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Jogos Olímpicos de Beijing 2022 – “Trégua Sagrada”?*

José Roberto Gnecco*

Desde sua criação em 1894 e primeira edição em 1896, os Jogos Olímpicos da Modernidade estiveram insertos dentro do contexto sociocultural de seu tempo e expressaram o zeitgeist da Humanidade. Conflitos de classe, religiosos, raciais, sociais até a expressão moderna e secular de conflitos políticos sempre estiveram presentes – não poderia ser diferente em Beijing 2022.

A própria criação dos Jogos Olímpicos da Modernidade é espírito de seu tempo, sendo uma releitura do sentido dos Jogos Olímpicos da Antiguidade na esteira do Iluminismo e do Classicismo europeus. Seu principal criador, o francês Pierre de Fredy (1863-1937), Barão de Coubertin, era um nobre no país que houvera decapitado seu rei e sua rainha, vindo a idealizar como modelo para a recuperação da glória do passado a educação por meio do esporte formadora da aristocracia na monárquica Grã-Bretanha.

Os Jogos Olímpicos da Antiguidade, oficialmente de 776 a.C. a 393 d.C., foram um dos festivais pan-helênicos compostos pelas famílias aristocráticas que viviam nas cidades-Estado gregas, os quais, pelo reconhecimento intrínseco do pertencimento de todos a um só povo – os helenos, com mesma religião, mesma base geográfica, mesma organização social, descendentes dos mesmos deuses, etc. – foram realizados regularmente e, além das atividades objetivamente neles desenvolvidas – no caso de Olímpia, as competições individuais -, eram festas religiosas para adoração a seus deuses, semideuses e antepassados. Nasceram como os jogos funerários descritos no Livro XXIII da Ilíada cantada por Homero – como consequência, em respeito aos heróis mortos, sendo que não só o fogo sagrado representa a eternidade, mas cessam-se as hostilidades entre os helenos e estes não tomariam a iniciativa da guerra contra estrangeiros – a trégua sagrada.

Ao articular os interessados em esporte de diferentes países – geralmente por meio de suas famílias reais – viabilizando a fundação do Comitê Olímpico Internacional no final do século XIX, Pierre de Coubertin esperava com os Jogos difundir a paz e preservar a ordem social dos “antigos”, de forma que só poderiam participar dos Jogos aqueles que o fizessem “amadoristicamente” – as aristocracias – pelo puro desfrute da competição em busca de ser o mais forte, o mais alto e o mais veloz – um dos lemas originais dos Jogos Olímpicos da Modernidade. Em seu início, os Jogos se consolidariam como mais um diferencial de classe dentre aqueles que possuíam tempo livre para praticar esporte e aqueles que só viviam para trabalhar – e sem acesso ao esporte.

Pierre de Coubertin houvera visto, em sua infância, a derrota francesa na Guerra Franco-Prussiana de 1870, a Comuna de Paris de 1871 e a formação da Terceira República Francesa a partir de 1870, eventos correlacionados que não colocavam a nobreza no lugar em que Pierre considerava que deveria estar. Por isso, foi buscar como modelo a educação esportiva britânica nos colégios que formavam a aristocracia.

Mais ainda, esperava que, com a recriação dos Jogos Olímpicos o envolvimento dos Países com o esporte “amador” e a própria realização dos Jogos impedissem e interrompessem as guerras! Não foi isso o que aconteceu durante a Primeira Guerra Mundial com os Jogos que seriam em 1916 e, muito menos, durante a Segunda Guerra Mundial com os Jogos que seriam em 1940 e 1944, não sendo reconhecidos os Jogos organizados pelos Países do Eixo no Japão em 1940. Fora isso, os Jogos só foram adiados uma vez em Tóquio 2020 para 2021 devido à pandemia de Covid-19.

Além de sua origem como diferencial de classe, os Jogos conviveram com questões religiosas como o abandono da participação de atletas quando a competição coincidia com dias consagrados, com questões sociais – os melhores maratonistas africanos corriam descalços -, com conflitos raciais – o boicote dos Países africanos aos Jogos enquanto perdurasse o apartheid sul-africano -, com conflitos políticos durante a Guerra Fria – inclusive nas quadras e nas arenas -, com a dopagem em busca da vitória a qualquer preço, etc.

Se os Jogos de Londres 1948 foram realizados para demonstrar que o Reino Unido se reerguia após a Segunda Guerra Mundial, os Jogos de Roma 1960, Tóquio 1964 e Munique 1972 foram realizados pelos Países derrotados na Guerra para se reapresentarem ao mundo. Além disso, são realizados tanto para business nos Países capitalistas mais desenvolvidos, quanto para apresentação e reposicionamento mundial dos Países com menor desenvolvimento relativo. Ainda, os Jogos Olímpicos e as Copas do Mundo de Futebol ocupam espaço intrínseco à realização do soft-power das Nações sendo momentos de conversações entre Chefes de Estado sem a pressão por resultados nem a rígidos compromissos – já começa aí uma certa “trégua”!

