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NOTA DE REPÚDIO

Em 31 de março de 1964 a democracia foi violentada, estuprada e humilhada. Em um ato que envergonhou a Nação, suas forças armadas atropelaram a história para sequestrar o poder do povo e deixar uma indelével mancha de ilegítima violência. Endividaram o país, aumentaram o desemprego, desmoralizaram a política, entregaram o país ao estrangeiro.

Por isso, causa espanto não apenas a ausência de pedido de perdão pelas cassações, prisões extrajudiciais, torturas e mortes, inclusive de milhares de indígenas, ocorridas nesse período infame, mas que o ministro da Defesa de um governo apenas formalmente democrático comemore essa data como uma vitória, neste ano de luto pela omissão do governo militar-bolsonarista para controlar a pandemia.

Depois do trabalho consciente, metódico e sistemático dos historiadores brasileiros e estrangeiros para mostrar que nessa data se perpetrou um Golpe Militar contra a normalidade institucional, os militares, que se mostraram despreparados para cumprir a missão para a qual são muito bem pagos, querem corrigir o trabalho de abnegados historiadores para dar sua versão terraplanista dos fatos.

Exigimos dos militares que voltem aos quartéis de onde não deveriam ter saído; que sejam patriotas e reconheçam seus erros; que abandonem seu projeto de poder e que se reconciliem com a sociedade brasileira para se subordinar ao projeto de Defesa Nacional.

 

GEDES

O atual quadro de vulnerabilidade no Chifre da África: o retorno dos conflitos étnicos?

Lucas de Oliveira Ramos*

 

O Chifre da África, região a noroeste do continente africano, que contém as nações da Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (IGAD) — Djibouti, Eritreia, Etiópia, Quênia, Somália, Sudão, Sudão do Sul e Uganda, vem enfrentando vários problemas no que diz respeito às questões de segurança e estabilidade política. Uma onda de protestos no Sudão, em 2019, derrubou o ex-presidente Omar al-Bashir do poder, de modo que o país vive, atualmente, uma situação transitória e, para além das problemáticas na capital Cartum, enfrenta um árduo processo de construção de paz no Darfur, tem pendências fronteiriças com o Sudão do Sul e, em decorrência disso, sofre pressão dos estados do sul, especialmente o Nilo Azul e do Cordofão do Sul. O Sudão do Sul enfrenta, para além das questões territoriais com o Sudão, uma guerra civil; a Somália combate o al-Shabaab desde 2012; a Etiópia, desde novembro de 2020, administra  uma crise político-bélica contra a Frente de Libertação do Povo do Tigré (TPLF), em que um dos ataques da TPLF atingiu, a Eritreia; e Uganda, que está em período eleitoral, vem sofrendo com um movimento de protestos popular e retaliações com uso da força por parte do governo.

Seria possível, ainda, expandir esse quadro de instabilidade se pensarmos o entorno imediato da IGAD. A Nigéria não consegue vencer o Boko Haram e, recentemente, tem sofrido  pressão interna e internacional com relação à sua brutalidade policial; o Chade tem as suas pendências em relação à distribuição de terras e questões territoriais internas, sobremaneira no sul; a República Democrática do Congo vive em situação de guerra civil; a República Centro-Africana convive com a Missão de Estabilização na República Centro-Africana (MINUSCA). Apesar de o Chifre da África ser o foco dessa peça, não se pode ignorar o seu entorno regional também instável e a incapacidade de ajuda das nações vizinhas, haja vista seus próprios problemas internos.

Tendo dito isto, é necessário questionar a construção narrativa, predominante durante o século XX e, especialmente, na década de 1990, que os entendia como tendo causas étnico-religiosas. Tendo como ponto de partida a contribuição de Mahmood Mamdani (2007), em seu texto The Politics of Naming: genocide, civil war, insurgency, o autor argumenta que a utilização da narrativa étnica como causadora de conflitos é politicamente instrumentalizada, racista e facilitadora de intervenções. Posto isto, por que essa narrativa persiste e quais as consequências desse movimento político e narrativo?

Mamdani defende seu argumento em dois movimentos. Em primeiro lugar, a narrativa persiste pois, segundo o autor, existe uma conexão bastante clara nos governos e nas populações das grandes potências entre um conflito de causa étnico-racial e/ou religiosa, um quadro de limpeza étnica e um genocídio. Essa fácil associação entre a causalidade do conflito e um crime de guerra e contra a humanidade insta uma resposta rápida e efetiva da comunidade internacional, com o objetivo de evitar as atrocidades que outrora ocorreram no continente africano. E, em segundo lugar, por conta da missão civilizatória auto-atribuída ao Norte, aludindo ao fardo do Homem Branco, segundo o qual, a intervenção é um dever a se cumprir politicamente e  uma missão moral de combate ao mal no mundo.

O caso de Darfur é bastante ilustrativo do argumento. O conflito no Darfur, de acordo com as pesquisas históricas de Mamdani (2009), seria sobre a disputa territorial entre os grupos pastorais, que precisou peregrinar rumo ao sul devido às graves secas nas regiões desérticas do norte de Darfur, e grupos agricultores do sul, que possuem terra fértil de maneira constante devido à irrigação do Rio Nilo. Tendo em vista que esse conflito ocorreu concomitantemente ao movimento separatista do sul do Sudão (que veio a ser o Sudão do Sul, em 2011), o governo central de Cartum negligenciou o contencioso da região, privilegiando a luta contra o movimento de libertação no Sul. Pensando dessa forma, o conflito em Darfur teve início na década de 1970.

Entretanto, o queé relatado , na mídia e nos institutos formuladores de política, caso do think tank Council of Foreign Relations (CFR), é que o conflito teve início em 2003, quando grupos locais atacaram instalações do governo no Darfur. É interessante destacar essa passagem e o ano de 2003, pois há alguns elementos bastante importantes que dão base ao argumento de Mamdani. Em primeiro lugar, é fundado nos Estados Unidos o Save Darfur Coalition, grupo civil criado em 2004 para pressionar o governo estadunidense a fim de intervir e finalizar o conflito no Darfur, que foi entendido como caso de limpeza étnica (RAMOS, 2020).

Daí em diante, o conflito passou a ser entre os povos nômades árabe-muçulmanos versus povos não-muçulmanos. A coalizão conseguiu penetrar no congresso estadunidense, de maneira que se debateu qual seria a ação estadunidense para salvar o povo darfuri das atrocidades do ditador Omar al-Bashir, tendo como premissa que se tratava de um conflito étnico-religioso e um caso de genocídio. Alguns anos mais tarde, essa coalizão é reconhecida oficialmente como grupo lobista no congresso estadunidense (RAMOS, 2020).

O caso de Darfur é interessante também por demonstrar que o movimento da mídia não é desacompanhado. É possível identificar um corpo civil que entende os conflitos em África dessa forma. Servem de exemplo, na academia, a obra Choque das Civilizações, de Samuel Huntington (1996), o conceito de Novas Guerras, de Mary Kaldor (2012) e Robert Kaplan (1994) que, de maneira transversal, compreendem os conflitos na África como diferenças identitárias tribais, étnicas ou religiosas. Institutos como o CFR, o The Fund for Peace e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), para além de tomarem como premissa as diferenças identitárias como causa de conflito, somam essa narrativa com a possível baixa capacidade, inabilidade ou indisposição dos governos centrais de lidarem com esses conflitos, o que chamam de Estado Frágil, Falido ou Colapsado.

Além desse movimento do centro em direção à periferia, também é importante salientar que há um movimento na mão oposta. Ao perceberem a racialização e etnização do conflito, os entes armados também adotam esta narrativa como parte integrante das motivações centrais pelas quais eles estão em guerra. Dessa forma, facilita-se o acesso a recursos financeiros, armamento, munição e treinamento. Ainda que não se possa dizer que os conflitos atuais seriam combatidos com as mesmas armas rudimentares do início do século XX, o armamento disponível no continente é defasado em relação às possibilidades que vêm dos pólos bélicos do mundo.

Apesar da exibição da problemática e das lições históricas que, aparentemente, o mundo desenvolvido não aprendeu (ou não quer aprender), o que se vê na produção de narrativas da sociedade civil nas grandes potências é a construção rápida e eficiente que compreende  todas as questões políticas ocorrendo no Chifre da África — sobre territorialidade, representação política, processo político, transição de governo, repressão e opressão de divergentes — como de matriz religiosa, étnica ou racial. Na esteira dessa evolução sobre as causas dos conflitos no Chifre da África, também se percebe um aumento da presença militar das grandes potências na região.

Ilustra o comentário o fato de a China possuir base militar no Djibouti, a primeira base militar extra-oceânica chinesa, desde 2017; a Rússia possuir projetos de retomar sua presença no continente, especialmente com os planejamentos de construção de uma base naval no Sudão; e os Estados Unidos estarem em múltiplos países na forma de base militar, entre eles, Somália e Quênia.

É primordial que se reflita acerca do papel da sociedade civil das grandes potências na construção narrativa sobre os problemas que o Chifre atualmente enfrenta. Além de tentar resolver um não-problema, adotar este tipo de narrativa como causa dos conflitos diz mais sobre a permanência de uma mentalidade preconceituosa e etnofóbica que alicerçou o desenvolvimento do capitalismo e das sociedades capitalistas, do que, de fato, sobre o contexto daquela localidade. Isso sem mencionar que o entendimento de urgência e a ação externa militar das potências pode acarretar na escalada do quadro instável e dinamitar uma região historicamente fragilizada e à iminência de conflitos. Por conta disso, é mais producente a reflexão aprofundada sobre cada um dos conflitos, de maneira particular, do que se valer de debates rápidos e superficiais.

Com os focos de conflito eclodindo diariamente em seis dos oito países do Chifre, é preocupante perceber o duplo movimento de costura narrativa e militarização das grandes potências na região. Das múltiplas lições que aprendemos no longo século XX sobre os conflitos em África, uma das mais valiosas é de que a incorporação das potências externas nesses conflitos aumenta a capacidade bélica dos entes armados, o que, invariavelmente, amplia a letalidade do conflito.

 

Referências:

HUNTINGTON, Samuel. (1996). O choque de civilizações. São Paulo: Ed. Objetiva.

