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Crise nicaraguense e o aprofundamento das incertezas na Defesa e Segurança

Desde meados de abril, a Nicarágua vive uma delicada e complexa situação, confluindo protestos, repressão e um número considerável de mortos e feridos. A intensidade das ações, bem como o rápido desenvolvimento dos fatos, transformou o cenário da nação centro-americana, de modo que manifestações contra determinadas medidas governamentais passaram a um levante nacional demandando a democratização do país e justiça aos afetados pela onda de violência. As mobilizações tiveram início como uma forma de resistência às pretendidas reformas governamentais no sistema de seguridade social e foram recebidas com duras repressões, o que pareceu servir como estopim a uma acumulação de fatores, de negação de direitos e liberdades a descontentamentos socioeconômicos. Nesse quadro, uma geração de jovens se impulsionou a demandas e lutas, mas até o momento sem uma liderança política específica, o que pode representar uma desaprovação a políticos e partidos tradicionais. Para além do fim da violência e do estabelecimento de diálogo entre as várias partes envolvidas, o principal desafio dessa geração é tentar garantir um novo estilo de fazer política, que supere uma histórica cultura política de uso da força como amparo a governos e práticas.
Em meio a tal quadro, sobressai uma questão crucial: a participação de forças policiais e paramilitares como principais agentes da violência desencadeada na Nicarágua, com reflexos em possíveis posicionamentos do Exército enquanto instituição. De acordo com informes de organizações locais e internacionais (essencialmente realizados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA e pelo Centro Nicaraguense de Direitos Humanos), unidades policiais e grupos paramilitares estariam envolvidos em mais de 300 mortes e pelos menos 400 detenções, além de deixar cerca de 2000 feridos. A conjuntura vem sendo condenada extrarregionalmente, com denúncias de graves violações aos direitos humanos e pedidos de contenção às ações das forças de segurança do Estado e dissolução dos agrupamentos armados que atuam a favor do mesmo, tal como apelado pela Anistia Internacional.
Para a reflexão em torno do caso, alguns subsídios e marcos legais podem servir como amparo. A Constituição do país certifica o Presidente da República como comandante superior das Forças Armadas e de Segurança (também presente nas leis específicas da Polícia e do Exército: Lei 872 e Lei 181 respectivamente), o que, em última instância, conduziria à indicação de Daniel Ortega como responsável pela atuação de tais instituições. Aprofundando a questão especificamente ao redor da Polícia, e levando em consideração protocolos internacionais de atuação, podemos considerar que as unidades policiais nicaraguenses não demonstram estarem aptas a situações de manifestações, utilizando a força de maneira desproporcional e com medidas notadamente lesivas, opostas a um padrão de prevenção e controle da ordem quando esta é alterada. Ademais, a existência de grupos parapoliciais (paramilitares se ponderarmos seus equipamentos e modos de agir) configura mais um atenuante na fragilidade institucional do atual governo da Nicarágua, contrariando o texto constitucional que não permite a existência de outros corpos armados além do Exército e Polícia (artigo 95).
Por mais que não tenha atuado no presente âmbito, o Exército está em um plano complexo, porém, deveria se posicionar e reprovar o uso da violência e da repressão nas manifestações. A Constituição nicaraguense prevê o uso em âmbito de segurança interna somente em casos excepcionais, sob ordem do Presidente da República. Se os corpos policiais e paramilitares são o alicerce de contenção do regime Ortega, é improvável que o mesmo convoque o desarmamento de seu braço armado. Ao participarem do conflito, se converteriam em uma força política que não corresponde à sua natureza constitucional (caráter profissional, apartidário, apolítico, obediente e não deliberante). Por outro lado, tem-se o desafio de sobreviver institucionalmente nesse cenário polarizado, sem sofrer influências externas. Estariam em jogo interesses corporativos e a legitimidade perante a sociedade.
Ao não se posicionar, o Exército manteria certa cumplicidade com o cenário, zelando por benefícios com o governo, como aqueles vinculados à previdência social e aposentadorias. Ao contrário, caso desaprove publicamente a repressão governista, provavelmente receberia apoio local e da comunidade internacional; todavia, tal desaprovação não significaria uma intervenção direta no contexto de crise.
A complexidade da situação se acentua progressivamente com o igualmente gradual isolamento do governo de Ortega. A aprovação por parte da OEA da criação de uma comissão especial para integrar as tentativas de diálogo e buscar soluções pacíficas coloca mais um dilema a Ortega. A recusa à ajuda (que parece ser a tendência, uma vez que representantes do governo seguem acusando medidas internacionais como “ingerência” e “intervencionismo”) arriscaria a ampliação do distanciamento nicaraguense, além de fomentar inúmeras sanções de caráter bilateral e de organismos multilaterais (econômicas, diplomáticas e de assistência militar, por exemplo).
Por fim, uma última questão deve ser ponderada: os possíveis “legados” de tal período de crise. Um hipotético fim dos conflitos faria com que o país defrontasse uma instituição policial desprestigiada (e também o Exército, a depender de suas posturas) e a incerteza quanto ao destino dos grupos armados atuantes, que podem direcionar suas ações à delinquência e crimes comuns. Como julgar os crimes cometidos durante as manifestações e como realizar as reconversões necessárias na condução da agenda de Segurança serão desafios inevitáveis à Nicarágua.
O início do recente mandato de Daniel Ortega em 2017, em seus mais de dez anos consecutivos no poder, já trazia objeções pendentes aos setores de Defesa e Segurança, especialmente com o crescente processo de militarização regional. Hoje, os obstáculos são ainda maiores, com o temor e insegurança por parte da população, imagináveis questões migratórias (com fluxos existentes principalmente para a Costa Rica e majoritariamente de maneira ilegal, acentuando problemas nas fronteiras) e complicadas decisões a serem tomadas nos âmbitos policial e castrense. A mencionada histórica cultura política de uso da força e violência como amparo às demandas governamentais e como mediação é instrumento recorrente para a compreensão da realidade nicaraguense, porém, cada vez mais, a superação de tal traço e o desenvolvimento de um novo modo de ação política revela-se uma necessidade premente.
Fred Maciel é doutor em História pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCHS – UNESP/campus Franca). Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar Sociedade e Desenvolvimento, Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR/campus Campo Mourão).
Imagem: Militar dos EUA observa o vulcão San Cristobal, na Nicarágua. Por: Joint Task Force Bravo.