Não diferente, mas com diferenças, assim o contexto que polarizou os Jogos Olímpicos de Inverno de Beijing 2022. No auge da Guerra Fria, os Estados Unidos e as nações a eles aliadas vêm a boicotar explícita e totalmente os Jogos Olímpicos de Moscou 1980 devido a invasão soviética ao Afeganistão em 1979; em resposta, o bloco soviético vem a boicotar os Jogos Olímpicos de Los Angeles 1984 – não se esquecendo de que agora foram os Estados Unidos que invadiram Granada em 1983. Esses boicotes causaram vasta repercussão e comoção mundial e inúmeros discursos de revolta dos atletas ao verem seu treinamento de quatro anos ser desperdiçado – com pouca chance de estarem novamente em condições de competir em nível olímpico daí quatro ou oito anos.

Desta vez, os Estados Unidos anunciaram, em dezembro de 2021, boicote diplomático aos Jogos Olímpicos de Beijing sob a alegação de que a China cometeria genocídio e crimes contra a humanidade a determinadas etnias em seu interior, sendo seguidos no boicote por Austrália e Reino Unido, países componentes da recém-criada AUKUS e mais oito Países em sua órbita. O boicote diplomático não impacta na ausência esportiva dos atletas, mas na ausência das autoridades nacionais que prestigiariam o evento de forma a enfraquecê-lo politicamente, mas com o desenrolar dos fatos isso não aconteceu.

Noventa e um Comitês Olímpicos Nacionais estiveram presentes competindo nos Jogos e dentre as autoridades mais destacadas teve-se o presidente russo Vladimir Putin fortalecendo parcerias com o presidente chinês anfitrião Xi Jinping. Como pôde ser percebido, os Jogos Olímpicos de Beijing 2022 terminaram em 20 de fevereiro e o reconhecimento da independência das duas regiões autônomas do leste ucraniano pela Rússia aconteceu em 22 de fevereiro, assim como a invasão da Ucrânia veio a acontecer em 24 de fevereiro – após os Jogos. Se assim Putin viabilizou não interferir no andamento dos Jogos e em sua cobertura midiática (ROMANO-SCHUTTE, 2022, 52min), a Rússia não deixou de ser acusada pelo Comitê Olímpico Internacional pela quebra da trégua sagrada “Construindo um mundo pacífico e melhor por meio do esporte e do ideal olímpico”; a aprovação dessa Resolução pela Assembleia Geral da ONU em 2 de dezembro de 2021 instituiu a interrupção de todo conflito por sete dias antes e por sete dias depois dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Beijing 2022 (UNITED NATIONS…, 2021).

Finalmente, dos pontos de vista norte-americano e de seus aliados, o boicote diplomático aos Jogos de Beijing se insere na Guerra Fria 2.0 pela disputa da hegemonia política e comercial mundial; para a Rússia e para a China, seus movimentos estratégicos são a contrapartida para a contenção da expansão unipolar norte-americana na política, no esporte e na guerra, dentre outros.

Referências: 

ROMANO-SCHUTTE, G. International Crisis: the Ukraine Question – Panel 2. São Paulo: Seminário Conjunto INCT-INEU & IPPRI/GEDES, 22 fev. 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UxxbOorCGrc . Acesso em: 28 fev. 2022.

UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Sport for development and peace: building a peaceful and better world through sport and the Olympic ideal: Resolution adopted by the General Assembly on 2 December 2021. New York, 2 dec. 2021. Disponível em: https://undocs.org/en/A/RES/76/13 . Acesso em: 28 fev. 2022.

* O texto foi escrito em 28 de fevereiro de 2022.

**Professor da UNESP; pós-doutorando no Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais; foi representante brasileiro no Comitê Intergovernamental para Educação Física e Esporte da UNESCO.

Imagem em destaque: Cerimônia de Abertura. Jogos Olímpicos de Inverno, Beijing, 2022. Por: Presidential Executive Office of Russia/Wikimedia Commons.

Imagem no texto: O pôster oficial dos Jogos Olímpicos de Londres 1948 contém as cenas dos impactos dos bombardeios sobre o Parlamento britânico (Palácio de Westminster) durante a Segunda Guerra Mundial. Por: UK National Archives.

Armas nucleares e invasão da Ucrânia: novas facetas de velhas inquietudes sobre o regime de não proliferação nuclear

Luiza Elena Januário*

Uma revigorada preocupação com os perigos representados pelas armas nucleares foi despertada desde os momentos iniciais da invasão russa da Ucrânia, no dia 24 de fevereiro de 2022. Em seu discurso anunciando o curso de ação tomado, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, assegurou que seu país “é hoje uma das potências nucleares mais poderosas do mundo […] não deve haver dúvidas de que um ataque direto ao nosso país levaria à derrota e a consequências terríveis para qualquer potencial agressor”. O arsenal nuclear em pauta é, de fato, amplo e a menção aos efeitos de uma agressão externa contra a Rússia pode ser entendida como um lembrete para os países ocidentais acerca do poderio russo nessa seara e dos altos custos – em todos os sentidos – implicados em uma ação direta contra a nação eurasiática. 