KALDOR, Mary. (1999) New and Old Wars: Organized Violence in a Global Era. Stanford, Calif: Stanford University Press. Print.

KAPLAN, Robert, (1994). The Coming Anarchy: How scarcity, crime, overpopulation, tribalism, and disease are rapidly destroying the social fabric of our planet. The Atlantic, feb 1994. Disponível em: <https://www.theatlantic.com/magazine/archive/1994/02/the-coming-anarchy/304670/>. Acesso em: 12 de dezembro de 2020.

MAMDANI, Mahmood. (2007). The Politics of Naming: Genocide, Civil War, Insurgency. London Review of Books, v29 n5. Disponível em: <https://www.lrb.co.uk/the-paper/v29/n05/mahmood-mamdani/the-politics-of-naming-genocide-civil-war-insurgency>. Acesso em: 07 de dezembro de 2020.

MAMDANI, Mahmood. (2009). Saviors and survivors: Darfur, politics, and the War on Terror. New York :Pantheon Books.

RAMOS, Lucas de Oliveira. (2020). As Empresas Militares Privadas e o processo de pacificação do Darfur. 138 f. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

 

Lucas de Oliveira Ramos é mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisador do Gedes.

Imagem: Mapa da África, por: Samuel Mitchell.

Nota de repúdio ao assédio sexual e à violência política de gênero sofrida pela deputada estadual Isa Penna (PSOL/SP)

O Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES), comprometido com as pautas de respeito à democracia e à igualdade de gênero, vem a público, por meio desta nota, repudiar o assédio sexual e a violência política de gênero sofrida pela Deputada Estadual Isa Penna (PSOL/SP), que ocorreu na Sessão da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo – Alesp, no dia 16 de dezembro de 2020.

As ações empreendidas pelo Deputado Estadual Fernando Cury (Cidadania) demonstram e reafirmam uma crença, que deve ser desconstruída recorrentemente, de que os homens possuem direitos sobre os corpos femininos, aos quais podem ter acesso sem a necessidade de consentimento. Ações como essas, que vão desde abusos físicos, como o que a Deputada vivenciou, até outras práticas mais veladas, como tentativas de silenciamento das vozes das mulheres, são recorrentes nos ambientes domésticos e públicos. Como caso específico, tratou-se de uma agressão a todas as mulheres e uma mostra dissimulada e aviltante de poder e desrespeito, uma tentativa de humilhação que buscou minorar a importância da atuação da Deputada Isa Penna no espaço público e deslegitimá-la enquanto agente político.

Por acreditar que este tipo de conduta deve ser combatido em toda a sociedade, não podendo ser tolerada, principalmente, por parte daqueles que professam a representação e defesa dos interesses da cidadania, demandamos que as devidas medidas legais sejam tomadas contra o Deputado Estadual Fernando Cury. A violência de gênero – em todos os espaços (público e doméstico) e formas (física, psicológica, patrimonial, política) – deve ser combatida por todos e cada um dos cidadãos, em especial, pelas autoridades e aqueles que foram eleitos para representar brasileiros e brasileiras.

O Deputado Fernando Cury não nos representa!

 

Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES)

19 de dezembro de 2020

Eleições e milícias no Rio de Janeiro: simbiose entre o poder público e o crime organizado

Thaiane Mendonça

 

No Rio de Janeiro, é inevitável falar de milícias e segurança pública quando se debate política, principalmente durante o período eleitoral. As milícias fazem parte do imaginário e do cotidiano da cidade, já viraram  tema de filme[1] e, desde 2019, com as acusações de proximidade da família Bolsonaro com as milícias no Rio, o tema tem chamado atenção nacional. Ainda que, historicamente, o termo “milícia” tenha sido utilizado para designar diferentes experiências de forças de segurança, atualmente no Brasil o termo é usado para tratar de grupos criminosos formados por policiais, ex-policiais, bombeiros e agentes

O fenômeno das milícias deriva dos chamados “grupos de extermínio” ou “justiceiros”, presentes mesmo em outras cidades do país, ao menos desde a década de 1960.  Moradores e comerciantes de determinada região possuíam um acordo tácito com estes grupos, relacionados até com as lideranças locais das comunidades e ações assistenciais, para garantir a sua proteção contra grupos traficantes e outros criminosos. Com o acordo, estabelecia-se uma “paz cínica” através de um poder tutelar: os grupos mantinham o território sob um controle militarizado e violento à margem do controle estatal enquanto proviam uma sensação de segurança para os moradores do local contra os “verdadeiros criminosos”. Ainda é comum encontrar como “mito de origem” para as milícias atuais a experiência “bem-sucedida” de segurança de Rio das Pedras, favela/bairro na zona oeste do Rio de Janeiro.

Há diversas configurações possíveis de milícias e uma particularidade interessante dos grupos, hoje em dia, é a diversificação dos serviços oferecidos à população. Além dos serviços de segurança, os milicianos controlam o fornecimento local de botijões de gás, cobram “pedágios” e taxas para proteção, fornecem sinal clandestino de televisão a cabo, linhas de transporte alternativo e, mais recentemente, cobrança de aluguéis ilegais. Nota-se que as milícias emulam tanto atividades de responsabilidade do Estado quanto aquelas oferecidas pela iniciativa privada justamente em locais  com presença historicamente precária de ambos.

Há uma outra particularidade interessante desses grupos: suas relações com a política e o poder público. Desde os anos 1990, é possível observar a ocupação de cargos eletivos por integrantes de milícias, principalmente aqueles que já exerciam algum tipo de liderança local. Sobre isto, foi  notável, em 2004, a eleição de Nadinho, liderança comunitária de Rio das Pedras e acusado de ser chefe da milícia na região, já indicando um movimento que se tornaria mais comum nos anos seguintes de ocupação de cargos públicos por candidatos relacionados às milícias na cidade. Em certa medida, até meados dos anos 2000, a classe política não identificava as milícias como um problema, sendo mesmo consideradas como uma forma de conter o “verdadeiro” problema, os traficantes. A própria família Bolsonaro chegou a se pronunciar publicamente de forma positiva e favorável às milícias. Esta perspectiva começa a se alterar em 2008 quando jornalistas do O Dia foram presos e torturados pela milícia do Batan, na Zona Oeste, enquanto faziam uma reportagem sobre a atuação dos grupos.

Como consequência, ainda em 2008, foi aberta a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Milícias, com autoria do então deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL). Dentre os mais de duzentos indiciados estavam diversos vereadores e deputados do estado, principalmente ligados às milícias de Campo Grande e de Rio das Pedras, na Zona Oeste da cidade. Dentre eles estava também Nadinho, que acabou assassinado em 2009, assim como ocorreu com diversos outros nomes da lista da CPI. É notável ainda o caso da milícia conhecida como “Liga da Justiça”, maior milícia do estado, predominante no bairro de Campo Grande, mais populoso e um dos maiores colégios eleitorais. Os líderes do grupo, os irmãos Jerominho e Natalino Guimarães, ex-vereador e ex-deputado estadual, respectivamente, além de ex-policiais, foram presos em resultado da CPI e soltos em 2018. Além do envolvimento de outros membros da família com a política na cidade desde então, agora em 2020, a sobrinha de Jerominho, Jéssica Natalino, foi candidata à vice-prefeita na chapa de Suêd Haidar (PMB), chapa atualmente investigada pela Polícia Federal por envolvimento com as milícias.

Além das candidaturas de figuras reconhecidamente relacionadas às milícias, é notável também que as campanhas políticas nos territórios controlados só podem ocorrer caso sejam autorizadas pelos grupos daquela localidade. Ainda, os moradores costumam ser coagidos, até com ameaças de morte, a votar nos candidatos apoiados pelos milicianos. De acordo com informações fornecidas por um morador à Revista Veja sobre as eleições deste ano: “Os milicianos convocam a população para uma reunião, portando identidade e título de eleitor. Cadastram um a um e passam a monitorá-los para impedir que apoiem candidatos “de fora”. No dia do pleito, com o mapa eleitoral da região em mãos, fazem sua boca de urna, ameaçando quem chega ao local de votação com “olha bem em quem você vai votar” — às vezes na cara da polícia. “A maioria cede à pressão, por medo de morrer”, diz o morador.”

Junta-se à coação dos milicianos o fato de controlarem bairros populosos na cidade, principalmente na zona oeste, e é assombrosa a capacidade desses grupos de influenciar o resultado do pleito no estado.

No Rio de Janeiro, a vereadora Marielle Franco (PSOL) era conhecida por suas denúncias de uma prática comum das milícias, a grilagem, que consiste na construção, venda ou locação ilegal de imóveis nos territórios controlados. Marielle foi assassinada em março de 2018 juntamente com o motorista Anderson Gomes e as investigações, ainda que não estejam concluídas, apontam que a motivação do crime tenha sido a luta contra as milícias no estado. O Ministério Público Federal indica, até o momento, que há fortes indícios de que os assassinatos foram cometidos pelo Escritório do Crime, milícia que atua em Rio das Pedras e cujo comando era apontado como pertencendo a Adriano da Nóbrega, ex-policial militar. Além desta investigação, o ex-policial era também investigado por fazer parte do esquema de “rachadinhas” operado por Fabrício Queiroz no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro. Apesar de ter chamado a atenção da mídia nos últimos dois anos, Adriano da Nóbrega foi homenageado, na cadeia, por Flávio Bolsonaro, ainda em 2005, com a Medalha Tiradentes, honraria mais alta da Assembleia Legislativa. Adriano foi morto em uma operação policial em fevereiro de 2020, na Bahia, quando estava foragido.

Atualmente, as milícias não são formadas apenas por pessoal advindo das forças de segurança. Há alguns casos de cooptação, inclusive de membros de grupos traficantes, o que a mídia tem chamado recentemente de “narcomilícias”. Isso revela a força desses grupos e sua capacidade de influência na política do estado, além da capacidade da mídia de ditar e legitimar o debate sobre segurança pública no estado.