Chile y Ecuador

Históricamente Chile y Ecuador han tenido excelentes relaciones. Desde las económicas, hasta las culturales y educacionales. Fuimos de los primeros países que establecimos mutuamente el reconocimiento de títulos y durante décadas jóvenes chilenos estudiaron en universidades ecuatorianas y ocurría lo mismo con estudiantes ecuatorianos en nuestra universidades. Por cierto, a nivel de Estados, desplegamos una amplia cooperación entre nuestras principales instituciones desde nuestros primeros años de vida independiente.
En todos esos intercambios, como es de comprender, florecieron las relaciones humanas que dieron forma a familias binacionales que estrecharon mas aun los vínculos. En la base de esta histórica amistad estaba la mas amplia coincidencia de nuestras respectivas diplomacias y del rol que ambas naciones podíamos desempeñar en la región. Desde sus primeras operaciones, la Armada de Chile encontró en Guayaquil aguas amistosas. En nuestras escuelas matrices siempre estuvimos acompañados de cadetes ecuatorianos.
Esta historia fecunda de amistad sin embargo padeció de momentos de frialdad. Coincidieron varias circunstancias para ello. Los países de la región vivieron hace poco momentos de ideologización de su proyección internacional. Pese a que históricamente siempre hemos tenido una amplia diversidad de regímenes políticos y de estrategias de desarrollo, se estableció hace algunos años una fuerte diferenciación entre los países del ALBA y su contrapartida, la Alianza del Pacifico, en su versión original. La dirigencia del Ecuador en esos años optó por adherir al ALBA, mientras que Alan García convocaba con éxito al entonces presidente Álvaro Uribe y al Presidente Piñera en su primera administración, a formar una alianza que se presentaba como alternativa no solo al ALBA sino también a los países del Mercosur. Mas allá de las diferencias, predominaron visiones de exclusión y de diferenciación.
Esos momentos además coincidieron con el episodio de las llamadas “cuerdas paralelas”, durante el juicio por el limite marítimo entre Chile y Perú. Los Tratados de 1952 y 1954 involucraban además a Ecuador. En una hábil maniobra la diplomacia peruana le ofreció todo al Ecuador, reconocimiento del paralelo como limite, respeto a la delimitación existente, con tal de que Ecuador no se hiciera parte del juicio.
Este episodio coincidió con difíciles momentos para la diplomacia quiteña: en marzo del 2008 tropas colombianas invadieron su territorio tras un campamento de las FARC allí instalado, dieron de baja a todos los guerrilleros, incluyendo un alto comandante del Secretariado, y además a un ciudadanos ecuatoriano, cuyos restos fueron trasladados a Bogotá.
Ha sido el incidente bilateral mas difícil en Sudamérica en los últimos años, hace exactamente una década. Los países involucrados rompieron relaciones, la región se tensó pero al final se impuso la diplomacia. En esos momentos, el Ecuador también enfrentaba una difícil relación con los EEUU por el cierre de la base aérea de Manta que usaban las FFAA norteamericanas. El episodio de “las cuerdas paralelas” consistió en que pese al desconocimiento de los Tratados vigentes y la demanda entablada por la diplomacia peruana, en un cuestionable giro a partir de marzo de 2010, las autoridades chilenas de entonces desplegaron un acercamiento a Lima. En la hipótesis explicatoria, se trató de privilegiar los aspectos económicos de la relación por sobre las consideraciones de soberanía y estrategia.
En la actualidad, la situación es diferente. El ALBA no vive sus mejores momentos y Ecuador toma distancia de su alineamiento. Y en Chile, si bien aún no hemos hecho un balance autocritico del fracaso de las “cuerdas paralelas” (entre otras cosas, perdimos mas de 22.000 km de presencia oceánica), se impone día a día una visión diferente. La demanda que Bolivia nos presentara bajo el reclamo de “obligación de negociar” desnuda la fragilidad de colocar la defensa de nuestra integridad territorial en manos ajenas. Hoy sería impensable que en Chile se hablase de “encapsular” el tema de la demanda, y que además, Chile condecorase al mandatario paceño y que nuestras autoridades subiesen al altiplano a brindar como si no hubiera pasado nada. Todo eso lo hizo Chile con Alan García en equívocos gestos en aquellos años.
Que Quito se despoje de algunos elementos ideológicos de su proyección internacional, y el que Chile mire la realidad en su total complejidad y no sólo con los ojos de los intereses económicos, restablecen las condiciones para que ambos países retomemos nuestros históricos lazos de amistad.
Ambos países podemos aportar estabilidad al Pacifico Sur, en actitud amistosa a todos, que permita conformar un espacio en esta ribera de la Cuenca del Pacifico de estabilidad y seguridad. Como bien lo entendieron los libertadores hace mas de doscientos años cuando confluyeron en un común esfuerzo por erradicar centros hegemónicos como el colonialismo trataba de preservar.
Gabriel Gaspar fue viceministro de defensa de Chile, embajador en Colombia y embajador plenipotenciario para America Latina.
Imagem: Cordilheira dos Andes Por: Romanceor.

Bombardeios na Síria e a implosão da governança internacional

Em 2011, a repercussão da “Primavera Árabe” rompeu um delicado equilíbrio na Síria. As tensões políticas, até então administradas pelo clã Assad com certa facilidade (já que a hegemonia familiar não se via ameaçada concretamente), explodiram em uma conflagração civil com milhares de grupos envolvidos, segundo os dados de base sobre conflitos da Universidade de Uppsala.
No embalo de revoltas populares, atores externos se voltaram ao conflito em moldes que remetiam à Guerra Fria: financiamento obscuro e treinamento oficioso a vários dos lados envolvidos. No debate público, os dirigentes dos destinos da comunidade internacional foram chamados a responder ativamente à calamidade que se alastrou na região – em especial no tocante à violência impelida pelos combates à população civil (principal questão a sensibilizar governos, organizações internacionais e setores da sociedade civil desde o início dos confrontos).
A proteção de civis em situações de conflito é um tema tradicional do Direito Internacional, mas é graças ao princípio da Responsabilidade de Proteger (popularizado pela sigla em inglês R2P) – inaugurado em 2001, e reformulado em 2005 – que o tópico ganhou sua forma mais sofisticada, a reboque de massacres ocorridos nos anos 1990. Mais do que proibir forças combatentes de dirigir violência à população geral, algo já consolidado no escopo clássico do Direito Humanitário, a R2P almeja vincular a atuação da comunidade internacional para a proteção ativa das populações em situações de violência em larga escala – impedindo a apatia generalizada como verificável no genocídio de Ruanda em 1994.
Assim, a R2P expressa um processo crescente de abalo do principal fundamento do Sistema Internacional contemporâneo (e cristalizado, por exemplo, nas Nações Unidas): o primado da soberania estatal. Contudo, a subversão proposta neste arcabouço não está alijada do atual protagonismo e autoridade do Conselho de Segurança da ONU (CSNU). Segundo a própria doutrina, as intervenções cunhadas na R2P devem ser conduzidas com autorização expressa do órgão e preferencialmente com apoio de organizações regionais pertinentes. Caso contrário, quaisquer ações de uso da força permanecem como atuação ilegal e ilegítima.
No caso sírio, a possibilidade de anuência do CSNU nestes termos parece quase impossível. Uma das razões é que a intervenção na Líbia (2011), que seguiu a justificativa argumentativa e jurídica da R2P, serviu de expediente para que os agentes ocidentais promovessem a derrubada do governo de Muammar Gaddafi – algo além do mandato formal do Conselho, que permitia estritamente o uso da força para a proteção de civis. Tal caso provocou a utilização sistêmica do poder de veto por Rússia e China, paralisando a partir de então qualquer deliberação arrojada sobre a matéria.
Neste sentido, os ataques militares patrocinados por EUA, Reino Unido e França na Síria, em abril de 2018, são fundamentalmente contrários à legalidade internacional e atingem as bases centrais da governança global. Sem a legitimidade multilateral, tais ações não apenas permitem a especulação acerca de interesses escusos das potências ocidentais na região, mas sobretudo enfraquecem as garantias institucionais acerca do uso da força, desestabilizando ainda mais a ordem global. Este caso é emblemático da encruzilhada em que se encontram várias das instituições ancoradas no Direito Internacional, uma vez que expõe as debilidades das atuais estruturas em constranger os interesses autocentrados dos principais Estados, gerando o descrédito por parte dos demais membros do Sistema Internacional.
Operar no terreno da ilegalidade internacional prejudica as décadas de avanços conquistados sobre o uso da força e coloca em risco a já frágil estabilidade política no mundo. Consequentemente, a manutenção da própria ONU, que tem como razão de ser a garantia da paz e que se mantém relevante por mais de 70 anos, é colocada em xeque. A percepção de que uma segunda versão da “coalizão da boa-vontade” (responsável pelos ataques ao Iraque no começo do milênio) seria capaz de superar a inércia da comunidade internacional para Síria é falaciosa. Assim, como no caso iraquiano, a atuação ocidental alheia aos acordos e à legitimação de toda comunidade internacional há de comprometer quaisquer esforços de pacificação e reconstrução de curto e médio prazo, reverberando para a perpetuação da volatilidade política na região.
Duas são as claras alternativas possíveis para que cenários como este não se repitam: a aguardada reforma no Conselho de Segurança ou a reestruturação da permissão unilateral do uso da força. A primeira, se bem executada, tem maiores chances de restaurar o grau de legitimidade da Organização sem que haja o desmonte dos fundamentos da proteção humanitária. Já a segunda apresenta riscos maiores para a relativa estabilidade que o mundo viveu nas últimas sete décadas e pode culminar na completa implosão da governança global, prejudicando os Estados mais frágeis politicamente em prol de interesses que beneficiem apenas as grandes potências e gerem cada vez mais violência para populações vulneráveis.
Daniel Campos de Carvalho é professor adjunto da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Letícia Rizzotti Lima é mestranda pelo PPGRI San Tiago Dantas e pesquisadora do Gedes.