Tal entendimento foi reforçado com a declaração de Putin do dia 27 do mesmo mês, em que o mandatário afirmou colocar as forças de dissuasão do país em “estado especial de alerta”. As armas nucleares são o elemento central em questão e, ao sinalizar uma possível disposição em recorrer a esse tipo de armamento, o ex-agente da KGB elevou ainda mais as tensões em uma tentativa de evitar um engajamento direto da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) no conflito da Ucrânia.

Deve-se recordar que bombas atômicas não foram utilizadas em uma situação de conflito desde as explosões de Hiroshima e Nagasaki ao final da Segunda Guerra Mundial, no alvorecer da era nuclear. O potencial de destruição das armas nucleares levou ao esforço de coibir sua difusão, ao mesmo tempo em que era necessário reconhecer as aplicações pacíficas da tecnologia. Sobre essa dualidade foi fundado o regime de não proliferação e a ordem nuclear que se seguiu foi estabelecida com base em dois mecanismos inter-relacionados: um sistema gerenciado de dissuasão e um sistema gerenciado de abstinência, nos termos de Walker. O primeiro diz respeito à manutenção da estabilidade internacional por meio da posse de armas nucleares por um conjunto determinado de Estados, enquanto o segundo refere-se ao compromisso dos demais Estados em não desenvolver ou adquirir esse recurso de poder.

A primeira dinâmica remete a ideia de evitar a utilização da bomba atômica por parte de um Estado mediante a ameaça de represália por outros que também dispõem de dispositivos explosivos nucleares, considerando o potencial de destruição do armamento. A lógica da dissuasão implica na necessidade de manter crível a ameaça de utilização dos arsenais nucleares, tanto no sentido da capacidade militar como da disposição política. Porém, a forma como a possibilidade de uso das armas nucleares foi abertamente colocada como uma opção é fonte, com razão, de preocupação e condenação

A doutrina militar russa atual estabelece grande importância para a dissuasão, indicando que o recurso às armas nucleares poderia ser utilizado como resposta a um ataque perpetrado com armas nucleares, outras armas de destruição em massa ou em caso de um ataque convencional massivo, restringido a última possibilidade a uma situação em que a própria existência do país estivesse ameaçada. A questão aventada então refere-se à possibilidade de que a guerra da Ucrânia seja enquadrada como tal caso. Ao se considerar o já citado discurso inicial de Putin acerca da invasão, pode-se concluir que há uma caracterização nesse sentido, em que se ressalta o ambiente mais amplo de segurança internacional com a expansão para leste da OTAN e o posicionamento dos EUA. O presidente afirmou claramente que “a Rússia não pode se sentir segura, se desenvolver ou existir com a ameaça constante proveniente do território da Ucrânia contemporânea”, exacerbando o receio que o país quebre a tradição de não uso de armas nucleares.  

É pertinente recordar também que a noção de que um ataque nuclear limitado poderia ser utilizado para convencer um inimigo a desistir de uma agressão foi introduzida na doutrina russa em 2000 com o conceito de ‘de-escalação’, no sentido justamente de que se o país enfrentasse um ataque convencional que ultrapassasse sua capacidade de defesa, um ataque nuclear limitado poderia ser utilizado como resposta.  Desse modo, a perspectiva seria escalar as hostilidades com a utilização de armas nucleares com o objetivo de desescalar um conflito de modo geral. O conceito foi retomado por muitos analistas diante da invasão da Ucrânia.

De todo modo, o conflito tem estimulado diversas análises sobre o perigo das armas nucleares. Assim, alguns tópicos de interesse foram o risco de escalada acidental e proposital, os cenários em que a Rússia poderia recorrer ao seu arsenal nuclear e a visão do líder russo sobre o ambiente de segurança internacional e o uso de armas nucleares. Outra faceta dessa questão é representada pela presença de reatores nucleares em zonas de guerra, havendo grande preocupação com relação às plantas nucleares de Chernobyl e  Zaporizhzhia. 

Apesar da relevância de todos esses temas, propõe-se aqui discutir o significado da postura russa face ao regime de não proliferação nuclear e à ordem nuclear global. Um aspecto relevante nesse sentido diz respeito ao fato de que a Ucrânia possuía armas nucleares soviéticas em seu território quando se tornou independente em 1991 e abriu mão desse arsenal em 1994, em troca de garantias de segurança em termos de sua soberania e integridade territorial. Diante desse quadro, já foram realizadas considerações sobre os efeitos nocivos da postura russa para o regime de não proliferação, pois a confiança nas iniciativas diminuiria ao passo que se desenha uma imagem de que o objetivo do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) é oferecer cobertura para que os países nuclearmente armados reconhecidos como legítimos tomem as ações necessárias para atender seus interesses sem repercussões. Assim, difunde-se um entendimento de que a Ucrânia estaria mais segura com armas nucleares e que a Rússia pode realizar ações agressivas impunemente justamente por possuir a bomba atômica, parecendo indicar que a proliferação compensa.