Ao observar o modo de atuação das milícias no Rio de Janeiro, fica evidente sua profunda associação e infiltração na burocracia pública e em órgãos representativos das instituições estatais, sejam elas as próprias forças de segurança, de onde vem a maior parte de seus integrantes, sejam elas os gabinetes de funcionários eleitos pelo povo – além de o próprio processo eleitoral já ser influenciado pela ação dos milicianos.

Dessa constatação, duas outras são possíveis. Em primeiro lugar, o combate ao crime organizado efetivo e eficiente não pode ser restrito a operações violentas e ostensivas de polícia em territórios marginalizados, como tem sido a política de segurança pública no Rio de Janeiro. Relacionado a isso, em segundo lugar, isolar casos e individualizar a culpa e a punição – nos poucos casos em que há punição – apenas contribui para a invisibilização de uma questão estrutural: a simbiose entre as forças de segurança e o crime organizado, que vem se projetando em demais instituições do Estado, nos mais diversos níveis da administração pública. Assim sendo, apenas propostas de reforma das instituições ou punição dos “agentes desviantes” não são suficientes para lidar com um modus operandi relacionado à própria estrutura das instituições democráticas, o que ressalta a necessidade de se repensar o tipo de democracia que se quer daqui para frente.

 

Thaiane Mendonça é doutoranda no PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), pesquisadora do GEDES (UNESP) e do LASInTec (UNIFESP).

Imagem por: Rafael Defavari; Wikimedia Commons.

[1]          As milícias foram abordadas na sequência do filme “Tropa de Elite” (2007), intitulado “Tropa de Elite: o inimigo agora é outro” (2010).

Entre dos pandemias: la ONU ante la violencia de género y la covid-19

Cristian Daniel Valdivieso [1]

Joyce Miranda Leão Martins [2]

 

En noviembre de 2018, el Secretario General de las Naciones Unidas, António Guterres, mencionaba, por motivo de la celebración del Día Internacional para la Eliminación de la Violencia Contra la Mujer, que la violencia contra las mujeres y las niñas es una pandemia. El actual máximo representante de la ONU ha apelado de forma incesante para la necesidad de promoción de medidas que permitan hacer de la igualdad de género una realidad consolidada en el respeto, la solidaridad y el trabajo conjunto entre representantes, ciudadanos y ciudadanas de los países del sistema internacional. El uso del término género, que indica la distinción entre condicionamientos biológicos de construcciones sociales, enseña que la institución cree que el enfrentamiento de esa pandemia también pasa por el combate a los simbolismos prejudiciales.

La enfermedad diagnosticada hace dos años por Guterres se ha agudizado con la llegada de otra pandemia, la Covid-19. Pese a que la propagación del virus y el prolongado impacto económico, ya evidente en todas las latitudes del planeta, son actualmente los grandes faroles de atención internacional, se acumulan víctimas invisibles de la violencia de género. Datos de la organización ONU Mujeres indican que la violencia de género se ve agravada por el confinamiento.

En estos momentos de resguardo social, los efectos psicológicos de la pandemia pueden resultar en el incremento de variados tipos de violencia, incluso la física. A esto se acompaña la ausencia de mecanismos de denuncia de casos de violencia familiar. En países como Argentina, Brasil, Colombia y México, la violencia contra las mujeres incrementó entre 30% y 50%. Asimismo, en Ecuador y Honduras, los hogares provisorios de acogida a mujeres maltratadas quedaron abarrotados, y los mecanismos de ayuda telefónica o virtual se han visto anulados por la inevitable presencia de los agresores en los hogares. Casos como Colombia, con más de 300 feminicidios entre enero y mayo, y Chile, con un aumento del 500% de pedidos de socorro por violencia de género, son el reflejo de la realidad regional.

En Argentina, Chile y España, los gobiernos han recurrido a la creación de códigos secretos, como el pedido de la “mascarilla 19” o “el tapabocas rojo” en farmacias, para que las víctimas puedan denunciar a sus agresores de forma segura y accionar efectivos policiales. Entretanto, ¿qué acciones están siendo promovidas por organizaciones internacionales para reforzar el combate a la violencia de género?

En primer término, es importante destacar que las acciones internacionales en función de la lucha por la igualdad de género comenzaron de forma tardía. Las convenciones de la ONU iniciaron solo en 1975, en las cuales, por motivo del Día Internacional de la Mujer, se organizó la Primera Conferencia Mundial sobre la Mujer, en México, y se promovió una agenda permanente para eliminar la discriminación contra la mujer y promover la igualdad de género. Como consecuencia de ello, uno de los principales marcos de la historia contemporánea a respecto de este tema es la resolución 1325 del Consejo de Seguridad que, buscando la igualdad e inclusión real en actividades político-sociales, insta a que las mujeres sean apoyadas por sus respectivo Estados en funciones de promoción de la paz en toda la verticalidad de sus jerarquías.

Como bien indica el art. 1 de la Carta de la ONU, de 1945, el objetivo principal de la institución es “mantener la paz y la seguridad internacionales”, meta irrealizable sin la igualdad, que involucra justicia y representación política, como señala Nancy Fraser. El art. 8 de la misiva reza que no se establecerá restricciones para la participación de mujeres y hombres en la ONU, respetando condiciones de igualdad de género. Sin embargo, la realidad muestra la existencia de brechas que denuncian por sí mismas la desigualdad en el propio seno de la entidad.

En el mismo año en que Guterres denunciaba la violencia de género como una pandemia, se anunciaba que, por primera vez en la historia de la institución, los altos cargos del organismo alcanzaban la paridad entre hombres y mujeres. Esto es evidencia de que, si bien la lucha por la igualdad está ocurriendo, lo hace a paso lento. Además, como la realidad lo refleja, la escaza divulgación mediática de este acontecimiento inédito refleja el bajo grado de relevancia que se otorga a estos temas a nivel internacional.

En segundo término, y bajo este crítico escenario de pandemias, la ONU y sus Estados-miembros enfrentan un complejo rompecabezas. La coyuntura demanda la reestructuración de los mecanismos que hasta ahora han permitido dar aquellos pasos lentos en favor de la igualdad. El momento exige urgencia.

Los impactos de la Covid-19, además del drástico incremento de violencia, gira en torno a aspectos económicos, profesionales, sociales y de movilidad en momentos de ampliación de flujos migratorios. Para las mujeres, dadas las condiciones de desigualdad de género, esos impactos son todavía peores: ellas ven una deterioración de sus ya precarias condiciones de vida, principalmente en lugares periféricos. Los cuerpos de salud en América Latina están constituidos en un 70% por mujeres, lo cual indica que ellas se encuentran más vulnerables en varios ámbitos, como ocurrió con el incremento de violencia hacia el personal médico en el trasporte público. Las mujeres también constituyen la principal mano de obra del subempleo, sin garantías ni resguardo de derechos. Desde otro ángulo, el trabajo no remunerado en el hogar es un peso duplicado por la presencia de sus hijos que no pueden acudir a las escuelas.

Otros impactos que se profundizan son la falta de acceso a créditos que permitan promover incentivos económicos de medios de subsistencia. La precaria situación de la mayoría de mujeres en Latinoamérica las vuelve más vulnerables en la medida en que ni siquiera poseen acceso a servicios básicos. Muchas de ellas son víctimas de explotación sexual. Aquellas que dependen de servicios públicos de salud, una grande mayoría, ven sus prioridades eliminadas. Si bien la crisis sanitaria actual demanda de esfuerzos conjuntos, el ya precario servicio de salud pública de algunos países de la región hoy se ve en la necesidad de robustecer en tiempo récord sus profundos déficits, muchas veces sacrificando la atención a gestantes.

Dado este complejo campo de batalla, ONU Mujeres ha emitido documentos que pretenden contribuir con respuestas a la crisis. Entre los puntos principales encontramos sugerencias para que los países trabajen en función de garantizar la atención reproductiva de las mujeres, sin dejar que sea una prioridad. Garantizar que las mujeres que forman parte de ese 70% del cuerpo médico latinoamericano tengan los instrumentos necesarios para enfrentar de forma adecuada la pandemia. Ese punto viene al encuentro de episodios en los cuales trabajadoras de salud han denunciado la falta de insumos para su propia protección, como ocurrió en el Ecuador.

Otro elemento es el aprovechamiento de la tecnología para facilitar la circulación de informaciones confiables que permitan que las víctimas de violencia de género encuentren vías seguras de denuncia y para prevenir el ciberacoso. Sugiere también que los datos gubernamentales en las diversas instancias político-sociales sean discriminados por sexo para que mejores políticas públicas sean destinadas de acuerdo a las necesidades y para combatir la sub-representación. Esta medida se vuelve central al momento de pensar que, conforme se aproxima la ya llamada “nueva normalidad”, es urgente que el uso de datos permita visibilizar las necesidades de mujeres que sufren de forma profunda los efectos de la epidemia de Covid-19 y para la elaboración de propuestas que permitan que ellas tengan garantías laborales, político-sociales y económicas que inclusive antes no tenían.

Por último, la ONU sugiere que los Estados promuevan políticas que permitan una división igualitaria con relación al trabajo no remunerado. Este punto refuerza la constante llamada al trabajo conjunto que realiza Naciones Unidas, pues la igualdad de género no es una tarea únicamente de las mujeres o que deba ser luchada apenas por ellas. Por el contrario, para conquistar una verdadera igualdad de género se requiere de la conciencia de hombres y de toda la sociedad para fortalecer la justicia social y aproximar a las mujeres que fueron excluidas de los contratos sociales.

Tal vez el principal enemigo de tan necesarias conquistas sea la mentalidad autoritaria, que no desea que tan antigua pandemia tenga un punto final. Que rechaza la participación de las mujeres en el espacio público y la libertad de ellas. Por eso, la lucha contra la violencia de género es también una lucha por más y mejor democracia.

El día 25 de noviembre se cumplieron 60 años que la dictadura de Rafael Trujillo, en República Dominicana, asesinó a las hermanas Mirabal, activistas contrarias a su régimen. La muerte de Minerva, Patria y María Teresa, debido a la gran conmoción que causó, fue también el inicio del fin del gobierno de Trujillo. Desde 1981, Latinoamérica conmemora el 25 de noviembre el día contra la violencia de género. Consecuentemente, marca también la lucha por igualdad y por derechos. Son justamente estos que no pueden quedar en el olvido. Aunque sean positivas las urgentes sugerencias de ONU, el reconocimiento de los derechos, y la exigencia relacionada al hecho, es fundamental para que las mujeres estén más fuertes ante otras pandemias y violencias. Para vencerlas, es preciso apresurar el paso.