Quinze anos do acidente de Alcântara: a busca pelo veículo lançador de satélite em perspectiva histórica

No dia 22 de agosto de 2018, o acidente que ocorreu durante os testes da terceira tentativa de lançamento de um protótipo do Veículo Lançador de Satélite (VLS), na base de lançamento de Alcântara, no Maranhão, completa 15 anos. A tragédia resultou na morte de 21 profissionais envolvidos com o projeto, na perda de investimentos financeiros, tecnológicos e de recursos humanos e no atraso no desenvolvimento do projeto. O marco dos 15 anos da tragédia é um momento oportuno para se refletir sobre as motivações e o significado da busca pela construção de um VLS nacional.
O objetivo de se produzir meios nacionais de acesso ao espaço se faz presente desde as origens da atividade aeroespacial brasileira, em 1945, com a criação do então Centro Tecnológico da Aeronáutica (CTA). Porém, a institucionalização das atividades e as iniciativas de elaborar um programa aeroespacial ocorreram apenas em 1961, com a criação do Grupo de Organização da Comissão Nacional de Atividades Espaciais. Embora esse período seja caracterizado pelo envolvimento de civis e militares na condução das atividades, foi o Ministério da Aeronáutica que assumiu a liderança no desenvolvimento de foguetes de sondagem, que são considerados fases iniciais para a produção do VLS.
A partir de meados da década de 1960, já no regime autoritário, os maiores esforços do país no setor aeroespacial foram direcionados para o desenvolvimento de capacidade de lançamento de mísseis. Nesse período, destaca-se a inauguração do Centro de Lançamento da Barreira do Inferno, no Rio Grande do Norte, e o lançamento da série de foguetes Sonda, que correspondeu a quatro foguetes de sondagem, entre 1969 e 1984. Foi também um momento de estabelecimento de parcerias internacionais voltadas para a cooperação em ciência e tecnologia, especialmente com as grandes potências. Cabe destacar que, nesse momento, as restrições para as transferências tecnológicas e venda de armamentos ainda não eram tão rígidas. As décadas de 1970 e 1980 corresponderam à ascensão da indústria bélica brasileira, que contou com o mercado externo tanto para as exportações de armamentos quanto para a importação de tecnologia e para o financiamento de investimentos no setor. Nesse sentido, vale contextualizar o fortalecimento do âmbito aeroespacial com o auge da indústria militar nacional.
O fim da década de 1970 e início dos anos 1980 também foi palco de importantes iniciativas que influenciaram direta e indiretamente o objetivo da construção do VLS. Em 1979, foi lançada a Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), primeiro programa aeroespacial completo que buscava desenvolver os três elementos básicos da atividade aeroespacial: uma base de lançamento, um veículo lançador e quatro satélites. Como desdobramento da MECB, em 1983 foi construído o Centro de Lançamento de Alcântara, porém os avanços nos demais objetivos do programa foram prejudicados devido, por um lado, à crise econômica pela qual passou o país na década de 1980 e, por outro, pelo fortalecimento das restrições internacionais à transferência tecnológica, seja por ações unilaterais, principalmente pelos EUA, seja por ações multilaterais, por meio de regimes de não-proliferação, como o Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (MTCR, em inglês) criado em 1987. Esses fatores afetaram diretamente o objetivo de desenvolvimento do VLS, tanto pelo progressivo corte orçamentário quanto pelas dificuldades de obtenção das tecnologias necessárias para sua construção.
Nesse cenário de restrições políticas e orçamentárias, a alternativa adotada para dar continuidade aos projetos da MECB foi o estabelecimento de projetos de cooperação internacionais, dos quais se destaca a parceria com a China, assinada em 1988, para a produção de satélites. O plano inicial era que os satélites fossem lançados pelo VLS brasileiro, porém o atraso do projeto levou à decisão de lançar os equipamentos a partir de um veículo chinês, o que, embora contrariasse as expectativas da Força Aérea Brasileira, foi aceito, desde que a contratação do serviço chinês não prejudicasse o envio de recursos aos projetos brasileiros.
Contudo, o incipiente repasse de recursos orçamentários foi um dos elementos que mais dificultou os avanços no VLS, especialmente ao longo da década de 1990, quando os projetos do setor militar perderam lugar na agenda política do país, agravando a continuidade dos projetos, a aquisição de tecnologia e a formação de recursos humanos. Apesar desse cenário, a partir de 1993, as iniciativas na área receberam maior impulso. Nesse ano, ocorreu o primeiro voo de qualificação do foguete de sondagem VS-40, cujo propósito era testar o que poderia se tornar o quarto estágio do veículo lançador. Em 1997 e 1999, ocorreram testes de dois protótipos do VLS que, apesar de não terem obtido sucesso no lançamento, foram importantes para testar a tecnologia já desenvolvida.
A missão de se produzir um VLS nacional se insere na busca brasileira de obter autonomia tecnológica no setor. O domínio de todas as etapas da atividade aeroespacial e seus benefícios político-econômicos depende, em grande medida, da capacidade do país de não depender de serviços estrangeiros para levar satélites ao espaço e gerir as informações produzidas. No caso brasileiro, a construção do VLS enfrenta, além das dificuldades na transferência de tecnologia, constantes interrupções nos projetos desenvolvidos e as dificuldades de articular a importância do setor aeroespacial com os projetos políticos implementados por cada governo, o que envolve o aspecto orçamentário, político e social do âmbito da C&T para o país. No que tange ao VLS, o descaso com o histórico do projeto, – que tem mais de 40 anos de investimentos financeiros, políticos e de recursos humanos – foi crucial no resultado catastrófico do teste do terceiro protótipo do VLS, há 15 anos.
Adriane Gomes Fernandes de Almeida é mestranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do Gedes.
Imagem: Alcântara VLS accident. Por: Rose Brasil / Agência Brasil.

Os 50 anos do TNP: onde chegamos e para onde vamos?