O ponto defendido aqui é que o momento atual evidencia com dramaticidade as contradições intrínsecas do regime de não proliferação e da ordem nuclear derivada. Não se trata de uma perversão do espírito das iniciativas, mas de uma demonstração crua de sua desigualdade estrutural. A ordem nuclear construída ainda durante a Guerra Fria apresenta um paradoxo, já que, por um lado, seus valores e suas normas são difundidos com pesado financiamento por todo o mundo não só por meio de organizações internacionais, mas também por uma série de outras dinâmicas, incluindo a produção do conhecimento em universidade e think thanks – algo que foi denominado de complexo de não proliferação. Por outro lado, é muito presente uma sensação de crise iminente do ordenamento. 

Tal sensação se deve, em grande medida, à existência de uma série de injustiças relacionadas a um caráter discriminatório e desigual da ordem nuclear que assume forma clara por meio do TNP, a espinha dorsal do regime. O tratado, finalizado em 1968 e em vigor desde 1970, estabeleceu duas categorias de países, com direitos e obrigações distintas. De um lado, estavam as potência nucleares legítimas, os países que desenvolveram a bomba atômica até 1967, e de outro, todo o resto. Com essa configuração, o TNP foi acusado desde sua fundação de ser um sustentáculo do status quo, inquietação presente ao se refletir sobre as implicações da postura russa hodierna. Além do mais, o mal-estar provocado pela perspectiva de que a Ucrânia estaria mais segura com armas nucleares e que as garantias de segurança se mostraram inúteis está relacionado a um dos problemas de justiça que remete justamente à situação dos países que não possuem armas nucleares e não estão sob guarda-chuvas nucleares. Nesse contexto, só podem contar com a proteção do Direito Internacional, das normas e da moralidade – o que representa um acesso desigual à segurança global.

Propõe-se que uma noção de confiabilidade, visivelmente abalada atualmente, também é chave para essa construção. A divisão do mundo em duas categorias de países implica no entendimento de que alguns são responsáveis e confiáveis para deter armamento nuclear, e os outros não. Assim, o regime é sustentado por meio de double standarts, sendo muitas vezes difundido um discurso que estabelece que os países nuclearmente desarmados seriam irresponsáveis e não confiáveis devido à falta de maturidade política dos países, à falta de competência técnica para lidar com armas nucleares e à própria condição de subdesenvolvimento em muitos casos. Assim, está em pauta uma perspectiva que coloca em relevo as relações de poder na política internacional e um passado de colonialismo e imperialismo, constituindo outro problema da justiça na ordem nuclear. Talvez o ponto nevrálgico da situação atual seja a evidência de que as potências nucleares legítimas podem não ser tão confiáveis e responsáveis assim – como toda a discussão sobre a racionalidade de Putin indica.

Não se pretende aqui defender a proliferação de armas nucleares. Pelo contrário, postula-se a necessidade de se repensar os fundamentos das iniciativas destinadas a lidar com a questão nuclear, escapando do labirinto que impede a reflexão sobre futuros alternativos no tocante à não proliferação. Assim, a reflexão aqui proposta diz respeito ao entendimento de como o significado nocivo da postura russa com respeito à possível utilização de armas nucleares na Guerra da Ucrânia para o próprio regime de não proliferação e para a ordem nuclear global têm raízes mais profundas. A situação atual evidencia inquietudes presentes desde os momentos fundacionais das iniciativas e aponta a necessidade de repensar os parâmetros para lidar com a questão nuclear.

*Doutora e mestra em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP). Professora da Universidade Paulista (UNIP). Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). 

Imagem: Tsar Bomba Revised. RDS202 (similar à AN602 “Tsar Bomba”) no Museu da Bomba Atômica de Sarov. Por: Croquant/Wikimedia Commons.

Israel e a guerra na Ucrânia: visita de Bennett à Rússia e discurso de Zelensky ao Knesset

Karina Stange Calandrin*

 

No dia 20 de março, o Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky proferiu um discurso ao parlamento israelense (Knesset). O pronunciamento compõe uma série de aparições públicas que Zelensky vem realizando no intuito de angariar apoio às forças ucranianas. O Congresso dos Estados Unidos, a Casa dos Comuns na Grã-Bretanha, o Bundestag alemão e o parlamento europeu são outros exemplos de fóruns aos quais o presidente discursou acerca do atual conflito que se arrasta há mais de um mês.

Nos discursos feitos até então, o ucraniano criticou países, sobretudo aqueles que compõem a esfera ocidental, por não providenciarem apoio militar suficiente à Ucrânia. Em relação aos estadunidenses e aos europeus, Zelensky denunciou a relutância em impor uma zona de exclusão aérea sobre o território de seu país. Já para os israelenses, perguntou por quê Israel não teria ainda fornecido à Ucrânia o sistema de defesa antimísseis, por ele chamado de “melhor do mundo”, cunhado de “Iron Dome” ou “Domo de Ferro” em tradução livre.