 

Cristian Daniel Valdivieso es doctorando en el PPGRI San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC/SP) y investigador del GEDES; Joyce Miranda Leão Martins es doctora en Ciencias Políticas por UFRGS y investigadora de posdoctorado en PUC/SP.

 

Imagen de: Naciones Unidas.

[1] Doutorando do PPGRI San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC/SP). Membro do GEDES.

[2] Doutorada em Ciência Política pela UFRGS. Pós-doutorado em Ciência Política pela PUC/SP.

Hábitos que se recusam a morrer: a cooptação de militares pelas elites civis

Lis Barreto

 

Como cidadã de um País que viveu 21 anos de ditadura militar e possuidor de uma democracia que logrou chegar aos 30, mas que ainda tem dificuldades em se consolidar, é difícil olhar para a composição do governo Bolsonaro e não se intrigar com a quantidade de militares envolvidos nele. Será que as coisas não mudaram tanto assim, de lá para cá?

A participação militar na política brasileira é de longa data. Nossa República foi declarada através de um golpe militar e de 1889 até hoje, a história brasileira foi marcada por intervenções militares que destituíram e instituíram governos, levando-nos de um grupo civil ao outro, até que, em 1964, foi dado o golpe que estabeleceu o poder para os próprios militares.

À época, os acadêmicos e políticos não se surpreenderam com a intervenção militar em si. Militar intervindo na política e atuando como um tipo de “poder moderador” era algo tão corriqueiro, tão tradicional e enraizado, que dificilmente impressionava. A cooptação dos militares por elites políticas civis era uma instituição informal bem estabelecida e tanto os ocupantes do Executivo quanto sua oposição recorriam, quando fragilizados, ao apoio militar para fazer a balança ir ao seu favor.

Foi esse perigoso jogo estabelecido entre elites civis e jogado durante quase um século que, ao fim, queimou a todos. O golpe de 1964 foi apoiado por elites que não voltaram a recuperar o poder tão cedo e que descobriram que a repressão e censura não eram apenas para seus opositores, ainda que estas se manifestassem de formas desiguais entre os grupos políticos e sociais[1].

Na década de 1980, com a abertura política e iniciada à transição para a democracia, um novo pacto entre elites civis foi firmado e uma nova Constituição, promulgada. Nela, a participação militar não era nem legitimada, nem objetivamente vedada. Esta ambiguidade foi resultado de uma transição negociada, em que os civis da Subcomissão de Defesa, com suas visões tão acostumadas à política como ela sempre havia sido, pareciam não conseguir visualizar um funcionamento político que alijasse completamente a presença militar. A verdade é que haviam estado tanto tempo dependentes da participação militar para dirimir suas disputas políticas, que lhes soava improvável a capacidade de construir um sistema político que funcionasse por si só.

Com todas as críticas que possam ser feitas à Carta de 1988, ela logrou funcionar e sobreviver. As crises políticas, como previsto, nunca deixaram de existir, mas as elites civis encontraram outras formas de se confrontar, muitas vezes dentro das regras do jogo, algumas vezes manipulando-as. Contudo, nunca através da intervenção militar direta. Parecia que após 21 anos de restrições políticas por brincar com forças que não podiam controlar, as elites civis finalmente teriam entendido que valia mais a pena esperar 4 anos para voltarem a brigar pelo poder.

Entretanto, o jogo democrático é para quem sabe jogar. Melhor dizendo, para quem aceita jogar. Quando as turbulências políticas e econômicas que emergiram em 2013 decidiram atacar não apenas ao governo, mas às regras do sistema político, um pacto começou a se desintegrar. Naquele marco, víamos que 25 anos foram suficientes para começar a borrar os riscos de brincar com fogo, pois tornavam-se claras as tentativas de, novamente, tornar os militares os fiéis da balança, independente da escolha das urnas.

Apesar dos percalços, a democracia ainda se manteve e se mantém. As urnas se viram respeitadas e o procedimento democrático ainda existe. Contudo, como bem observou Alfred Stepan, ainda na década de 1970, a cooptação militar não era só feita por elites de oposição que queriam o poder para si, ela era feita por qualquer elite política que se encontrasse fragilizada no jogo político, o que inclui o próprio Poder Executivo. Isso quer dizer que um Presidente sem apoio político para governar pode ser enquadrado nesta categoria[2].

Após 1988, os dois casos de Presidentes sem apoio político terminaram em renúncia e impeachment. Collor e Rousseff são casos muito distintos, mas ambos provaram do dissabor da falta de apoio político no Congresso para governar e se manter, e deixaram clara a mensagem de que quem não tem apoio, cai. Mensagem muito bem assimilada por Bolsonaro.

Não precisava ser nenhum grande entendido de política para saber, já em 2018, que a vitória de Bolsonaro nas urnas ia resultar em um Presidente frágil. Sem um partido forte, sem uma coligação e, posteriormente, uma coalizão estável, desde a campanha Bolsonaro retomou a postura antiga de buscar seus aliados nos militares, o que fica evidente na escolha do seu vice. E por mais que os militares não mais se enquadrem na visão de “Partido Fardado”[3], como denominou Oliveiros Ferreira, e não atuem como atores principais que dispõem de uma agenda própria para o poder político, eles cumprem perfeitamente a função coadjuvante desejada por seu cooptador: de modificar o peso político dos atores. Quanto mais Bolsonaro balança, mais militares entram no governo e, assim, aquele segue sem cair. Mas até quando? Ou melhor, a que custo?

O que é possível dizer até agora é que voltamos a brincar com fogo. O crescimento de militares no governo retoma memórias de um passado que se recusa a morrer, o hábito de resolver disputas políticas cooptando militares, que parecia esquecido, mas que,  talvez por nunca ter sido eliminado de forma consciente e objetiva, volta quando o sistema se encontra duramente questionado e fragilizado. É um momento de autoanálise política, da razão pela qual repetimos certos padrões. Acredito que a chave para começarmos entender foi apontada por Stepan em 1975 “[…] o fenômeno que existe em muitos países da América Latina – e que precisa ser analisado – não é o ‘militarismo’, mas o ‘militarismo civil’”[4]. É entendendo o mecanismo de funcionamento desta mentalidade militarista por parte dos civis, que acredita que a presença militar na política não é apenas positiva como necessária, que será possível alterarmos esse padrão de comportamento.

 

 

Lis Barreto é doutoranda em Ciência Política em regime de cotutela entre Universidade Federal de São Carlos e a Universidade de Lisboa, mestre pelo PPG RI San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP). Orientadores: Simone Diniz (UFSCar); Andrés Malamud (Ulisboa)

 

[1] STEPAN, Alfred. Os Militares na Política. As mudanças de padrões na vida brasileira. Rio de Janeiro: Artenova. 1975, p. 159-163.

[2] STEPAN, Alfred. Os Militares na Política. As mudanças de padrões na vida brasileira. Rio de Janeiro: Artenova. 1975.

[3] FERREIRA, Oliveiros. Vida e Morte do Partido Fardado. São Paulo: Editora Senac. 2000.

[4] No contexto, A. Stepan usa a frase para ilustrar o peso que os civis tiveram para sancionar e legitimar as intervenções militares na vida política brasileira. STEPAN, Alfred. Os Militares na Política. As mudanças de padrões na vida brasileira. Rio de Janeiro: Artenova. 1975, p.52.

 

Imagem por: Ministério da Defesa; Flickr.

Peregrinación por la paz y la defensa de la vida

Alejo Vargas Velásquez

Texto originalmente publicado na Revista Sur

https://www.sur.org.co/peregrinacion-por-la-paz-y-la-defensa-de-la-vida/

 

Los dirigentes y excombatientes de las extintas FARC, en su calidad de signatarios del Acuerdo de Paz, ante la continuación del asesinato de los exguerrilleros en proceso de reincorporación –ya van 238 asesinados desde cuando se firmó el Acuerdo-, tomaron una decisión política valerosa, a pesar de lo dolorosa: iniciar una peregrinación hacia la capital del país, desde varios de los Espacios Territoriales en que han venido adelantando sus procesos de reincorporación en lo económicos, lo social y lo político. La iniciaron el 21 de octubre en Mesetas, después del asesinato y sepelio de uno de sus líderes conocido como ‘Albeiro Suarez’. A la misma se sumaron delegaciones de excombatientes con sus familias de Guaviare, Meta, Antioquia, Choco, el Eje Cafetero, La Guajira, Cesar, Arauca, Norte de Santander, Sur de Bolívar Y efectivamente después de cerca de dos semanas de desplazamiento colectivo, combinando caminatas y trayectos en vehículos, llegaron a la capital del país el 1 de noviembre.

Es importante resaltar la denominación que le dieron a esta movilización de protesta, más que justificada, una ‘peregrinación’, porque se trata en lo fundamental de una expresión usada en el ámbito religioso, especialmente por las tres grandes religiones monoteístas, el cristianismo, el judaísmo y el islamismo para dirigirse por parte de un grupo de creyentes hacia un santuario o un sitio de especial relevancia para ellos, pero también realizada por excluidos o expatriados, para significar con ello, los miembros de ese especie de ‘movimiento social en construcción de los firmantes del Acuerdo de Paz’, como lo recalcaron varios de sus dirigentes, que no se trataba de buscar la selva como en el pasado de su lucha armada, sino justamente darle la espalda a la selva y marchar hacia el centro del poder político del país, para pedir en forma pacífica, de ese poder político nacional soluciones, especialmente la de salvaguardar sus vidas, pero también la de dar respuesta a derechos básicos y demandas que no fueron incluidas en los acuerdos, como el tema de vivienda o tierra para los antiguos miembros de la guerrilla, pero ahora desmovilizados y en proceso de reincorporación, tienen todo el derecho como cualquier poblador rural.