Em julho de 2018, comemoram-se os 50 anos da conclusão e abertura para assinaturas do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), que entrou em vigor em 1970. Espinha dorsal do regime de não-proliferação nuclear, o tratado apresenta um tripé: não-proliferação de armas nucleares, desarmamento nuclear e cooperação para os usos pacíficos da energia nuclear. Esse tripé reflete o quid-pro-quo entre os países que detinham armamentos nucleares (em inglês, nuclear weapons states, ou NWS) e os países que não possuíam essa capacidade (em inglês, non-nuclear weapons states, ou NNWS). De um lado, os NNWS renunciariam à ambição de adquirirem armamentos nucleares, recebendo em troca acesso facilitado à tecnologia nuclear para fins civis. De outro lado, os NWS se comprometiam a adotar medidas sistemáticas para a promoção do desarmamento e a respeitar o direito inalienável de todos os Estados à tecnologia nuclear para usos pacíficos.
De fato, esse arranjo consolidado no TNP foi resultado de duas décadas de reflexão sobre as possibilidades de controle da tecnologia nuclear, e sua formulação evidencia os desafios para a incorporação de perspectivas divergentes e conflitantes sobre as políticas a serem adotadas. O embate entre diferentes posições resultou na adoção de uma linguagem por vezes vaga ou ambígua, que não contrariasse abertamente os interesses das partes mais vocais na negociação. Assim, não foram estabelecidos critérios precisos para o desarmamento, e nota-se uma permissão tácita para a alocação de arsenais nucleares nos territórios de NNWS, contanto que esses arsenais pertencessem oficialmente às forças de NWS.
Desde 1970, o TNP demonstrou fragilidades, mas também apresentou importantes avanços. É notável, em primeiro lugar, a amplitude da adesão internacional ao tratado, a qual atingiu abrangência quase universal na década de 1990. Em 1992, França e China, que não haviam aderido ao TNP quando de sua formulação, passaram a compor o grupo dos NWS. Além disso, países tradicionalmente críticos do arranjo discriminatório estabelecido pelo tratado – ou seja, da diferenciação entre os países que desenvolveram armamento nuclear antes de 1968 e os que não estavam nessa condição – aderiram ao sistema, incluindo o Brasil e a Argentina. Não obstante esse sucesso, e apesar de o TNP ter mais Estados-parte do que qualquer outro mecanismo internacional controle de armamentos, os Estados que permanecem ausentes são justamente aqueles que optaram por adquirir armamentos nucleares à revelia dos termos acordados em 1968: Israel, Índia, Paquistão (que nunca assinaram o TNP) e Coreia do Norte (que assinou o TNP, mas denunciou o tratado em 2003).
Em segundo lugar, os mecanismos de salvaguarda, que envolvem processos de monitoramento e verificação, são um aspecto que repetidamente desperta debates internacionais. Esses processos, conduzidos pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e sistematizados em documento da própria AIEA (INFCIRC/153) em 1971, tinham como foco a fiscalização de materiais e instalações declarados pelos países signatários do tratado, e não a busca por materiais e instalações não declarados. A fragilidade desse modelo foi evidenciada no início da década de 1990, quando foi descoberto o programa nuclear clandestino do Iraque, após o fim da Guerra do Golfo.
Em decorrência disso, a década de 1990 trouxe novos esforços de reformulação do regime, com as deliberações acerca de um Protocolo Adicional (INFCIRC/540), que concedesse maior liberdade de ação à Agência. Assim, foram estabelecidos mecanismos para salvaguardas integradas, que garantissem aos Estados-parte do TNP que as declarações feitas pelos demais países eram não apenas corretas, mas também completas. Esses mecanismos, no entanto, só se aplicam aos países que aderiram ao Protocolo Adicional, ato que é inteiramente voluntário.
Em terceiro lugar, o que talvez seja o aspecto mais polêmico do TNP e de sua implementação se refere aos esforços dos NNWS para a promoção do desarmamento. Após 1970, as potências nucleares continuaram ampliando seus arsenais até o fim da década de 1980, à revelia do compromisso assumido através do tratado. Foi apenas com o fim da Guerra Fria e as mudanças no contexto geoestratégico que os esforços de desarmamento se tornaram uma realidade. De fato, esse ponto é sistematicamente fonte de discórdia entre os NWS e os NNWS, sendo que estes reivindicam ainda a concretização do Tratado Compreensivo de Proibição de Testes Nucleares (CTBT) como uma demonstração adicional do comprometimento dos NWS para com o desarmamento.
Além disso, os NNWS demandam garantias de segurança por parte das potências nucleares: garantias negativas, de que os armamentos nucleares não serão usados contra países que não têm capacidade nuclear; e garantias positivas, de que as potências nucleares estenderão sua proteção aos países que abrirão mão dessa capacidade. Não é surpreendente que os NWS relutem em assumir tais compromissos.
De fato, nas Conferências de Revisão do TNP realizadas a cada cinco anos, o distanciamento entre os NWS e os NNWS tem se acentuado, como evidenciado pelo esforço destes em promover a negociação de um Tratado de Proibição de Armas Nucleares, repudiado pelas potências nucleares. Assim, os últimos 50 anos viram importantes avanços, mas também mantiveram pontos de tensão pendentes. Em 2020, será realizada mais uma Conferência de Revisão do TNP, e muitas das mesmas questões serão levantadas e, provavelmente, permanecerão irresolutas.
Não há respostas simples para essas questões: sistemas de salvaguardas, desarmamento, garantias de segurança, Estados que rejeitam o regime. Ademais, essas questões tendem a se agravar na medida em que se complicam as relações políticas entre tradicionais aliados, como os Estados Unidos e os países europeus, e entre tradicionais rivais, como os Estados Unidos, a Rússia e a China. Mas a lição do TNP deve ser observada atentamente pelos líderes de Estado nesses tempos conturbados: a diplomacia evitou que o problema nuclear se tornasse uma catástrofe nos últimos 50 anos, e a diplomacia é ainda a melhor resposta para os desafios nucleares que virão.
Luiza Elena Januário é doutoranda pelo PPGRI San Tiago Dantas, professora da UNIP e pesquisadora do Gedes.
Raquel Gontijo é doutora pelo PPGRI San Tiago Dantas, professora da PUC- MG e pesquisadora do Gedes.
Imagem: Nuclear Wetlands. Por: James Marvin Phelps.

Setenta anos de operações de paz da ONU: balanço histórico e atuais desafios

Desde o estabelecimento do Organismo das Nações Unidas para a Vigilância da Trégua (ONUVT) em 1948 – com o objetivo de monitorar situações de cessar-fogo e armistícios no Oriente Médio sem o emprego da força –, outras setenta operações de paz foram instauradas sob a égide da Organização das Nações Unidas (ONU) até hoje. Considerando o aniversário de setenta anos do organismo em 2018, é oportuno relembrar o contexto de surgimento dessas operações, traçar um balanço histórico, bem como balizar seus avanços e atuais desafios.
Tendo em vista o contexto de polarização entre Estados Unidos e a antiga União Soviética durante a Guerra Fria, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) não encontrava o consenso necessário para acionar o mecanismo de segurança coletiva – idealizado enquanto principal instrumento para a manutenção da paz e segurança internacional. Foi justamente sob essa conjuntura que surgiram as operações de paz, mecanismo alternativo que buscava evitar a simples inação da recém-criada organização perante conflitos interestatais.
Em texto intitulado “A evolução das operações de manutenção da paz das Nações Unidas”, Marrack Goulding apresentou uma das definições mais abrangentes sobre o que é uma operação de paz. Segundo o autor, trata-se daquelas operações de campo estabelecidas com o consenso das partes envolvidas, com o objetivo de auxiliar no controle e resolução de conflitos, agindo de modo imparcial em relação a essas partes em litígio e empregando a força o mínimo necessário.
Entretanto, apesar de todas atenderem em certa medida a essa definição mais ampla, o contexto no qual se inserem também influencia as atribuições de cada operação de paz. Nesse sentido, para fins didáticos e consciente de algumas exceções, é possível dividi-las em três fases, desconsiderando as missões políticas ou escritórios de bom ofício, por estarem subordinados ao Departamento de Assuntos Políticos da ONU. A primeira fase abarca aquelas operações estabelecidas durante a Guerra Fria, caracterizadas por efetivos essencialmente militares e atividades quase restritas à atuação nos conflitos enquanto terceira parte observadora, apenas auxiliando na prevenção do retorno das hostilidades e no monitoramento de cessar-fogo.
A segunda fase engloba o aumento exponencial no número de operações de paz estabelecidas pela ONU ao longo da década de 1990, marcada pelo fim da Guerra Fria e crescente instabilidade nos territórios recém-independentes. Entretanto, esse aumento – 38 operações de paz estabelecidas em apenas dez anos – foi acompanhado por mudanças no panorama da segurança internacional, demandando um debate mais profundo sobre esse instrumento que deixava de ser meramente extra-regular para figurar enquanto principal mecanismo de gerenciamento de conflitos da ONU.
Ao contrário das missões estabelecidas ao longo da Guerra Fria, mais homogêneas em relação aos efetivos empregados e às atividades desenvolvidas, além de usualmente limitadas à facilitação do diálogo entre as partes beligerantes sem imposição de soluções políticas, as operações de paz na década de 1990 passaram a englobar tarefas adicionais como: assistência humanitária; monitoramento de eleições; auxílio ao governo local em atividades administrativas; entre outras. É nesse contexto que tem início o processo de reforma das operações de paz, com a criação do Departamento de Operações de Paz (DPKO, na sigla em inglês) e a elaboração de diversos documentos que buscavam debater os principais obstáculos e estabelecer diretrizes.
Por fim, podemos compreender uma terceira fase das operações de paz seguindo desde 2000 até os dias atuais. Estas diferenciam-se por serem influenciadas pelas recomendações desses documentos, em especial o Relatório Brahimi, que abrangia desde a concepção e planejamento até a execução dessas operações. Atualmente, quinze operações de paz das Nações Unidas seguem em curso, sendo que apenas uma não está localizada no continente africano ou na região do Oriente Médio – a Missão das Nações Unidas de Apoio à Justiça no Haiti (MINUJUSTH). Isso demonstra que, apesar de os países contribuintes terem se diversificado com o tempo, segue concentrada a localização dessas operações de paz.
Além disso, entre os atuais desafios, duas questões ganham destaque. A primeira delas envolve o emprego da força, muitas vezes compreendido enquanto solução lógica, mas que esconde nuances e demanda exames mais profundos. Recentemente foi divulgado um relatório sobre o assunto, elaborado sob coordenação do general brasileiro Carlos Alberto dos Santos Cruz – que comandou a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH) entre 2007 e 2009, e a Missão da Organização das Nações Unidas para a Estabilização da República Democrático do Congo (MONUSCO) entre 2013 e 2015. Recomendando mudanças em relação ao que se intitulou “uma postura excessivamente defensiva” das forças de paz da ONU, o documento tem como objetivo identificar por que tantos integrantes de forças de paz foram mortos nos últimos anos e o que deveria ser feito para reduzir esse número.
Entretanto, apesar de considerar aspectos importantes como o preparo e as condições para tal emprego, a discussão permanece concentrada nas mortes de militares e civis das próprias forças de paz da ONU. Ainda que essa não seja um uma questão menor, não pode ser compreendida como quadro completo de uma discussão que também deveria priorizar a população afetada por essa violência. Ao trazer enquanto subtítulo do relatório a frase “precisamos mudar a maneira como estamos desenvolvendo as atividades” (tradução livre), os debates marginalizam a maneira como essas atividades afetam a população que vivencia cotidianamente esses cenários de instabilidade.
Ainda nessa linha, a segunda questão que permanece enquanto desafio atual das operações de paz diz respeito à baixa participação da população local no processo de recondução da paz, o que acaba perpetuando sistemas estratificados e excludentes. Especialmente no que se refere à marginalização de jovens e mulheres no debate político e na elaboração de novas dinâmicas, amplamente compreendidos enquanto grupos recebedores de auxílio apenas, quase desprovidos de capacidade de agência. Em suma, apesar de as lacunas observadas não significarem um completo fracasso das operações de paz, elas deixam claro que tal mecanismo não representa um recurso irrevogavelmente benéfico ou, tampouco, livre de interesses, permanecendo fundamental uma análise mais detida e crítica sobre seus preceitos e efeitos.
Kimberly Alves Digolin é mestre em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas, pesquisadora do Gedes e professora da UNIP.