Diferentemente dos demais discursos, que continham um elevado tom de crítica, para o parlamento israelense, Zelensky, que tem origem judia, deu ênfase à decepção que porventura sentia, como se esperasse um pouco mais por conta da história dos dois países. Ele afirmou que ucranianos escolheram salvar judeus durante o Holocausto, exagerando os fatos de forma a utilizar a emoção com o intuito de criar laços entre os dois países, como sugere a análise de Anshel Pfeffer

Em seu texto, Pfeffer afirma que Zelensky proferiu um discurso fortemente sionista, enfatizando que tanto Ucrânia quanto Israel são nações que buscam a paz para os seus povos e que querem apenas a “permissão para existir”, novamente ressaltando a carga emocional. Nesse contexto, referindo-se às intenções russas em relação à Ucrânia, o presidente citou com admiração uma frase da ex-Primeira-ministra Golda Meir: “nossos inimigos só querem acabar com a nossa existência”. 

Em 5 de março, dias antes do discurso proferido por Zelensky, o Primeiro-ministro israelense, Naftali Bennett, foi até a Rússia se encontrar com Putin com o intuito de mediar o conflito entre Rússia e Ucrânia. Israel, nesse momento, reiterou sua opção por não tomar um lado claro no conflito, decisão que se justifica por conta da relação entre Israel e Rússia no que tange:  (i) a Síria, país com o qual o território israelense faz fronteira; (ii) o Hezbollah, grupo que explicitamente se opõe ao regime israelita e que é apoiado por Moscou; (iii) e o Irã, país que mantém importantes parcerias estratégicas com o Kremlin em torno de seu programa nuclear e que é considerado o maior inimigo de Israel no Sistema Internacional. A adoção de uma certa neutralidade em relação ao conflito que se estende sobre a Ucrânia, assim, pode ser compreendida como um esforço de Israel no sentido de garantir que a Rússia não acionará seus parceiros para arquitetar retaliações contra Jerusalém.

Ademais, o governo israelense entende que a Rússia é responsável pela contenção do Irã e do Hezbollah na Síria, e por isso seria um parceiro importante e estratégico no que tange os interesse israelenses na região. Assim, aderir a uma posição anti-Rússia, ajudando diretamente a Ucrânia com aparatos militares, não seria interessante para Israel no momento, podendo agravar a situação na região, escalando para uma possível guerra, principalmente contra o Hezbollah. 

Zelensky compreende esta situação, por isso, diferente dos outros discursos que proferiu às demais casas legislativas ao redor do mundo, em Israel se utilizou de um discurso com forte carga emocional, visando não os parlamentares, mas sim a opinião pública israelense (a Praça Habima em Tel Aviv estava lotada e bandeiras da Ucrânia eram vistas aos montes). 

A relutância de Israel em se posicionar contra a Rússia decorre de uma série de cálculos que os israelenses consideram vitais para preservar a segurança do país. A Rússia atua como o principal intermediário de Israel na Síria, na qual os israelenses receberam liberdade para perseguir e atacar as milícias xiitas apoiadas pelo Irã, que são vistas como hostis. Esse arranjo único provou ser essencial para a estratégia de Israel em combater o Hezbollah e outros grupos apoiados pelo Irã que vêm se multiplicando na Síria, o que, por sua vez, aumentou as percepções de ameaça dos israelenses.

Israel é capaz de atuar na Síria graças à Rússia, que exerce controle quase total do espaço aéreo do país devastado pela guerra. Israel vê, assim, um grande incentivo em manter seu relacionamento com Moscou, daí a resposta silenciosa à situação na Ucrânia. Qualquer contratempo no relacionamento pode resultar no impedimento de Israel nas operações em território sírio, o que aumentaria a lista de preocupações de segurança israelitas.

Em segundo lugar, Israel passou a ver a Rússia como um ator importante no Oriente Médio para muito além do escopo da Síria. A Rússia exerce forte influência sobre as negociações nucleares iranianas, elevou seu relacionamento com as monarquias do Golfo e vem se posicionando constantemente na região no lugar da liderança estadunidense. Israel está, portanto, altamente motivado a manter seus laços com Moscou. A Rússia poderia indiretamente fortalecer o Irã, o Hezbollah e outros atores hostis se os israelenses se juntassem ao coro ocidental na condenação da Rússia. Portanto, a decisão de Israel de abster-se da condenação aberta, ao mesmo tempo em que busca o diálogo com ambas as capitais, faz parte de uma estratégia mais ampla que considera a cooperação com a Rússia essencial para a segurança israelense.

No que tange o aspecto da política doméstica em Israel, é importante ressaltar que o atual governo se formou recentemente, depois de uma crise política de dois anos que levou os israelenses a quatro eleições, mesmo durante as fases mais críticas da pandemia da Covid-19 no país. O Primeiro-ministro Bennett não possui o mesmo prestígio internacional que seu antecessor, Benjamin Netanyahu. Ele ainda é desconhecido para a maioria dos líderes globais, tem pouca experiência em fóruns multilaterais e com política internacional em geral. Netanyahu, por outro lado, tem não somente maior notoriedade internacional, mas também uma compreensão completa do sistema político estadunidense, uma vez que foi embaixador de Israel nos Estados Unidos antes de entrar para a política israelense, discursou no Congresso e é um veterano da Assembleia Geral da ONU. Esse forte contraste entre os dois desencadeou um debate em Israel, levando alguns especialistas a afirmar que Netanyahu teria sido um negociador muito mais eficaz ao lidar com Putin.