La ‘peregrinación’ permitió, además, que muchos colombianos del común, situados en las rutas que siguieron los distintos grupos de caminantes, no sólo se sensibilizaran acerca de la situación que estaban viviendo, quienes le están jugando limpio a la paz, sino adicionalmente tener la oportunidad los excombatientes de explicar la gravedad del drama que han estado viviendo: En un sitio cercano a Villavicencio conocido como Pipiral, hicieron un acto simbólico de perdón por los secuestros masivos –conocidos como ‘las pescas milagrosas’- con una bandera blanca clavada en la tierra, en esa vía donde sembraron de temor a los viajeros en el pasado; también permitió que gobiernos territoriales igualmente se solidarizaran con los caminantes y contribuyeran a suministrarles sitios de alojamiento, además de apoyos para alimentación, siendo esto especialmente relevante en el gobierno de Bogotá. Pero también era simbólicamente relevante mostrar con la ‘peregrinación’ su condición de excluidos por las políticas de un Estado que justamente se comprometió en los Acuerdos de La Habana y del Teatro Colón a apoyarlos plenamente en su proceso de tránsito de alzados en armas a ciudadanos del común.

Ahora bien, hay que resaltar que estaba claro desde siempre que el proceso de implementación de los Acuerdos era y será, un campo de disputa política con cualquier gobierno que esté al frente de esta tarea –si se priorizaba la desmovilización y reincorporación colectiva o individual, con todas las implicaciones que esto conlleva; cómo iba a ser el enfoque de los programas de desarrollo rural con enfoque territorial, los conocidos PDETs; etc.-, por cuanto es probable que los miembros de las extintas FARC buscaran que en ese proceso de implementación se reflejara su propia visión política de cómo hacerlo y en igual sentido lo haría cualquier gobierno. Eso no es un tema novedoso, era algo plenamente previsible y mucho más cuando la Corte Constitucional al avalar la constitucionalidad y legalidad de los Acuerdos, estableció que era responsabilidad de los siguientes tres gobiernos la implementación, pero en concordancia con las políticas públicas de cada gobierno, dejando allí un margen de maniobra a los gobiernos, pero también de controversia acerca del enfoque de la implementación.

Los cerca de dos mil excombatientes y sus familias hicieron marchas en la ciudad de Bogotá, acompañadas por sectores ciudadanos y especialmente en la Plaza de Bolívar, planteando de manera clara y precisa las razones de su peregrinación, eso sí buscando ser una peregrinación sin alborotos, ni bulliciosa, y por supuesto sin acudir a la violencia. Y se produjo lo que pocos esperaban: el Presidente Duque aceptó recibir una delegación de la ‘peregrinación’. En esto hay que decirlo, jugaron un papel fundamental, el apoyo de la comunidad internacional –la Misión de la ONU, los embajadores de la Unión Europea y los países garantes-, el propio manejo de la ‘peregrinación’ y dos funcionarios del Alto Gobierno que han estado al frente de la implementación y la reincorporación, el Consejero Presidencial para la Estabilización y Consolidación, Emilio Archila y el Director de la Agencia de Reincorporación, Andrés Felipe Stapper, quienes estuvieron pendientes de la peregrinación y de buscar salidas positivas a la misma.

Efectivamente el viernes 6 de noviembre el presidente Duque recibió en la Casa de Nariño, junto con los funcionarios Archila y Stapper, a una delegación de siete líderes de la ‘peregrinación’ –uno por cada región donde están los procesos de reincorporación-, encabezada por Pastor Alape el delegado ante el Consejo Nacional de Reincorporación (CNR). Esta reunión, que fue un desayuno de trabajo, se llevó a cabo en un ambiente amable entre las dos partes y se llegaron a unos puntos de acuerdo. Pero lo más relevante, desde el punto de vista simbólico, fue el inicio del desmonte de la estigmatización que hasta el momento se ha dado a los firmantes del Acuerdo, expresado en el hecho mismo de la reunión con el jefe de Estado.

Es necesario resaltar la actitud positiva de apoyo a la reincorporación de los excombatientes, por parte del Presidente. Así como su compromiso en que se acelere el proceso de definir la asignación de tierras y vivienda para los firmantes del Acuerdo y una reunión con la Ministra del Interior, el Viceministro y el director de la Unidad Nacional de Protección (UNP) para revisar requerimientos de seguridad y los dispositivos estatales en esa dirección. Igualmente se acordó realizar siete reuniones territoriales, con la participación de los firmantes del Acuerdo en los territorios para valorar el proceso de implementación y las necesidades que tienen ellos y cómo darles respuesta. Igualmente insistieron los delegados de los firmantes del Acuerdo, en la importancia de estructurar un ‘sistema integral de reincorporación’ que articule la acción de los diversos entes estatales.

No hay duda que fue una iniciativa novedosa la adelantada por los firmantes del Acuerdo de Paz, donde lo más relevante va a ser comenzar a mostrarse como parte de ese ‘movimiento social en construcción de los firmantes’, que se manifiesta por sus derechos y demandas derivadas del Acuerdo, del cual fueron signatarios y acudiendo a formas novedosas de visibilización de las cuales está claramente ausente el uso de la violencia, ni simbólica ni real, mostrando así el contraste de anteriores hombres guerreros que ahora actúan como constructores de paz.

 

 

Alejo Vargas Velásquez é Director del Centro de Pensamiento y Seguimiento al Diálogo de Paz – UN

 

Imagem: Colombia Fighting for Peace

Por: Leon Hernandez

Operação do SOUTHCOM no Caribe: objetivos políticos das operações antidrogas dos EUA

João Estevam dos Santos Filho

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

 

No dia primeiro de abril de 2020, a administração de Donald Trump anunciou a implementação de uma operação antidrogas no Mar do Caribe, com a finalidade de impedir que os cartéis presentes na região aproveitassem a situação de pandemia do COVID-19 para aumentar a comercialização de drogas. Assim como em outras operações antinarcóticos lideradas pelos EUA, esta também é organizada pelo Comando Sul (SOUTHCOM), responsável pera área que vai da América Central ao sul do continente. A operação conta com embarcações de combate e de patrulhamento costeiro, helicópteros de apoio e de combate, bem como aeronaves de inteligência, resultando em um aumento expressivo no número de equipamentos utilizados no Mar do Caribe e no Pacífico Oriental.

Por outro lado, também participam forças de países da região andina (Colômbia) e centro-americana (Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras e Panamá) – como parte da Força Tarefa Conjunta Interagências – Sul, e de países europeus, que contribuiriam com apoio de inteligência. Além disso, é coordenada com outras agências de segurança norte-americanas, como a Alfândega e Proteção de Fronteiras e a Administração de Fiscalização de Drogas.

Outro componente importante dessa operação é o envio de efetivos do Exército dos EUA para a Colômbia. Trata-se de 48 militares da Brigada de Assistência de Força de Segurança, trabalhando no SOUTHCOM, destinados a apoiar operações contra o narcotráfico desempenhadas pelas Forças Armadas colombianas, através de assessoramento técnico e treinamento em áreas como logística, serviços e inteligência, atuando também no intercâmbio de informações entre EUA e Colômbia. O tempo da presença desses efetivos será inicialmente de quatro meses, sujeito a ampliação. Essa missão mlitar – a primeira na América Latina – tem sido objeto de discussões entre membros dos três Poderes da Colômbia: por um lado, os críticos dessa presença afirmam que é necessária a autorização do Congresso colombiano; entretanto, o governo de Iván Duque nega essa necessidade pelo fato de não ser o caso de tropas que atuarão em combate no país. Apesar dessas controvérsias, a presença das tropas estadunidenses não foi revogada, tendo suas atividades sido reiniciadas.

Esses eventos se dão num contexto de intensificação da crise política venezuelana, tendo o Departamento de Justiça norte-americano acusado Nicolás Maduro de tráfico internacional de drogas, oferecendo uma recompensa de US$15 milhões por informações a fim de condená-lo à prisão. Também foram acusados de tráfico outros membros do governo, como o ministro da Defesa, o ex-diretor da inteligência militar e o ministro de Indústria e Produção Nacional; no caso destes, o governo norte-americano oferece US$10 milhões por informações que levem os à prisão. Além disso, em maio deste ano, foi desarticulada uma operação conduzida por mercenários norte-americanos e dissidentes militares venezuelanos para derrubar e apreender Maduro. Apesar de não haver provas de participação de autoridades políticas dos EUA, esse foi um acontecimento que demarcou o clima de tensão entre os dois governos.

Apesar de oficialmente não ser dirigida contra o governo de Nicolás Maduro, a recente operação antidrogas é mais um episódio nas relações entre EUA e América Latina que demonstra o caráter político das iniciativas contra o narcotráfico promovidas pelo Estado norte-americano. A justificativa de combate às drogas também foi utilizada para a intervenção militar no Panamá em 1989 (com a apreensão do presidente do país, Manuel Noriega, que foi condenado e preso nos EUA). A elaboração e execução do Plano Colômbia também teria ocorrido para promover os interesses de membros das elites políticas norte-americanas e colombianas ligados a empresas transnacionais, com interesses no combate aos grupos guerrilheiros (STOKES, 2005). O interesse em construir um ambiente minimamente estável para os investimentos de empresas transnacionais também teria guiado a implementação da Iniciativa Mérida no México (MERCILLE, 2011; AVILÉS, 2017).

Assim, a operação antidrogas promovida pelo Comando estadunidense parece oferecer mais uma fonte de pressão política contra o governo de Nicolás Maduro. Apesar de não significar uma intervenção, como no caso panamenho, essa ação militar implica em uma tentativa de intimidação, bem como uma justificativa para o estacionamento de recursos perto do mar territorial venezuelano. Desse modo, o episódio lança luz para o modo como as iniciativas de combate às drogas, segundo o discurso de “guerra às drogas” – promovida pelas sucessivas administrações norte-americanas desde a década de 1970 – possuem um caráter fortemente político, sendo usado para deslegitimar os oponentes e justificar ações mais “duras”.