A crescente importância da China para a América Latina: um novo desafio à Doutrina Monroe

Nos primórdios de sua República, os Estados Unidos fizeram uma escolha sobre sua relação com a América Latina […] A doutrina […] [Monroe] afirmou a autoridade para intervir e opor a influência das potências europeias na América Latina […] Hoje, no entanto, fizemos uma escolha diferente. A Era da Doutrina Monroe acabou (KERRY, 2013).
Acho que nos esquecemos da importância da Doutrina Monroe e do que significou para esse hemisfério em termos de manutenção de valores compartilhados. Então, acho que é tão relevante hoje quanto no dia em que foi escrita (TILLERSON, 2018).

As duas passagens acima, que aparentemente se contradizem, são excertos de discursos de Secretários de Estado dos EUA: respectivamente John Kerry, em 2013, e Rex Tillerson, em 2018, durante as administrações de Barack Obama e Donald Trump. Ambas se referem à mesma temática: a Doutrina Monroe, declarada em 1823 pelo ex-presidente que lhe deu o nome. A doutrina – que se tornou um dos paradigmas de Política Exterior dos EUA para a região – visava prevenir a recolonização, limitar a presença europeia e expandir a influência estadunidense na América Latina. Embora, em meados do século XIX, os EUA não tivessem capacidades suficientes para tanto, ao longo das décadas seguintes essa ambição virou realidade e o Hemisfério Ocidental tornou-se área de influência da referida potência.
A influência dos EUA, contudo, não foi exercida sem desafios. Como destacado por Nicholas Spykman (1942), até a Segunda Guerra Mundial, o principal obstáculo era europeu. Durante o conflito mundial, a Alemanha e a Itália buscaram exercer influência especialmente sobre a Argentina, dificultando a articulação hemisférica. Com o fim do conflito mundial e o início da Guerra Fria, a área foi reconhecida como parte do bloco Ocidental sob liderança dos EUA. Mesmo assim, a Revolução Cubana trouxe receios de que a situação poderia ser ao menos parcialmente revertida, caso houvesse outras revoluções e articulações com a URSS.
No período mais recente, contudo, o maior desafio parece decorrer da presença chinesa. Esta é importante em termos estratégicos, ainda que seja principalmente econômica e que o gigante asiático busque apaziguar possíveis reações dos EUA, enfatizando a noção de ganhos mútuos para as três partes. Atualmente, a China é o principal parceiro comercial de Argentina, Brasil, Chile e Peru, e os empréstimos do Banco de Desenvolvimento Chinês e do Banco de Importação-Exportação Chinês são bastante significativos. As viagens presidenciais latino-americanas para Pequim tornaram-se rotineiras, assim como a articulação da potência asiática com iniciativas regionais, a exemplo da realização das Cúpulas China-CELAC. Além disso, analistas estadunidenses usualmente destacam que os investimentos chineses possibilitaram financiamento aos governos de vertente bolivariana e antiamericana, sustentando-os no poder.
Assim, a ênfase econômica não torna a questão estratégica menos relevante. No caso dos EUA, a expansão comercial e financeira precedeu a militar. Antes das duas guerras mundiais, os principais atores extra regionais no âmbito militar eram os europeus: as missões de treinamento para as Forças Armadas sul-americanas vinham especialmente da França e da Alemanha (ROUQUIE, 1984). Já as principais importações de armamentos eram provenientes das empresas Schneider-Creusot, francesa, Krupp, alemã, e, em menor escala, a Vickers-Amstrong, inglesa (BANDEIRA, 2010). Foi apenas após 1945 que os EUA conquistaram maior influência sobre as Forças Armadas da região.
Contemporaneamente, apesar das modestas relações militares sino-latino-americanas, os chineses demonstram interesse em aumentar sua atuação no campo. O mais recente Livro Branco da China para a América Latina tem como tema central questões econômicas e de desenvolvimento, mas também afirma que a China irá promover intercâmbios e cooperação política e militar em alto nível. Nos últimos anos, a China participou de exercícios militares com Brasil, Chile, Argentina e Peru. Também cresceram os intercâmbios acadêmicos de oficiais militares com a Venezuela, Bolívia, Equador, Brasil, Chile e México. O aumento do contato entre os militares implica em conhecimento mútuo e reconhecimento chinês da logística e infraestrutura das Forças Armadas da região. A exportação de armas chinesas para a América Latina, que era insignificante nos anos 1990, ganhou algum ímpeto a partir de 2005, com exportações para Bolívia e Venezuela e a prospecção de vendas para a Argentina. Assim, gradualmente, a China torna-se uma opção de mercado.
Além disso, a cooperação em temas estratégicos, como o espacial, é significativa. Nesse campo, as relações entre Brasil e China já são tradicionais: o primeiro satélite conjunto binacional foi lançado em 1999, por meio do Programa CBERS (Satélite Sino‐Brasileiro de Recursos Terrestres). Ademais, em 2015, a China acordou com a Argentina a construção de uma estação espacial para a observação da Terra no país austral.
Como é de se esperar, a movimentação chinesa na América Latina não passa despercebida por Washington. Desde 2010, os generais responsáveis pelo Comando Sul destacam o cenário em seus discursos anuais no Congresso. Em 2010, o general Douglas F. Fraser declarou que o aprofundamento das conexões entre China e América Latina, por meio de investimentos de longo prazo e do aumento dos contatos entre militares, impacta no ambiente estratégico regional. Em 2013, John. F. Kelly, que então liderava o Comando Sul, afirmou que a redução do engajamento estadunidense resultaria em aumento da presença chinesa, russa ou iraniana na região, considerando que tais países buscavam aprofundar seus laços políticos, econômicos e militares.
Cabe ressaltar que a expansão da influência chinesa não é uma dinâmica linear: projetos acordados podem ser revertidos e as relações com os EUA permanecem de forte relevância para a região. Como exemplo, pode-se apontar que o acordo de 2015 entre a China e a Argentina para a construção de centrais de energia nuclear não se concretizará no curto prazo. Pouco tempo após a assinatura de um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o presidente Maurício Macri declarou que as usinas não serão construídas em razão da situação fiscal que o país atravessa.
Nesse mesmo sentido, as mudanças políticas que ocorreram na América do Sul nos últimos anos são uma vitória para Washington, uma vez que ascenderam ao poder governos de vertente liberal, mais próximos da ortodoxia econômica e da ordem internacional liderada pelos Estados Unidos. Outro exemplo da força regional da potência americana refere-se à importância do dólar, como fica claro pela volatilidade financeira gerada na Argentina após o aumento do preço da moeda americana.
Assim, apesar de ter sua hegemonia contestada por outros atores globais, os EUA permanecem como força de especial relevância para a região. Ao contrário do afirmado pelo Secretário John Kerry, a doutrina Monroe não acabou e os EUA continuam atuando para preservar sua área de influência no Hemisfério Ocidental. Como ressaltado por Tillerson, a doutrina ainda é relevante; nos parece que principalmente pela existência de um competidor de peso: a China.
A presença chinesa na região é um fator relativamente recente do ponto de vista histórico: trata-se, possivelmente, da principal mudança em relação ao século XX, não apenas em termos econômicos e financeiros, mas também geopolíticos. Significa que a América Latina volta a ser espaço de competição por influência entre as grandes potências – embora de forma discreta e com importância reduzida em comparação com outras regiões, como a Ásia-Pacífico. A competição ocorre especialmente do ponto de vista político-econômico, com desdobramentos nas relações entre as Forças Armadas, porém sem a hostilidade explícita e arriscada que ocorre, por exemplo, no Mar do Sul da China. Resta-nos refletir sobre o impacto da conjuntura sobre a América Latina e sobre quais as melhores estratégias para lidar com o contexto atual, que possam ampliar as margens nacionais de atuação e as possibilidades de autonomia no plano internacional.
Lívia Peres Milani é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas e pesquisadora do Gedes.
Referências:
BANDEIRA, L. A. M. Brasil-Estados Unidos: a rivalidade emergente (1950-1988). 1a edição ed. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1989.
KERRY, J. Remarks on U.S. Policy in the Western Hemisphere. Organization of American States.Washington, DC: november 18, 2013. Disponível em: https://2009-2017.state.gov/secretary/remarks/2013/11/217680.htm
ROUQUIÉ, A. O Estado Militar na América Latina. 1. ed. Santos: Editora Alfa Omega, 1984.
SPYKMAN, N. J. America’s Strategy in World Politics: The United States and the Balance of Power. New York: Institute of International Studies Yale University. Harcourt, Brace and Company, 1942.
TILLERSON, R. U.S. Engagement in the Western Hemisphere. University of Texas at Austin: february 1, 2018. Disponível em: https://www.state.gov/secretary/20172018tillerson/remarks/2018/02/277840.htm