Dessa maneira, o conflito, para além das questões ligadas aos interesses nacionais de Jerusalém, transformou-se também em um impasse político de alto risco em Israel. Considerando o sistema político israelense, um parlamentarismo de coalizão, que atualmente conta com uma coalizão heterogênea (partidos de esquerda, direita e centro formam o atual governo), qualquer ação mais abrupta pode levar a uma crise política e a dissolução do parlamento (neste momento o governo de Bennett já passa por isso, por questões consideradas triviais em comparação a uma possível crise com a Rússia). Dadas as circunstâncias, Bennett tem a possibilidade de suplantar Netanyahu se conseguir balancear a crise de maneira positiva para Israel. Embora Israel seja um mediador improvável entre a Rússia e a Ucrânia, e Bennett seja um candidato ainda mais improvável para a negociação, a oportunidade parece ter chegado a ele. O encontro de Bennett com Putin e seus próximos encontros com os europeus poderiam muito bem se transformar em destaque da sua carreira política e levá-lo a um terreno muito mais seguro na política israelense.

A tomada de decisões pelo governo israelense em relação à guerra na Ucrânia é, em última análise, determinada por cálculos de segurança. Com a Rússia tendo se tornado tão central para a segurança israelense considerando o cenário de sua vizinhança imediata, seria irreal esperar que o país se envolvesse em esforços para antagonizar com Moscou. Em vez disso, ainda no início do conflito Israel optou por um curso de engajamento que busca transformar uma situação potencialmente contenciosa com o Kremlin em uma plataforma para diálogo, mediação e uma abertura para tentar emplacar esforços diplomáticos mais elevados. A manutenção da posição israelense atesta a prevalência do pragmatismo como norteador da política do país e demonstra que o lugar da Rússia na política de Israel se mantém a despeito do andamento da guerra.

* Karina Stange Calandrin é doutora em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), professora da Universidade de Sorocaba e pesquisadora do Observatório de Conflitos. Sua tese de doutorado discutiu o processo decisório em política externa israelense. 

Imagem: Prédio do Knesset. Por: James Emery.

Um conto de dois mundos: a guerra entre Rússia e Ucrânia e a percepção da mídia sobre as crianças

Maria Eduarda Guerra*

Desde o início da invasão russa na Ucrânia, no final de fevereiro, são veiculadas diariamente notícias acerca dos impactos da guerra sobre as crianças[1] do país. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) afirma que, em um mês de conflito, cerca de 4,3 milhões de crianças – ou seja, mais da metade da população infantil da Ucrânia, estimada em 7,5 milhões de crianças – foram forçadas a abandonar suas casas, sendo que, destas, 1,8 milhão atualmente são refugiadas em países vizinhos, como Polônia e Romênia, e 2,5 milhões se deslocaram internamente, caracterizando um dos maiores e mais rápidos deslocamentos infantis desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945)[2]. Todavia, a mídia parece desconhecer – ou negligenciar – a situação de outras crianças: aquelas que continuam em território ucraniano, não como deslocadas internas, mas como soldados à disposição, especialmente, do batalhão de Azov.

Fundado em 2014 como um grupo paramilitar de extrema-direita que visava defender as regiões de Donetsk e Luhansk após os protestos conhecidos como EuroMaidan e a anexação da Crimeia pela Rússia naquele mesmo ano, o batalhão de Azov é conhecido pelos uniformes pretos, pelas tatuagens de cunho neonazista, por ostentarem suásticas em seus capacetes durante as batalhas, e também pelas acusações de violência contra a população LGBTQIA+ e contra a população Roma (cigana). O batalhão foi absorvido como um regimento do exército ucraniano após as vitórias militares nas cidades de Mariupol – hoje, sob extremo ataque russo – e Marinka, tendo saído das linhas de frente em 2015 a fim de se tornar um partido político, o qual acabou por não obter grande expressão nas urnas. Estima-se que o batalhão de Azov recrute crianças desde 2015 através de acampamentos de verão, nos quais em torno de 50 crianças, com idades entre 8 e 16 anos, treinam exaustivamente em florestas nos arredores de Kyiv para se tornarem “patriotas de verdade”, dispostos a se sacrificarem em prol de seu país.

É neste contexto que crianças são treinadas para montar, manejar e utilizar armas, sob o pretexto de estarem não apenas defendendo suas famílias e seu país, mas também  se tornando mais fortes e disciplinadas. Até agosto de 2017, pelo menos 850 crianças haviam passado pelo treinamento com o batalhão. Em fevereiro deste ano, crianças a partir dos 4 anos de idade participavam de intensivos treinamentos militares que antecipavam uma – até então – possível invasão russa à Ucrânia. Dentre as razões para tal, tanto as crianças quanto as mães – em sua grande maioria – demonstravam não somente um desejo de defender seu país do invasor, mas também vingar pais, avôs, tios e irmãos que morreram durante os conflitos de 2014.