Por outro lado, também cabe ressaltar o papel que a Colômbia ainda desempenha nas ações norte-americanas voltadas para a região. Desde o início da década de 2010, com o enfraquecimento das guerrilhas, o governo colombiano tem oferecido seus recursos a fim de contribuir com a política de segurança estadunidense para a América Latina, como no caso do treinamento de forças de segurança de países centro-americanos e caribenhos conforme o know-how deixado pelo Plano Colômbia. Essa situação, por sua vez, implica em uma continuidade da dependência colombiana na área de segurança (TICKNER; MORALES, 2016). Nessa situação, o país andino busca desempenhar o papel de aliado dos EUA inclusive em situações de tensão regional. Nesse sentido, o presidente colombiano reuniu-se em Bogotá com Juan Guaidó, autodeclarado presidente interino da Venezuela e Mike Pompeo, secretário de Estado norte-americano na Conferência Hemisférica contra o Terrorismo a fim de discutir a situação venezuelana. Também em outra ocasião, o presidente colombiano comprometeu-se com o governo norte-americano em “restaurar a democracia” na Venezuela em uma reunião anterior ao encontro do Grupo de Lima – criado para pressionar a administração de Maduro.

Portanto, a operação antidrogas comandada pelo SOUTHCOM demonstra o uso político do combate ao narcotráfico pelo Estado norte-americano na América Latina, como também ocorreu nos casos do Panamá, da Colômbia e do México. Ademais, também mostra como, para a realização dessas ações, são utilizados aliados regionais, como é o caso da Colômbia, que deu continuidade a sua inserção internacional dependente em relação aos EUA, contribuindo para a realização dos objetivos políticos da grande potência na região.

 

Referências bibliográficas

AVILÉS, W. The drug war in Latin America : hegemony and global capitalism. Abingdon, Oxon ; New York, Ny: Routledge, 2017.

MERCILLE, J. Violent Narco-Cartels or US Hegemony? The political economy of the ‘war on drugs’ in Mexico. Third World Quarterly, [S. l.], v. 32, n. 9, p. 1637–1653, 2011.

TICKNER, Arlene; MORALES, Mateo. Cooperación dependiente asociada: Relaciones estratégicas asimétricas entre Colombia y Estados Unidos. Colombia Internacional, Bogotá, v. 1, n. 85, p.171-205, 2016.

STOKES, D. America’s other war: Terrorizing Colombia. Londres: Zed Books, 2005.

 

Imagens: https://www.southcom.mil

Conflito no México: dos movimentos guerrilheiros aos cartéis de drogas

João Estevam dos Santos Filho: mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). E-mail: joaoestevam08@gmail.com

 

Atualmente, o México é palco de cinco conflitos armados: primeiro, entre o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e o governo nacional; segundo, entre o Exército Popular Revolucionário (EPR) e o governo nacional; terceiro, entre os grupos de autodefesa e o governo nacional. Além desses, o país também passa por conflitos entre as Forças Armadas e os cartéis de drogas, que têm gerado um número muito alto de mortos e feridos por todo o país e, por último, cabe ressaltar os grupos paramilitares que se formaram sobretudo no estado de Chiapas.

O primeiro dos conflitos  citados, entre o Estado mexicano e o Exército Zapatista, iniciou-se em 1994 com a ocupação de seis cidades em Chiapas, com reivindicações de pautas sociais pelos zapatistas (educação, saúde, trabalho, terra, dentre outros). A maioria de seus integrantes são indígenas, provenientes de distintas etnias maias de Chiapas (HAAR, 2012a). O cessar-fogo foi decretado pelo governo mexicano em 12 de janeiro de 1994, mas desde então vem se desenrolando o que muitos chamam de “guerra de baixa intensidade”, com episódios de ocupação militar pelo governo na chamada “zona de conflito” (municípios de Ocosingo, Altamirano y Las Margaritas e regiões adjuntas). Entre 1994 e 1996 o conflito produziu 155 mortes, mas nenhuma foi registrada desde então – o conflito entre o grupo insurgente e o governo persiste, mesmo sem enfrentamentos armados (UPSALA, 2019a). As negociações entre o governo mexicano e o grupo zapatista resultaram na aprovação de uma Lei Indígena em 2001 que legitimava as ocupações zapatistas em determinadas localidades do território de Chiapas. A estrutura de governo criada pelo EZLN incluiu a criação de “municípios autônomos” e de Juntas de Bom Governo a partir de 2003 (HAAR, 2012b).

Até finais da década de 1990, o conflito entre o Estado mexicano e o Exército Zapatista podia ser considerado um “conflito de baixa intensidade”. Nesse sentido, o Exército mexicano reestruturou as suas tropas para utilizar unidades militares menores, com presença dispersa pelo território de Chiapas, para dissuadir novos surtos guerrilheiros. Além disso, a mídia também teve papel importante nesse tipo de conflito, uma vez que o governo utilizava as imagens mostradas na televisão para mobilizar a opinião pública a seu favor. Também cabe ressaltar que, nesses confrontos, as Forças Armadas mexicanas também utilizavam métodos “ilegais”, como tortura, massacres a população civil, dentre outros (CISNEROS, 2015). Atualmente, o EZLN ainda mantém uma postura revolucionária contra o Estado mexicano tal qual encontra-se atualmente, mesmo após  a vitória eleitoral do candidato de esquerda Manuel López Obrador, que venceu as eleições presidenciais de 2018.

O segundo conflito se dá entre o governo nacional mexicano e o grupo guerrilheiro denominado Exército Popular Revolucionário (EPR). O EPR surgiu em 1994, influenciado pelas ações do movimento zapatista, sendo constituído por um conjunto de 14 organizações guerrilheiras, com a fusão Partido Revolucionário Trabalhador Clandestino União do Povo (PROCUP, na sigla em espanhol), mas estes começaram a sair do grupo a partir de 2001. O ponto de partida das ações do EPR foi o Massacre de Aguas Blancas, no qual 17 camponeses foram assassinados. Embora o conflito entre o EPR  e governo tenham deixado um total de 53 mortos entre 1996 e 1998, não foram registradas mais mortes deste então – ainda que o EPR tenha seguido a realizar algumas ações armadas com pouca expressão, como, por exemplo, explosões de infraestruturas (LOFREDO, 2006).

O terceiro conflito existente no México expressa-se entre o governo e as autodefesas comunitárias. Estas surgiram a partir dos primeiros meses de 2013, tendo como ação inicial a tomada de armas de policiais pela Autodefesa de La Ruana. Algumas horas depois uma ação semelhante foi feita no município de Tepalcatepec e, alguns dias depois, em Buenavista Tomatlán. A partir de novembro de 2013, o Conselho de Autodefesas decidiu expandir suas ações a outros municípios da região de Tierras Calientes. No final desse ano já tinham ocupado 17 municípios e em outros sete tinham uma presença periférica; ao passo que em janeiro de 2014 ocupavam 26 municípios e seguiram avançando. Dentre esses grupos, encontravam-se as Autodefesas de Michoacán, uma das principais e cujos enfrentamentos com grupos narcotraficantes gerou 66 mortes entre 2013 e 2015 (MANZO, 2015).

Diferentemente dos grupos guerrilheiros, o principal objetivo das autodefesas é combater as ações do grupo ligado ao crime organizado Los Cabelleros Templarios, cuja influência na região de Michoacán e outras áreas de Tierras Calientes é bastante intensa. Dessa forma, ao invés de se insurgirem contra o Estado mexicano, essas organizações buscavam muitas vezes ajudar as forças da Polícia Federal e do Exército na garantia da segurança de várias comunidades (sobretudo as periféricas). Em inícios de 2014 uma grande parcela dos indivíduos ligados às Autodefesas de Michoacán foram desmobilizados e reincorporados nos Corpos de Defesa Rural – entretanto, alguns integrantes não entregaram as armas, por isso, muitas autodefesas continuam em operação (MANZO, 2015). Em 2019, foram registrados a presença de ao menos 50 grupos de autodefesa que operam nos municípios de Guerrero, Michoacán, Veracruz, Morelos, Tamaupalias e Tabasco; desses, apenas seus se institucionalizaram, formando polícias comunitárias (que são reconhecidas legalmente). É importante notar também que alguns desses grupos entram em confronto entre si por disputas territoriais e outros são suspeitos de se envolverem com organizações criminosas – ou até serem grupos de fachada para atividade de crime organizado.

O México também é palco de confronto entre as forças do Estado e de grupos paramilitares. Tais grupos foram criados entre 1994 e 1995, nos estados de Chiapas, Guerrero e Oaxaca, relacionado à emergência do EZLN e à falta de autonomia que passaram a ter elites locais, membros do Exército e da Polícia e políticos do Partido Revolucionário Institucional (PRI), que governou o país durante a maior parte do século XX. Desse modo, esses grupos paramilitares surgiram com o propósito de combater o EZLN no estado de Chiapas, por meio de estratégias de contrainsurgência. Dentre os financiadores e apoiadores dos paramilitares encontram-se: grupos externos a Chiapas, membros do governo federal, grupos partidários do PRI a nível local e membros da força pública. Esses grupos também foram responsáveis por diversos crimes humanitários, incluindo a realização de massacres contra a população civil. Apesar de esforços do governo federal (como no caso da administração de Vicente Fox) em combater esses grupos, eles ainda persistem e realizam confrontos com tropas públicas. Dentre eles, o principal é o intitulado “Desenvolvimento, Paz e Justiça” ou apenas “Paz e Justiça”, formado em 1995 (OLNEY, 2011).

Por fim, o conflito armado que mais tem feito vítimas nos anos recentes é o confronto entre as Forças Armadas (sobretudo o Exército) e os cartéis de drogas, presentes a nível nacional. Durante as décadas de 1980 e 1990, o México surgiu como rota de passagem das drogas – sobretudo cocaína – que era produzida nos países andinos (Colômbia, Peru e Bolívia, principalmente) em direção ao mercado norte-americano. Com a militarização do combate ao narcotráfico, por parte dos Estados andinos, com a utilização das Forças Armadas no combate à produção e comercialização de entorpecentes e com a implementação de programas de interdição e fumigação aérea por parte do governo dos Estados Unidos, os grandes cartéis da Colômbia e dos demais países andinos passaram por um processo de declínio (ÁLVAREZ; LANDÍNEZ; NIETO, 2011).