Um Estado “fora da lei”: o alheamento estadunidense da governança de direitos humanos

As notícias das crianças imigrantes separadas dos pais e enjauladas em centros de detenção nos Estados Unidos foram reproduzidas ao redor do globo gerando reações de indignação. É a política de “tolerância zero” instaurada pelo governo contra as pessoas que atravessaram as fronteiras, tratando-as como criminosos, que justifica esta hedionda prática. Uma vez que os infantes não podem ser incorporados às prisões regulares, a saída administrativa encontrada foi encarcerá-los em campos próprios. A prática da Administração Trump escancarou um perverso lado do país: a arbitrariedade do Estado norte-americano ao incorporar e, em geral, renegar, normas essenciais de direitos humanos.
A hipocrisia estadunidense neste campo não é recente, e é bem conhecida por especialistas e articulistas da opinião pública: seja na manutenção da base de Guantánamo ou no banimento de vistos para muçulmanos, as ações do Estado no plano interno e externo desafiam seu discurso recorrente sobre a missão em promover os direitos humanos pelo mundo, e mais, atingem diretamente os vetores normativos da governança global para proteção dos indivíduos.
Um exemplo patente deste comportamento é o fato do país ter sido o único em todo o planeta a não internalizar a Convenção sobre os Direitos das Crianças (1989), impedindo a responsabilização do Estado a partir deste expediente internacional pelo cometimento das violações na fronteira. Esta relação tensionada não é exclusividade da proteção infantil. Apesar da eloquente retórica dos Estados Unidos que colocam a si mesmos como missionários da promoção dos direitos humanos no mundo, o país é pouco afeito às vinculações internacionais do tema. Dentre a gama de tratados para as variadas vertentes de proteção, são ratificados no ordenamento interno dos norte-americanos apenas cinco, o que os assenta nos piores estratos do globo sobre o tema, unindo-se, por exemplo, a Arábia Saudita, Israel, Sudão do Sul e Haiti.
Em ato contínuo à divulgação da crise fronteiriça, os Estados Unidos se retiraram do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. O discurso da Representante Permanente na Organização das Nações Unidas (ONU), Nikki Haley, que oficializou a derrogação, expressou a paradoxal relação do país com este setor de princípios internacionais: usou da caracterização do órgão como hipócrita, por ter em sua composição países notadamente violadores de dimensões protetivas, e referenciou uma vez mais a cruzada americana sobre direitos humanos. Neste momento crítico, o rompimento cristaliza a debandada do país de aparatos normativos e instituições cruciais das últimas décadas – como, para além do próprio Conselho, a denúncia ao Acordo de Paris sobre o clima e ao tratado sobre a política nuclear iraniana -, isolando-o cada vez mais no plano global e relembrando o completo desprezo dos seus dirigentes pela dignidade das pessoas.
A postura desafiadora dos postulados civilizatórios do sistema internacional – isto é, de parâmetros mínimos de amparo às pessoas acordados na governança como as próprias garantias sobre a proteção infantil – não é exclusividade do atual governo, o antecessor republicano George W. Bush também foi profícuo no rompimento com alicerces da estrutura do Sistema ONU gravemente exemplificado pelas invasões no Oriente Médio na inauguração da “Guerra ao Terror”. O uso desta retórica subversiva dos significados protetivos à dignidade humana escancara as fraturas de legitimidade, dotada de acusações de imperialismo ocidental, que tem o regime internacional de direitos humanos.
E nem só de republicanos vive a falência moral da governança; o envolvimento ilegal do democrata Bill Clinton no conflito da então Iugoslávia se lastreava na ideia de que a “superpotência sobrevivente” deveria prezar pela expansão de governos democráticos como registro da vitória liberal. Já o simpático presidente Barack Obama usou dos respaldos multilaterais para arguir a licitude do questionável uso de drones e demais instrumentos contemporâneos de vigilância ao redor do globo, relembrando toda a Comunidade Internacional do descompasso entre seus discursos e a realidade concreta da atuação americana (MODIRZADEH, 2014).
Contudo, sob o comando de Donald Trump, a problemática arenga estadunidense desvalorizadora da evolução do regime multilateral dos direitos humanos se faz mais voraz. O tom furioso dos porta-vozes e do presidente sobre as instituições internacionais e suas fundações fragiliza ainda mais a posição do país de fiador da ordem internacional – comportamento este que é adicionado à implosão das prerrogativas sustentadoras da governança global construída por esta potência ao longo do século XX. A gravidade exponencial disto acontece porque não se trata de um desafiante contestador pondo em xeque a legitimidade dos regimes, mas sim de um protagonista que esteia esta configuração como expressão do seu poderio decisório dos rumos da estrutura internacional. Se antes os governos tentavam clamar pela legalidade dos seus atos contraditórios, agora seus representantes professam claramente sua repulsa pelas instâncias multilaterais.
O risco enfrentado por esta seara de concertação neste momento é que as balizas mínimas de proteção sejam desmoronadas por déficit de legitimidade e inação institucional, agudizando fortemente a já problemática situação dos direitos humanos no globo, uma vez que seu avalista mais evidente (ainda que hipócrita) passou a desacreditá-lo diretamente. As dificuldades do regime não devem levá-lo à irrelevância, nem se pode descartar a importante evolução neste tópico que marcou o papel contemporâneo do Direito Internacional e suas entidades. Foi exatamente a ideia relativa aos “direitos humanos” que viajou no tempo e no espaço como força motriz para fazer avançar o ímpeto internacional de proteger vidas e conceder direitos angulares; abrir mão dela é retroagir para um estágio catastrófico da História.
Em um momento em que se identifica a recusa em reconhecer direitos a állos, é prudente recordar as palavras de Brecht em Intertexto para evitar seu angustiante prognóstico: “agora estão me levando, mas já é tarde; como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo”. Assim, é grande a frequência de práticas que violam direitos e liberdades fundamentais de indivíduos ao redor do globo. Da negativa ao acolhimento de refugiados por Estados europeus e pela administração ianque às acusações de práticas sumárias pelas forças policiais brasileiras, perpassando os conflitos contemporâneos que tolhem vidas e direitos, revela-se necessário aprofundar os instrumentos de proteção internacional aos indivíduos, sob a inquietante perspectiva de possibilitar um viver emancipatório a todos.
Por isso, a insistência estadunidense em se tornar cada vez mais um “fora da lei” internacional, atentando seriamente à dignidade humana dentro e fora de suas fronteiras, acrescenta ao temor quanto ao futuro da proteção desta dimensão fundamental da constituição contemporânea. O adágio arendtiano sobre a ruptura da Modernidade e sua crise política (ARENDT, 1979) parece se reafirmar na retirada do país do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas constatando um agravamento do diagnóstico de que a potência instrumentaliza o discurso favorável aos direitos fundamentais como alternativa para justificar sua atuação no cenário internacional.
Letícia Rizzotti Lima e Leonardo Dias de Paula são mestrandos em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas e pesquisadores do Gedes.
Imagem: Sala do Conselho dos Direitos Humanos da ONU. Por: Ludovic Courtès.
Referências:
ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva. 1979.
MODIRZADEH, Naz K. Folk International Law: 9/11 Lawyering and the Transformation of the Law of Armed Conflict to Human Rights Policy and Human Rights Law to War Governance. Harv. Nat’l Sec. J., v. 5, p. 225, 2014.