Os separatistas pró-Rússia nas regiões de Luhansk e Donetsk também contam com as crianças. Apesar de, na época, o Unicef não ter  encontrado provas de que as crianças estavam lutando no leste da Ucrânia, relatos em 2015 apontavam que crianças auxiliavam os separatistas na retaguarda, chegando, inclusive, a treinar os voluntários mais novos.  Contudo, mesmo com toda esta mobilização militar de menores de 18 anos[3] – tanto pelo lado pró-Rússia quanto pelo lado pró-Ucrânia- , falta reflexão, análise e cobertura de grande parte da mídia sobre essa situação.

Em razão do receio dos países da União Europeia (UE) e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) de entrar em guerra direta contra a Rússia, existe uma percepção entre parte dos ucranianos de que eles só podem contar consigo mesmos. Nessa conjuntura,  declarações de crianças e de parentes que integram o batalhão de Azov mostram que existe uma preocupação em saber se proteger por conta própria, sem depender de ajuda externa. Muitos integrantes do batalhão acreditam que sua atuação junto ao grupo parece algo momentâneo, dedicado à defesa da Ucrânia frente à Rússia somente enquanto o conflito durar, e que, no futuro, outras possibilidades surgirão em seus caminhos – embora alguns pais não descartem a possibilidade de seus filhos prosseguirem na carreira militar.

O que as famílias ignoram ou minimizam  são os impactos que este início precoce na vida militar pode trazer para as crianças. Além de prejudicar seu acesso a serviços básicos, como educação e saúde, muitas acabam adquirindo deficiências físicas permanentes após serem feridas em combate. O fato de serem expostas cumulativamente a sequestros, separação das famílias, assassinatos, torturas, mutilações e estupros traz também impactos psicológicos severos, como depressão e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), o que cria uma “rede de medo” composta pelas memórias interconectadas relacionadas aos traumas, na qual mesmo os menores estímulos podem desencadear flashbacks, fazendo do trauma um problema crônico de saúde.

No campo  militar, a presença das crianças – mesmo quando é considerada uma presença “voluntária”, como no caso das crianças ucranianas – é, na maioria das vezes, vista como negativa por parte da mídia e dos organismos internacionais, principalmente aqueles dedicados à proteção dos direitos humanos.  Sob a perspectiva desses atores, o contato entre o mundo infantil e o mundo bélico não somente  representa uma transgressão à proteção das crianças, mas também indica que as crianças estariam sendo intensamente manipuladas a participarem da guerra ou não teriam nenhuma alternativa melhor a não ser tomar parte nas hostilidades.

Entretanto, existe uma discrepância entre a percepção midiática das crianças associadas a grupos ou forças armadas no Norte Global e no Sul Global. A percepção que predomina é a de que, no Norte, a militarização das crianças pode ser um dos caminhos para um futuro promissor, baseado na disciplina e no patriotismo; enquanto que, no Sul, o recrutamento de crianças representa mais o fracasso das comunidades e Estados em promover oportunidades de uma infância saudável, colocando as crianças numa posição de vítimas. Evidências  disso são as campanhas promovidas por ONGs internacionais de proteção à infância e pelos Estados. Em 2009, a ONG Save The Children lançou a exposição “Make a Thing of the Past” (“Tornar algo passado”, em tradução literal), na qual, dentre outras fotografias, uma apresenta um menino segurando uma arma dentro de uma redoma de vidro, como se a criança em questão fosse um objeto em um museu, com a legenda Child Soldier – Democratic Republic of Congo, 2009” (“Criança soldado – República Democrática do Congo, 2009), e, novamente, repetindo o lema da campanha: “Devemos tornar isso algo do passado”.  Outra campanha,  desta vez, promovida pelo Escritório do Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para Crianças e Conflitos Armados, “Children, Not Soldiers” (“Crianças, Não Soldados”), abrangeu, no momento de seu lançamento em 2014, países como Afeganistão, Chade, República Democrática do Congo, Mianmar, Somália, Sudão do Sul e Iêmen. Em outras palavras: até mesmo os organismos internacionais reforçam a percepção de que o recrutamento infantil é um problema do Sul Global.

Assim, a militarização das crianças no Norte parece representar a passagem da fase infantil  para a fase adulta, adquirindo um aspecto de normalidade. Na Austrália, por exemplo, jovens que estão saindo do ensino médio são incentivados a passar um ano em qualquer uma das Forças de Defesa (Marinha, Exército ou Aeronáutica) do país, sendo remunerados para tal. Os britânicos menores de 18 anos que lutaram e morreram em combate durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foram e continuam sendo lembrados como “jovens corajosos” que atenderam ao seu “chamado histórico”. No Sul, entretanto, esta militarização parece representar a perda da inocência infantil, algo que vitimiza ainda mais estas crianças, sendo, portanto, um mal a ser combatido. No caso ucraniano, embora o país faça parte do continente europeu, sua localização ao Leste –  região menos privilegiada e mais negligenciada, possivelmente pelo passado que remete à União Soviética e ao Pacto de Varsóvia – também contribui para que as crianças ucranianas envolvidas com grupos armados passem quase despercebidas pelos meios de comunicação internacionais.