Assim, a partir da década de 2000, os grupos narcotraficantes mexicanos, a princípio de “pequeno porte” passaram a ganhar importância e, dessa forma, crescer em recursos e poder. Desse modo, foram criados os grandes cartéis de drogas no território mexicano, os quais exportavam o produto para os Estados Unidos. Esse crescimento também acabou gerando maior violência, com os confrontos entre as forças estatais e as dos cartéis, além de acabar por influenciar o poder público, corrompendo tanto políticos quanto membros da Polícia (ÁLVAREZ; LANDÍNEZ; NIETO, 2011).

O território mexicano encontra-se dividido em zonas de influência sob o domínio de oito cartéis: Cartel de Sinaloa, Cartel do Golfo, Los Zetas, Los Cabelleros Templarios, Jalisco Nueva Generación, Cartel de Juárez, Organização Béltrán-Leyva e La Familia Michoacana, sendo o maior deles o Cartel de Sinaloa, que atua nos estados fronteiriços de Chiahuahua e Baja California e controla entre 40% e 60% do tráfico de drogas do país. Seu líder anterior era o famoso traficante Joaquín “El Chapo”. Entre 2006 e 2016, o conflito referente ao narcotráfico gerou cerca de 80.000 mortos. Além disso, mesmo atualmente o México passa por uma onda de violência que advém sobretudo de confrontos entre narcotraficantes e entre estes e as forças policiais e militares.

A partir de 2006, no governo de Felipe Calderón (2006-2012), o Estado mexicano passou a empregar as Forças Armadas, sobretudo o Exército, para combater o crime organizado no país, militarizando assim a segurança pública. Essa política também continuou durante o governo de Enrique Peña Nieto (2012-2018) e permanece até hoje, durante o governo de Manuel López Obrador (eleito em 2018). Entretanto, essa estratégia de combate ao narcotráfico não tem gerado grandes resultados na resolução dos conflitos no país, o que levou ao atual governo prometer uma reversão dessa política, com a criação de uma Guarda Nacional para lidar com o narcotráfico e a imigração ilegal (BENÍTEZ, 2019). Apesar disso, a proposta de criação dessa Guarda Nacional ainda tem sido vista como uma forma de militarização da segurança pública mexicana, uma vez que o Exército ainda continua com grande voz e atuação nessa nova instituição.

Além disso, em 2007, os governos do México e dos Estados Unidos – sendo George W. Bush como presidente na época – implementaram um programa de assistência de segurança (com grandes componentes militares) para fazer frente ao narcotráfico e à imigração ilegal na fronteira sul do México com Guatemala e Belize. Esse programa ficou conhecido como Iniciativa Mérida e esteve acoplada à política de segurança norte-americana denominada “guerra às drogas” e também à chamada “guerra ao terror”. Por meio dele foram transferidos equipamentos de defesa e treinamentos de unidades das Forças Armadas mexicanas para atuarem na área de segurança pública (TURBIVILLE JR., 2010).

Tendo em vista essas fontes de conflito, o que se pode perceber do México é que o Estado ainda enfrenta resistência de grupos armados que ameaçam o seu monopólio do uso da força coercitiva. Além disso, a grande fragmentação dessas ações armadas acabam tornando o seu enfrentamento uma tarefa difícil para as forças estatais. Porém, mais do que isso, essa situação como um todo evidencia um cenário caracterizado pela existência de fraturas entre as elites locais e nacionais, a pouca atenção que é dada a questões sociais por parte das autoridades nacionais, estaduais e municipais, bem como às complexidades dos processos sociais no México, mesmo após a perda de hegemonia do PRI, no início do século XXI. Além disso, também ressalta-se a importância da penetração norte-americana no Estado mexicano, incluindo (mas não somente) nas Forças Armadas do país, investindo em estratégias que se demonstraram falhas – como a militarização da segurança pública – e que servem aos interesses apenas de uma parcela da sociedade. Assim, os conflitos armados no México são fruto dos problemas sociais, econômicos e políticos por que tem passado o país, principalmente a partir do final da Guerra Fria.

 

 

REFERÊNCIAS

 ÁLVAREZ Gómez, Christian; LANDÍNEZ Aceros, Jaime; NIETO Rojas, Johanna. Drogas y narcotráfico en México: percepción de amenaza y construcción del enemigo. In: VARGAS Velásquez, Alejo. Fuerzas Armadas en la política antidrogas: bolivia, colombia y méxico. Bolivia, Colombia y México. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2011. p. 137-170.

BENÍTEZ Manaut, Raúl. México 2012-2018: las fuerzas armadas y el combate al crimen organizado. In: SAMPÓ, Carolina; ALDA, Sonia. La transformación de las Fuerzas Armadas en América Latina ante el crimen organizado. Lima: Centro de Estudios Estratégicos, 2019. p. 189-206.

CISNEROS, Leandro Marcelo. A guerra de baixa intensidade contras as comunidades zapatistas de Chiapas-México. Revista Percursos, Brusque, v. 16, n. 32, p. 58-84, set. 2015.

HAAR, Gemma van Der. El movimiento zapatista de Chiapas: dimensiones de su lucha. International Institute Of Social History, Amsterdã, p.1-24, 2012a.

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O Burundi e a persistência dos conflitos internos

João Vitor Tossini: Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

E-mail: vitor.tossini@unesp.br

 

O Burundi foi por mais de quatro décadas um mandato colonial da Bélgica. Durante o período colonial, as rivalidades entre os dois principais grupos étnicos do Burundi, os Hutus e os Tutsi, foram fomentadas pela potência europeia, criando uma acentuada hostilidade. A mesma prática foi implementada em Ruanda, que até 1962 era administrada em conjunto com Burundi, sendo os dois países constituintes do protetorado belga de “Ruanda-Urundi”.  Nos anos de domínio belga, parcela do grupo étnico Tutsi foi privilegiada pela força imperial para a ocupação de posições administrativas na organização colonial. Apesar da Bélgica utilizar estruturas locais de governança, a prática colonial simplificou o complexo sistema local ao dar preferência aos Tutsis e marginalizar a maioria Hutu. Dessa forma, criou-se uma das principais divisões que gerariam inúmeros conflitos internos no Burundi e em Ruanda (LONGFORD, 2005).

Em 1962, o Burundi conquistou sua independência da Bélgica como uma monarquia constitucional. A primeira eleição parlamentar do recém-independente Reino do Burundi resultava na vitória dos partidos de origem Hutu. Contudo, o monarca Mwami Mwambutsa IV, de origem Tutsi e constitucionalmente responsável por escolher o Primeiro Ministro, ignorou as urnas e apontou um Tutsi para o cargo. Assim, foi iniciado um longo período de instabilidade política, primeiramente marcado por uma tentativa fracassada de golpe de Estado por parte das forças policiais, nas quais os Hutus eram predominantes, em 1965. O Exército, composto em sua maioria por Tutsis, respondeu com uma série de expurgos direcionados aos militares Hutus e ataques contra civis, causando a morte de 5 mil indivíduos (PERI, 2006).

No ano seguinte, em resposta à tentativa de tomada do poder por parte dos Hutus, um golpe de Estado liderado pelo então capitão, e recém-empossado Primeiro Ministro, Michel Micombero da etnia Tutsi obteve sucesso e instaurou uma república. Micombero aboliu os demais partidos políticos, estabelecendo o unipartidarismo na República do Burundi. Os dez anos de governo Micombero seriam marcados pelo autoritarismo governamental baseado principalmente no apoio da etnia Tutsi (CHRÉTIEN, 2008). Em 1972, eclodiu uma revolta Hutu no sul de Burundi que atingiu rapidamente outras regiões. Como resposta, o governo iniciou uma campanha de repressão que resultou em aproximadamente 150 mil Hutus mortos, forçando outros milhares a deixar o Burundi em direção aos países próximos. A ação de Micombero foi caracterizada internacionalmente como um genocídio contra os Hutus (USIP, 2004; PERI, 2006).

Nesse contexto, durante o genocídio de 1972, os Estados Unidos se limitaram a enviar ajuda humanitária e evitar ações que pudessem ser interpretadas como simpáticas aos Hutus. Parte dos oficiais norte-americanos não consideravam o Burundi como um ator relevante para a política externa do país e, temendo o avança da influência soviética, buscavam evitar atritos com o governo liderado pelos Tutsis. Assim, houve uma ausência de uma severa resposta internacional com medidas econômicas ou políticas contra o governo Micombero, especialmente por parte dos Estados Unidos, um dos principais parceiros comerciais do Burundi, o que também se repetiria em momentos similares no futuro.  (TAYLOR, 2012).

Quatro anos depois do início da política contra os Hutus, em 1976, Micombero, crescentemente impopular entre partes da base militar, sofreu um golpe de Estado liderado pelo Coronel Jean-Baptiste Bagaza, igualmente da etnia Tutsi. Bagaza manteve o sistema de partido-único, estabeleceu eleições em 1981 para legitimar o seu governo e limitou a liberdade religiosa da população (YOUNG, 2010). Ademais, Bagaza colocou fim à política repressiva contra os Hutus, amplamente adotada por Micombero (USIP, 2004). O governo de Bagaza seria derrubado em 1987 quando este, por sua vez, sofreu um golpe por parte do Major Pierre Buyoya, da etnia Tutsi, representando descontentamentos dentro do Exército em relação às políticas de Bagaza.

O regime de Buyoya não divergiu dos seus predecessores, mantendo um governo autoritário e unipartidário por meio de um Comitê de Salvação Nacional. Nesse cenário, em 1988, uma revolta Hutu resultou em violenta resposta governamental, levando ao massacre aproximadamente 20 mil indivíduos majoritariamente dessa etnia. Nos anos seguintes, devido às pressões internacionais, Buyoya adotou uma política moderada, com a admissão de Hutus nos cargos governamentais, incluindo no posto cerimonial de Primeiro Ministro. Contudo, Buyoya negou a representação proporcional aos Hutus, o que significaria um governo de minoria Tutsi.