Sobre a importância de compreender o papel das mulheres nos contextos de violência

O governo federal, através do Ministério da Justiça e Segurança Pública, lançou recentemente a segunda edição do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN Mulheres. Com o objetivo de atualizar os dados apresentados na primeira edição de 2014, o INFOPEN Mulheres lançado este ano traz informações e estatísticas referentes à situação do sistema prisional feminino até o ano de 2016.
Para além dos importantes dados sobre a infraestrutura e acesso a direitos básicos, como saúde e educação, dos presídios brasileiros que recebem mulheres infratoras (sejam unidades prisionais femininas ou mistas – aquelas em que há alas para homens e mulheres), o levantamento ressalta o crescente aumento de mulheres encarceradas no país. De 2000 a 2016, a taxa de aprisionamento de mulheres no Brasil aumentou 455%, um valor alarmante quando observado em comparação com os três primeiros países com maior número absoluto de mulheres encarceradas: Estados Unidos (18%), China (105%) e Rússia (-2%) (DEPARTAMENTO PENITENCIARIO NACIONAL, 2018, p. 14).
Os dados apresentados também são desagregados por estados da federação. São Paulo, Minas Gerais e Paraná aparecem no topo da lista com o maior número absoluto de mulheres encarceradas. Entretanto, quando realizada a proporção com a taxa demográfica dos estados, o Mato Grosso do Sul (MS) salta para a primeira posição como o estado que mais encarcera mulheres no país, com uma média de 113 mulheres presas para cada grupo de 100 mil (DEPARTAMENTO PENITENCIARIO NACIONAL, 2018, p. 18).
O tipo de penalidade que mais leva as mulheres para as prisões no Mato Grosso do Sul (77% dos casos) segue a tendência nacional: o envolvimento com crimes relacionados ao tráfico de drogas. No Brasil, 62% das mulheres encarceradas são por delitos de tráfico de drogas, sendo que o segundo tipo penal mais incidente, o crime por roubo, abarca 11% da população prisional feminina (DEPARTAMENTO PENITENCIARIO NACIONAL, 2018, p. 53). Há, portanto, uma grande diferença da taxa de mulheres encarceradas por envolvimento com o tráfico de drogas em relação aos demais tipos penais.

O aumento do número de mulheres encarceradas não é uma peculiaridade do Brasil. Na América Latina, a população carcerária feminina aumentou 51,6% entre 2000 e 2015 (em comparação com um aumento de 20% no caso dos homens) (YOUNGERS; PIERIS, 2015). O envolvimento com tráfico também aparece como principal motivo para o encarceramento das mulheres na maioria dos países. Na Argentina, Costa Rica e Peru a porcentagem passa dos 60% (YOUNGERS; PIERIS, 2015).
O aumento do encarceramento feminino e a preponderância do tráfico de drogas como o principal crime cometido ressaltam a importância de discutir o envolvimento cada vez maior de mulheres em contextos de violência e na criminalidade. Dar luz para os papeis que as mulheres exercem em situações de conflito e criminalidade é um dos esforços das discussões feministas na área de Relações Internacionais (TICKNER, 2001; SJOBERG, VIA, 2010). As análises levantam discussões que visam romper com certos estereótipos que designam a feminilidade como inerentemente pacífica (MOURA, 2008).
Há uma percepção socialmente construída de que as mulheres não praticam violência. E quando o fazem, estão indo contra ao entendimento ideal do que venha a ser mulher – uma pessoa frágil, sentimental e propensa aos cuidados maternos (SJOBERG; GENTRY, 2007). Assim, para justificar os casos em que mulheres cometem atos ilícitos, como atentados terroristas e o envolvimento com o tráfico internacional de drogas, muitas análises apontam para uma possível perturbação ou deficiência biológica nessas mulheres, as quais as impedem de exercerem sua feminilidade em total plenitude. Outra justificativa também utilizada é a que relaciona o ato praticado pela mulher aos laços afetivos que esta possui com seu companheiro e filhos (SJOBERG; GENTRY, 2007). As mulheres utilizariam da violência para atender um pedido de seus companheiros, para proteger suas famílias ou vingar-se da morte de seus entes familiares, seguindo, portanto, um comportamento de mulher/mãe protetora e preocupada com as questões da vida privada.
Nessas duas linhas de explicação recorrentes podemos observar um duplo movimento: de condenação da feminilidade dessas mulheres, uma vez que rompem com o papel que a sociedade espera delas, e de negação da agência das mulheres, ou seja, a iniciativa de praticar o ato ilícito não necessariamente parte delas, mas sim é uma demanda que vem de outros atores (principalmente homens próximos à elas) ou é diretamente relacionado a eles (SJOBERG; GENTRY, 2007). Às mulheres não é computada a possibilidade de praticar a violência por interesses econômicos e políticos, crenças ideológicas ou apenas o desejo pela emoção que o mundo da criminalidade poderia proporcioná-la.
Apesar da maioria das mulheres exercerem a atividade de “mula” no tráfico de drogas – aquelas que levam as drogas em seus corpos e bagagens – há aquelas que alcançam posições de liderança nas organizações criminosas. Howard Campbell (2008) faz uma interessante análise sobre os vários perfis de mulheres envolvidas com o tráfico de drogas e narra histórias de algumas que chefiaram grandes carteis no México, chamando a atenção para os desejos pessoais e ambições econômicas que impulsionaram essas mulheres à criminalidade. Mariana Barcinsk (2012) traz algumas entrevistas com mulheres que chefiavam “bocas de fumo” em comunidade do Rio de Janeiro, apresentando como a participação nessa atividade ilícita muitas vezes representa uma forma dessas mulheres conseguirem maior visibilidade dentro do seu meio social.
Dar visibilidade para o papel exercido pelas mulheres nas políticas globais, seja praticando ações lícitas ou ilícitas, e para os impactos que elas sofrem nos conflitos permite uma análise mais real dos atores e interesses que permeiam os contextos de violência e criminalidade. Além da contribuição ao processo de desconstrução de uma única imagem sobre o que é ser mulher (e o que é ser homem), esse olhar atento e crítico em relação às mulheres que praticam violência pode ser positivo para o desenvolvimento de políticas estatais preparadas para lidar e atender esse “novo” perfil de agente criminoso. Como o próprio levantamento do INFOPEN Mulheres 2018 apresenta, a maior parte dos presídios foi projetada para atender o público masculino, o que gera tantas deficiências de infraestrutura e de políticas de saúde específicas para atender as necessidades das mulheres encarceradas (DEPARTAMENTO PENITENCIARIO NACIONAL, 2018).
Helena Salim de Castro é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas e professora da Universidade Paulista (UNIP).
Imagem: INFOPEN – Mulheres. Por: Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Referências:
BARCINSKI, Mariana. Mulheres no tráfico de drogas: a criminalidade como estratégia de saída da invisibilidade social feminina. Contextos Clínicos, v. 5, n. 1, 2012, p. 52-61. Disponível em: < http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-34822012000100007>.
CAMPBELL, Howard. Female drug smugglers on the US-Mexico border: Gender, crime, and empowerment. Anthropological Quarterly, v. 81, n. 1, p. 233-267, 2008. Disponível em: < https://muse.jhu.edu/article/235056/summary> .
MOURA, Tatiana. Rostos Invisíveis da Violência Armada: um estudo de caso sobre o Rio de Janeiro. Gênero. Niterói, v. 8, n. 2, 2008, p. 227-256.
SJOBERG, Laura; GENTRY, Caron E. Mothers, monsters, whores: women’s violence in global politics. Zed Books, 2007.
SJOBERG, Laura. VIA, Sandra. Gender, war, and militarism: feminist perspectives. ABC-CLIO, 2010.
TICKNER, J. Ann. Gendering world politics: Issues and approaches in the post-Cold War era. Columbia University Press, 2001.
YOUNGERS, Coletta A.; PIERIS, Nischa (Coord.). Mujeres políticas de drogas y encarcelamiento: Una guía para la reforma de políticas en América Latina y el Caribe. Organização dos Estados Americanos, 2015. Disponível em:
<https://www.oas.org/es/cim/docs/WomenDrugsIncarceration-ES.pdf>.

