guardiões. Em geral, o militar confia mais no militar de outro país do que nos civis do seu próprio. Sem resistir à generalização, poderíamos dizer que a maioria adere a valores positivistas, como o pânico da História e da mudança, a ideia contraditória de “ordem e progresso”, valores tradicionais de família e sociedade e um anticomunismo doentio que associam com qualquer crítica ao status quo burguês. Do ponto de vista político institucional, se consideram um quarto poder moderador, aquele poder vigilante capaz de intervir no jogo político sempre que a (nunca definida) “pátria” corra perigo. Consideram-se a reserva moral da nação e dos valores ocidentais o que, para eles, legitimaria intervir no quadro político sempre que considerem oportuno, como manifestou mais de uma vez, ainda na ativa, o general e atual vice-presidente do Brasil, Hamilton Mourão.

 

Em seu artigo “Racionalidades e Estratégicas”, você elenca categorias para entender o pensamento militar. Destacamos três dimensões: a autonomia das Forças Armadas diante do Estado e sua relação com a democracia; percepções de hegemonia regional; e conceitos como o de inimigo, provenientes de uma determinada forma de se ver as dinâmicas de guerra e paz. O que vem ocorrendo no Brasil hoje, na política de Defesa, confirma o defendido no artigo?

Nesse artigo, meu objetivo é desenhar um modelo de análise diagramado sobre variáveis que permitiriam analisar ou comparar concepções de Grande Estratégia, que se trata de um plano de defesa a partir do mais alto comando da nação. Esse planejamento pode ser definido pelo Executivo, mas deve ser aprovado pelo Legislativo como uma política de Estado que supere a duração de um governo. Ante uma ameaça que indique a aplicação desse planejamento, o Executivo assume a condução e a responsabilidade das ações. Nessa Grande Estratégia, as Forças Armadas são apenas um dos componentes, o essencial, mas não o único nem necessariamente o mais relevante dependendo do caso.

Com a transição de uma ditadura militar para um governo democrático, no qual se espera a estrita subordinação daqueles ao poder político legítimo, deveria ser possível constatar concomitantemente uma mudança na concepção estratégica do Estado.

Nesse artigo, trato como Concepção Estratégica Oficial (CEO) uma concepção cujas variáveis obedeciam ao período da ditadura militar e como Concepção Estratégica Alternativa (CEA) um estado de coisas ideal que eu imaginava que deveria refletir as condições de defesa de um sistema democrático. Se tivesse havido uma transição à democracia no Brasil estaríamos perto da CEA. A partir dessa comparação seria possível corroborar se de fato a mudança política de sistema foi acompanhada por um acomodamento da forma da força, do emprego e missões do monopólio legítimo da violência, isto é, deveria se contatar uma mudança na concepção estratégica do Estado.

Porém, diferentemente de outros países como Argentina, onde a transição foi por colapso, ou Chile e Uruguai, onde foi pactuada, o Brasil teve uma transição lenta, gradual e segura, concedida pelos militares, que mantiveram estrita vigilância para manter vigente a CEO.

Hoje, os militares continuam a exercer uma função tutelar sobre o Brasil, menos pelos militares retirados ou da ativa que povoam a casa de governo, do que pela pressão velada que exercem sobre a sociedade, os políticos e as instituições, seja por “assessorias” injustificadas ou ameaçadores tuítes limítrofes com a ilegalidade. A Defesa nunca deixou de ser uma caixa fechada para a sociedade e se preservou como monopólio das Forças Armadas. É verdade que desde os últimos anos do governo Fernando Henrique Cardoso e mais especialmente durante os governos petistas houve uma tímida intenção de democratizar o tema. Mas essa timidez foi entendida como debilidade pelos militares que endureceram ainda mais sua posição. Não há democracia sem estrita subordinação militar ao controle civil, sem uma efetiva condução política civil da Defesa, sem uma ativa participação da sociedade na discussão sobre a Defesa Nacional, sem mando civil e obediência militar. Definitivamente, as Forças Armadas brasileiras conquistaram uma autonomia e prerrogativas incompatíveis com o sistema democrático.