O tom relativamente moderado de Buyoya, após os massacres de 1988, gerou descontentamento de parte dos Tutsis no governo e no Exército. Apesar disso, o presidente se manteve no poder e prosseguiu com políticas conciliadoras. Em fevereiro de 1991, uma Carta de União Nacional foi aprovada pela população em referendo, prevendo o fim do regime ditatorial, instauração de nova constituição e medidas para melhoria das relações entre os Hutus e Tutsis, incluindo direitos iguais e a condenação da violência étnica. No ano seguinte, em 1992, ministros e militares Tutsi participaram de uma tentativa fracassada de golpe de Estado visando evitar novas reformas. Nesse mesmo ano, com o apoio de diversos países da comunidade internacional, incluindo os membros do Conselho de Segurança da ONU, (USIP, 2004) foi decretado o fim do sistema unipartidário e a adoção de uma constituição com o poder investido em um presidente com mandato de cinco anos, com eleições agendadas para junho de 1993 (UNHCR, 2004).

As eleições gerais de junho de 1993 resultaram na vitória do candidato Melchior Ndadaye da etnia Hutu, colocando fim a três décadas do domínio político dos Tutsis. Em julho, uma tentativa fracassada de golpe ocorreu por parte do Exército, dominado por Tutsis e apoiadores do antigo presidente Buyoya. Em outubro de 1993, o presidente Ndadaye foi assassinado por soldados Tutsi durante um golpe de Estado, dando início a um período de guerra civil que seria marcada pelo genocídio de uma etnia contra a outra. Entre outubro de 1993 e a redução da violência armada nos anos 2004 e 2005, o saldo foi de no mínimo 150 mil indivíduos mortos e quase um milhão de refugiados (UNHCR, 2004). Após a violência inicial, entre os anos de 1994 e 1996 ocorreram tentativas da criação de governos com a participação de ambos os grupos étnicos (HUMAN RIGHTS WATCH, 2001). O fracasso dessas empreitadas levou ao enfraquecimento da autoridade estatal e ao aumento da radicalização de grupos Hutus e Tutsis.

Em 1996, o ex-presidente Buyoya, responsável pela transição democrática de 1993, liderou um golpe de Estado visando restabelecer a legitimidade do governo e buscar uma solução pacífica para a guerra civil. Todavia, Buyoya rapidamente foi visto como ilegítimo pela maioria dos Hutus, levando à escalada do conflito. Dois anos depois, Buyoya iniciou negociações de paz que resultaram nos Acordos de Arusha de agosto de 2000 que previam, dentre outras questões, o estabelecimento de governo com participação Tutsi e Hutu. Apesar do Governo de Burundi, partidos políticos e grupos paramilitares Hutus e Tutsis assinarem os acordos, certos grupos radicais de ambos os lados se recusaram a fazê-lo. Em 2001, um governo de transição foi estabelecido e um novo acordo entre o governo e o maior grupo de rebeldes Hutus, o “Conselho Nacional para a Defesa das Forças Democráticas” (CNDD-FDD), foi firmado em 2003. Neste mesmo ano, ocorreram eleições gerais e Domitien Ndayizeye, da maioria étnica Hutu, tornou-se presidente (BURUNDI, 2018). Em 2003, visando garantir a continuidade do processo de paz e o fim dos conflitos no país, a União Africana (UA) enviou uma força de paz ao Burundi intitulada “Missão da União Africana no Burundi” (AMIB). Adicionalmente, no ano seguinte, o Conselho de Segurança das Nações Unidas estabeleceu a “Operação das Nações Unidas no Burundi” (ONUB), estando ativa entre maio de 2004 e dezembro de 2006 (PERI, 2006). Mesmo com o fim da guerra civil, que custou a vida de cerca de 300 mil pessoas, casos de violência esporádica ocorreram nos anos de 2007 e 2008.

Em abril de 2015, o presidente Pierre Nkurunziza, da etnia Hutu e ligado ao CNDD-FDD, declarou intenção de concorrer a um terceiro mandato presidencial, após as vitórias nas eleições de 2005 e 2010. Opositores alegaram que a decisão de Nkurunziza e de seu partido era inconstitucional. Apesar de a Suprema Corte do país emitir decisão favorável ao presidente, seus membros alegaram terem sido pressionados pelo governo durante os dias anteriores à votação e alguns optaram por fugir do país. Nos dias seguintes, em 13 de maio, ocorreu uma tentativa fracassada de depor Nkurunziza, o que gerou forte resposta do governo. Perseguições políticas e restrição da liberdade de expressão retornaram ao centro da prática governamental. Com o crescimento de protestos contra o presidente, houve confrontos entre a população civil e militares. No fim de maio, era estimado que aproximadamente 100 mil pessoas haviam deixado o Burundi na condição de refugiados (KARIMI; KRIEL, 2015).

Apesar da pressão de órgãos internacionais, incluindo a UA e a Organização das Nações Unidas (ONU), o governo realizou eleições gerais no fim de junho, boicotadas pela oposição. Nkurunziza foi reeleito para o seu terceiro mandato. Nesse contexto, a UA declarou a intenção de enviar tropas para o Burundi visando proteger os civis da violência entre o governo e grupos opositores. O presidente eleito declarou que as forças da UA não eram bem-vindas no país (BURUNDI, 2018).

A vitória do presidente Nkurunziza nas eleições de julho de 2015 influenciou diretamente no agravamento da situação interna do Burundi. A crise constitucional transformou-se em conflito de baixa intensidade entre o governo e grupos rebeldes, levando 400 mil pessoas a deixarem o Burundi como refugiados entre 2015 e 2017. Concomitantemente, o cenário político e étnico voltou a polarizar o Exército que, desde o fim da Guerra Civil, implementou um programa de diversificação de seu efetivo e distanciamento de questões políticas, ao passo que participou de operações de manutenção da paz em outros países, ganhando reputação interna e externa. Desde 2015, o governo Nkurunziza iniciou uma política de perseguição e punição aos seus oponentes dentro das fileiras do Exército (INTERNATIONAL CRISIS GROUP, 2017). Destarte, uma década de programas que objetivavam profissionalizar e despolitizar essa força militar foi lentamente corroída, gerando fissuras entre os seus diversos setores e colocando as Forças Armadas do Burundi de volta ao centro da política nacional.

Visando legitimar a sua continuidade no governo, Nkurunziza estabeleceu a realização de um referendo em maio de 2018, que previa a possibilidade de sua continuidade no cargo até 2034 (BURUNDI, 2018). A vitória de Nkurunziza no referendo constitucional de 2018 foi marcada pela suspeita de coação, repressão e assassinato de ao menos 15 opositores.  Diante desse quadro volátil no âmbito civil e militar, aproximadamente 1,200 pessoas morreram entre 2015 e 2018 em embates (BURUNDI, 2018). Nesse período, após a ONU pedir para que a Corte Penal Internacional investigasse as violações aos Direitos Humanos no país, Nkurunziza retirou o país da jurisdição da Corte (DAHIR, 2020).

O conflito mais recente, iniciado pelo desejo do presidente de continuar no cargo, se prolonga com o surgimento de pequenos grupos rebeldes com organização similar aos grupos rebeldes existentes nos anos de guerra civil (UPPSALA, 2020). Com um crescente desgaste político, em junho de 2018, Nkurunziza anunciou que não concorreria nas eleições gerais de 2020 (NIMUBONA, 2018).

O Major-General Evariste Ndayishimiye, da mesma etnia Hutu e partido de Nkurunziza, foi oficialmente declarado como o vencedor da eleição presidencial em maio de 2020 (TAARIFA, 2020). Contudo, a campanha eleitoral foi marcada pela violência, prisões arbitrárias e intimidação de opositores por parte do governo Nkurunziza, apoiador de Evariste. Assim, entre janeiro e março, ocorreram 81 mortes ou execuções extrajudiciais, mais de 20 casos de tortura, 204 prisões arbitrárias, dentre outras violações grandemente associadas aos apoiadores de Evariste. Além disso, no dia de votação, foram relatadas pela Iniciativa de Direitos Humanos do Burundi (Burundi Human Rights Initiative) práticas irregulares como: a ocorrência de coerção, prisão de membros da oposição, e membros do partido de Nkurunziza votando múltiplas vezes (BHRI, 2020). Por fim, utilizando-se das políticas de isolamento derivadas da pandemia da COVID-19, o governo do Burundi promoveu uma eleição geral sem observadores internacionais – indivíduos imparciais que, representando outros Estados ou organizações, fiscalizam a condução do processo eleitoral -, aprofundando dúvidas sobre sua legitimidade e contestações dos partidos de oposição, predominantemente Tutsis (DAHIR, 2020).

Com o exposto acima, desde sua independência, o Burundi possui um histórico marcado por conflitos internos entre as suas duas principais etnias, os Hutus e os Tutsis. Depois de mais de quatro décadas, essas partes gradativamente buscaram acordos que reestabeleceram uma política de convivência étnica e relativa estabilidade política. Assim, entre meados dos anos 2000 até 2014, o Burundi passou por um período de relativa estabilidade, redução da violência étnica e profissionalização de suas Forças Armadas. Contudo, em 2015, contrariando a constituição, o Presidente Nkurunziza anunciou a sua participação nas eleições gerais visando um terceiro mandato. A vitória de Nkurunziza em uma votação questionada interna e externamente resultou em protestos civis e na retomada de conflitos esporádicos e de baixa intensidade ao redor do país, assim como na polarização das forças militares. Da mesma forma, as eleições presidenciais de 2020 foram caracterizadas pela violência e perseguição política que favoreceram o vencedor, Evariste Ndayishimiye, protegido de Nkurunziza.

Com a morte de Nkurunziza em junho de 2020, após um ataque cardíaco, seu sucessor não poderá contar com a apoio de uma figura que dominou a política de Burundi por 15 anos e elevou-se ao posto de “Guia Supremo do Patriotismo” durante seus turbulentos anos no governo (PIERRE, 2020). Logo, o novo Presidente eleito assumirá o cargo com sua legitimidade questionada devido às eleições duvidosas e sem o apoio de uma personalidade tradicional da política nacional. Concomitantemente, Evariste possivelmente terá maior autonomia com a ausência de seu aliado político, podendo abrir caminho para um novo período na política nacional do Burundi.

 

 

REFERÊNCIAS

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Imagem: Soldados do Exército do Burundi na periferia de Bujumbura em 2019. Fonte: AFP Photo/PHIL MOORE