Gastos militares e investimentos em Defesa: a qual futuro nos leva a ponte?

No início do mês passado, o Instituto Internacional de Pesquisa de Paz de Estocolmo – SIPRI, na sigla em inglês – publicou seu relatório periódico sobre os gastos militares mundiais no ano de 2017. O Instituto produz e divulga, gratuitamente, um dos bancos de dados mais extensivos e consistentes a respeito dos dispêndios militares em nível mundial. A publicação repercutiu particularmente na imprensa brasileira devido ao alarde criado em torno dos dados referentes aos gastos militares nacionais que, segundo o SIPRI, apresentaram o maior crescimento desde 2010.
A literatura especializada discute os fatores que influenciam o incremento e/ou a redução nos orçamentos militares, considerando desde motivações de natureza securitária até dinâmicas políticas internas. A despeito dessa complexidade, frequentemente o argumento econômico, sobretudo nos ditos países em desenvolvimento, veste-se de prioridade para justificar a manutenção ou aumento dos orçamentos de Defesa. No entanto, tal vinculação lógica entre os gastos militares e o desenvolvimento econômico é objeto de intenso debate no âmbito teórico da literatura. De maneira geral, o que os estudos mais recentes indicam é que há um custo econômico nos gastos militares, isto é, ao contrário de um efeito positivo sobre o crescimento econômico, tais dispêndios militares tendem a afetar negativamente a economia de um país (DUNNE; TIAN, 2013, p. 8-9).
Em perspectiva histórica, após elevados gastos na segunda metade da década de 1980, a dissolução da URSS e o consequente término da Guerra Fria marcou um período de substantivas reduções nos dispêndios militares mundiais, estimulando processos de transformação em setores industriais de países produtores de armamentos. Um notório exemplo foram os EUA, país no qual houve um acentuado processo de concentração na indústria de defesa ao longo da década de 1990. Entretanto, sobretudo após as invasões de Afeganistão e Iraque, os gastos militares mundiais apresentaram um contínuo crescimento ao longo da primeira década dos anos 2000.
Em linhas gerais, a trajetória evolutiva dos gastos militares brasileiros acompanhou a tendência mundial desde o início do século XXI. Contudo, uma leitura geral e agregada sobre tais dispêndios mostra-se insuficiente para lançar luz sobre a dinâmica e as idiossincrasias dos gastos militares brasileiros. Dessa forma, a fim de produzir melhores subsídios sobre o que significam tais dados, faz-se necessário qualificá-los de acordo com a natureza da despesa. Em primeiro lugar cabe apontar os elementos que compõem tais gastos, os quais reúnem custos relacionados a uma ampla sorte de despesas, tais como: pessoal e gastos correntes; investimentos para a aquisição de armamentos; e recursos destinados para a realização de P&D. Segundo dados disponibilizados pelo Ministério da Defesa, nos últimos anos o orçamento da pasta comprometeu mais de 70% com o pagamento de pessoal, enquanto os dispêndios relativos a investimentos representaram cerca de 10% apenas.
Sobretudo durante o segundo governo Lula, o orçamento destinado à Defesa apresentou um significativo crescimento. Inserido em um contexto de aumento nos investimentos da União, entre 2006 e 2009 os investimentos realizados pelo Ministério da Defesa cresceram em 77%, o que ampliou a participação dessas despesas nos gastos militares de maneira expressiva – passando de 6,1% no ano de 2006, para 9,2% em 2009. Adicionalmente, no escopo dos investimentos, os recursos voltados ao reaparelhamento das Forças Armadas representaram um crescimento de quase 300% no período de 2003 a 2009 (FERREIRA; SARTI, 2011).
Condição necessária para compreender a trajetória dos investimentos de defesa nos anos 2000 é a publicação de documentos estratégicos brasileiros ao longo do período, principalmente a Estratégia Nacional de Defesa (END) de 2008. De maneira geral, parte dos objetivos expressos no conjunto dos documentos manifesta uma preocupação com o reaparelhamento das Forças Armadas e o incentivo ao desenvolvimento de capacidades industriais e tecnológicas por parte das empresas que compõem a base industrial de defesa. Assentada sobre o binômio Defesa-Desenvolvimento, a perspectiva assumida por esses documentos compreende o conjunto de indústrias de defesa como vetor de inovação e difusão tecnológica para os demais setores industriais, em consonância com o pressuposto econômico apontado anteriormente.
Nesses termos, a manutenção dos níveis de dispêndios destinados aos investimentos militares atende à necessidade de previsibilidade da demanda para a sustentabilidade das atividades realizadas pela base industrial de defesa. Entretanto, o quadro político de redução de gastos promovido durante o governo de Dilma Rousseff refletiu negativamente sobre o volume de investimentos realizados no setor de Defesa e parte das atividades desenvolvidas por empresas brasileiras, particularmente pelos cortes orçamentários e contingenciamento nos recursos destinados a investimentos.
A distribuição dos recursos orçamentários de Defesa por natureza de despesa não alterou sua configuração durante o atual governo. Contudo, talvez a principal contribuição da atual conjuntura política à já dificultada equação dos investimentos militares, e consequente manutenção dos projetos estratégicos em desenvolvimento, seja a controversa aprovação da emenda constitucional do teto dos gastos públicos. Recentemente, chamou atenção da mídia a aquisição por oportunidade do porta-helicópteros britânico HMS Ocean, descomissionado em março deste ano, pelo valor de aproximadamente R$ 380 milhões. Ainda em processo de incorporação, o porta-helicópteros supre uma demanda da Marinha do Brasil em substituir o NAe São Paulo como navio-capitânia da força, desativado em virtude dos elevados custos envolvidos para sua modernização.
No entanto, outro processo de aquisição por parte da Marinha emerge como instrutivo exemplo da maneira pela qual as severas restrições orçamentárias podem afetar os projetos das forças armadas do país. Concebido como um dos projetos prioritários para o objetivo de construção do núcleo de poder naval, o Programa de Obtenção de Meios de Superfície (PROSUPER) teve parte de seu escopo inicialmente atendido, no final do ano passado, com a requisição de propostas para a obtenção de quatro corvetas – ou fragatas leves – Classe Tamandaré. Com previsão orçamentária de US$ 1,6 bilhão, cabe destacar o criativo artifício empregado no projeto a fim de evitar as limitações do teto de gastos, como propriamente reconheceu o então ministro da Defesa, Raul Jungmann. O esforço empreendido pelo governo federal foi no sentido de capitalizar a Empresa Gerencial de Projetos Navais (EMGEPRON) por meio de um projeto de lei encaminhado ao Congresso Nacional, a qual foi sancionada em dezembro de 2017.
Nesses termos, considerando a evolução recente dos investimentos no orçamento da Defesa, bem como os objetivos manifestados nos atuais documentos de defesa, são obscuras as reais capacidades de manutenção sustentável dos projetos estratégicos brasileiros, o que pode acarretar em consequências críticas para a base industrial de defesa brasileira. A insaciável busca pela modernização não é um fenômeno hodierno, tampouco o atual governo pode ser acusado de gerar as dificuldades relativas ao orçamento de Defesa. Entretanto, enquanto escuda-se sob o prestígio popular das Forças Armadas para resolver seus problemas de legitimidade, ao postiço governo cabe reivindicar a obra de uma ponte que guia a um incerto futuro.
Jonathan de Araujo de Assis é doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas e pesquisador do Gedes.
Imagem: HMS Ocean From Shoreside – 25/8/12. Por: Royal Navy Media Archive.
Referências bibliográficas:
DUNNE, P.; TIAN, N. Military expenditure and economic growth: A survey. The Economics of Peace and Security Journal, v. 8, n. 1, p. 5-11, 2013.
FERREIRA, M.; SARTI, F. Diagnóstico: Base Industrial de Defesa Brasileira. Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial. – Campinas: ABDI, NEIT-IE-UNICAMP, 2011.