 

E em relação à política externa?

Supõe-se que – numa concepção alternativa, isto é, democrática – essa forma de inserção internacional deveria resultar de um debate com a sociedade, buscando a cooperação regional, que garanta a liberdade de ação estratégica e a autonomia da decisão. Poder-se-ia dizer que tanto as Forças Armadas quanto o Itamaraty sempre procuraram uma relativa liberdade de ação estratégica e certa autonomia da decisão, respectivamente, na sua área de interesse, mas sempre de forma não confrontativa com os Estados Unidos. Não obstante isso, desde 2009, pode ser notada nas Forças Armadas a procura de uma aproximação com os Estados Unidos, a qual foi ficando mais clara durante o governo de Michel Temer. De forma inédita, um general brasileiro é promovido ao sub-comando de Cooperação Regional do Exército do Comando Sul dos USA.

Durante a campanha presidencial de 2018, o então candidato Bolsonaro enquadrou-se frente à bandeira dos Estados Unidos num gesto vergonhoso para qualquer pretensão soberana. Já presidente, Bolsonaro ofereceu ao governo dos Estados Unidos uma relação servil para os interesses americanos e uma aliança militar com o governo de Donald Trump que vive antagonizando com quase todo o mundo. Este alinhamento automático à estratégia dos Estados Unidos engessa a política externa brasileira aos interesses da superpotência, transformando a oportunidade apresentada pelo rearranjo de forças mundiais que está mudando a polaridade global em uma desgraça.

No lugar de aproveitar o estremecimento global pelo acomodamento das estaturas estratégicas das três grandes potências [Estados Unidos, China e Rússia] e se manter à margem, o Brasil abraça a superpotência decadente se condenando a realizar apenas os negócios que ela lhe permita. Quem imaginava que, pelo comprometimento dos militares com o governo Bolsonaro, prevaleceriam os valores nacionais e a defesa da soberania, pode constatar o abandono desses valores e a entrega da soberania por questões meramente ideológicas e até místicas. Assim, poder-se-ia concluir paradoxalmente que temos Forças Armadas para defender os interesses norte-americanos, entre os quais, a desregulação da economia nacional e a apropriação das riquezas brasileiras. A liderança regional concedida e reconhecida pelos países de América do Sul ao Brasil durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva foi deliberadamente abandonada e, no seu lugar, os Estados Unidos parecem propor para o Brasil ser seu bastante procurador na região, colocando o sangue do soldado brasileiro como lubrificante dos seus interesses.

 

Percebemos críticas, na sua obra, sobre a apropriação de conceitos estadunidenses e europeus para pensar a realidade latino-americana. Em outros termos, fica evidente a afirmação de que o pensamento militar brasileiro não é tão brasileiro assim, e que isso é um problema. Por que acha que isso ocorre?

A colonização não é um fenômeno meramente econômico, ele também é político, social, cultural e epistêmico [intelectual]. A colonização epistêmica nos impõe óculos para ver a realidade como o colonizador quer que vejamos, esses óculos são os conceitos e as teorias que muitas vezes se assumem acriticamente. Aqueles acadêmicos do mainstream que definem o digno de ser pensado, publicado e lido são tomados “pelas colônias” como referências de objetividade e cientificidade. Porém, a maioria deles são ou foram ou serão funcionários do Estado (diferentemente do Brasil, noutros países os acadêmicos e não os militares são consultados) e pensam o melhor para seu país, que é um Estado colonizador. O que é condenável é que nossos acadêmicos defendam, na colônia, o que o colonizador defende como bom para a metrópole. As teorias e os conceitos não são neutros, eles são valorativos. Por exemplo, “Guerra de baixa intensidade” é conceito estabelecido pelos

Estados Unidos para se referir a guerras nas quais se aplica parte pouco expressiva da sua capacidade bélica. Mas as guerras são travadas entre dois beligerantes e a definição dela ou compreende os dois ou terá duas definições dependendo de que lado da disputa se encontre. Na Guerra da Nicarágua, definida pelos Estados Unidos como de “baixa intensidade”, para os nicaraguenses foi uma guerra total.

Se esta situação é séria para os acadêmicos, quando consideramos o colonialismo entre os militares, ela é dramática. Há uma tendência à uniformização das Forças Armadas do mundo condicionada pelo que passou a ser chamado de “o arsenal mundial”. O armamento – fundamentalmente condicionado pelos sistemas de armamento, pelo alto nível de complexidade e sofisticação, que exige a existência de uma economia intensiva – é produzido por poucos países. Quando um país não tem condições de aplicar capital intensivo à produção de artefatos bélicos, como são a maioria dos países, particularmente do Sul global, ele deve recorrer às matrizes do arsenal global para adquirir os sistemas de armas. Mas junto com os sistemas de armas também se compra a organização militar adequada a esse sistema, uma doutrina militar, uma doutrina de emprego imposta pelo sistema, treinamento e também o inimigo. Quem define contra quem se pode empregar esses sistemas de armas é o vendedor, logo, é ele quem define o inimigo.

Note-se que a definição do inimigo não significa apenas a indicação daquele contra quem apontarei meu armamento, mas também aquele de quem não poderei comprar, ainda que tenha preços competitivos, assim como a quem não poderei vender minha soja (o caso dos barcos carregados de soja, retidos no porto de Paranaguá, é um exemplo claro de como se pode ir contra os interesses nacionais pela pressão ideológica garantida pela dependência estratégica). O paradoxal disto é que o armamento que deveria garantir a soberania, a autonomia da decisão política, pelo contrário, a compromete. Do mesmo modo, o militar, sujeito ativo da liberdade estratégica, pela dependência instrumental e doutrinária é agente da subordinação estratégica.

Hoje, contamos com um instrumento da força típico da Segunda Guerra com uma ideologia estratégica da Guerra Fria. Os militares, que foram historicamente associados ao desenvolvimento, hoje parecem ser a garantia da dependência. A entrega da Embraer, vanguarda da pesquisa e desenvolvimento nacional, foi entregue sob seu olhar atento. O mesmo poderia ser dito da Petrobras ou da Base de Alcântara. Os militares temem pensar fora da caixa.

 

Bolsonaro dá grande valor à batalha das ideias e das narrativas sobre a História, daí sua grande investida contra as universidades e a pesquisa brasileira, com importantes cortes orçamentários. Os cortes também ocorreram na área de Defesa, mesmo com a presença dos militares no governo. Quais as principais ameaças que se apresentam para aqueles que produzem ciência nas áreas relacionadas às questões militares e de Defesa?

A comunidade acadêmica dedicada, hoje, aos temas da Paz, da Defesa, da Estratégia, dos Militares e da Guerra foi invadida por militares. A chamada “comunidade epistêmica da Defesa” não é a mesma de 30 anos atrás. Naquele momento, pretendíamos disputar o monopólio da reflexão sobre temas que estava exclusivamente tratada em mãos dos militares. Hoje, constatamos tristemente que não conseguimos quebrar esse monopólio, mas, em contrapartida, os militares conseguiram não apenas quebrar o nosso monopólio da reflexão científica como conseguiram completar sua estratégia de ocupar o Ministério da Educação, a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] e o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], assim como se apropriar de parte do orçamento destinado à educação e à pesquisa científica.

Ao mesmo tempo em que as universidades públicas estão sendo sucateadas, sem capacidade de renovação geracional por falta de contratação, as academias militares abriram pós-graduações em áreas não específicas para a função militar, como Relações Internacionais, e contaram com verba para abrir numerosos concursos. Qual a lógica dos militares abrirem pós-graduações sendo que há, e muito boas, nas universidades públicas? Será para oferecer títulos para seus oficiais? Não precisariam: o ministro da Educação do governo Temer decretou (sim, assim mesmo) que as ciências militares são uma ciência. Por essa medida, os oficiais que estudam as “ciências militares” (que são ciências dirigidas a melhorar sua performance nas missões precípuas, e não para realizar pesquisa científica) são agraciados com o título de doutor e podem disputar com aqueles que fizeram opção de vida pela ciência. Será que querem reduzir as teorias científicas a “versões”, como fazem com a História?