O envolvimento de crianças em atividades e treinamentos militares, embora seja uma circunstância que entre em conflito com o padrão ideal de proteção da infância, é uma realidade recorrente no cenário internacional. Justamente por isso, é necessário tornar público, difundir e analisar o que ocorre com as crianças em uma situação extrema e indefinida como o conflito na Ucrânia. Deste modo, a mídia deveria, por mais difícil que possa ser, prestar mais atenção a esta questão. Assim, poderemos ter mais elementos para entender como as crianças agem ou são levadas a agir em contextos de violência que fogem de seu controle.

[1] A definição de “criança” utilizada neste texto é a mesma presente na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, de 1989, e em diversos outros documentos internacionais – como, por exemplo, os Princípios de Paris, ou Princípios e Diretrizes sobre Crianças Associadas às Forças Armadas ou Grupos Armados, de 2007 –  e que engloba “todo ser humano com menos de 18 anos de idade, salvo quando, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”.

[2] Dados de 24 de março de 2022.

[3] A Convenção sobre os Direitos da Criança e seu Protocolo Facultativo sobre o Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados de 2002, assim como a Convenção nº 182 da Organização Internacional do Trabalho sobre Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil, desaconselham o recrutamento de pessoas menores de 18 anos pelos grupos armados e pelas forças armadas.

* Maria Eduarda Guerra é Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP), pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI-PUC-SP) e do Grupo de Estudos sobre Infância e Relações Internacionais (GeiRI Brasil). 

 

Imagem: Material para hospital na Ucrânia. Por Unicef/Flickr.

Os Estados Unidos, as disputas por hegemonia global e a América Latina

Lívia Peres Milani* 

A invasão russa à Ucrânia insere-se em um contexto já existente e mais amplo de retomada das disputas entre grandes potências, o qual foi acelerado e intensificado pela guerra na Europa. Como pontuado por Héctor Saint-Pierre, há uma disputa por hegemonia, “um movimento nas camadas tectônicas mais profundas da segurança internacional, que é onde se expressam as estruturas estratégicas das grandes potências”. A disputa envolve Estados Unidos, China e Rússia e tem dimensões globais. Assim, ainda que seja mais intensa em áreas consideradas prioritárias por tais potências, como o Indo-Pacífico e a Eurásia, regiões periféricas, como África e América Latina, também são inseridas na mesma lógica de disputa. Este movimento pode ser constatado pela crescente percepção de ameaça russo-chinesa na América Latina por parte de diferentes atores estadunidenses, um movimento anterior à guerra, mas acelerado pela mesma.

Embora os militares estadunidenses já citassem de forma esparsa China e Rússia como desafios à hegemonia dos EUA na América Latina desde o governo Barack Obama, essa percepção se acentuou nos últimos anos. Durante o governo Trump, por exemplo, o Comando Sul – divisão das forças armadas dos Estados Unidos que autoatribui parte da América Latina como sua área de responsabilidade – destacava com preocupação a influência de atores estatais extracontinentais na região, caracterizando-os como atores malignos. Esta narrativa permaneceu na administração Biden, com a nomeação de Laura Richardson para a liderança da divisão militar. Já no contexto da guerra na Ucrânia, em documento entregue ao Congresso dos Estados Unidos para audiência pública em oito de março, Richardson afirmou que “nossa ameaça condicionante número um é a RPC [República Popular da China], nossas ameaças secundárias são a Rússia, TCO [Organizações Criminosas Transnacionais] e Irã”[1]. Essa retórica mais explícita e assertiva, que coloca a disputa entre grandes potências no centro da estratégia para a América Latina mostra uma intensificação do processo.

Importante pontuar que essa percepção de ameaça ocorre apesar de China e Rússia apresentarem mínima capacidade – ou mesmo interesse – em projeção de poder regional. Conforme a base de dados sobre transferência de armamentos mantida pelo Sipri, a transferência de sistemas de armas russos para a região foi relevante nos últimos anos, porém tem sido concentrada na Venezuela. Por outro lado, Brasil, Colômbia e México, por exemplo, seguem comprando armamentos especialmente de fornecedores estadunidenses e europeus. Já a China tem participação incipiente, ainda que crescente, na venda de armas para a região. Contudo, vale ressaltar que o país desponta como fornecedor de intercâmbios para os militares – de acordo com o Comando Sul. Os investimentos chineses em infraestrutura, especialmente na construção de portos e na região do Panamá, têm sido destacados pelos militares estadunidenses como um risco. O saldo que podemos extrair desses dados é que – militarmente – as presenças chinesa e russa na América Latina não se comparam com a influência estadunidense no entorno estratégico daquelas potências.

Não são apenas os militares, no entanto, que têm percebido China e Rússia como ameaças na América Latina. A narrativa é compartilhada por membros da administração e por congressistas estadunidenses. Em evento realizado pelo Inter-American Dialogue, ao ser perguntado sobre os efeitos da guerra e sobre a “interferência” russa na região, Brian Nichols, Secretário Assistente de Estado para o Hemisfério Ocidental, respondeu que a Rússia tem ameaçado aumentar a parceria com os países da região, com a possibilidade de desestabilizá-la ou ameaçar os EUA com armas estratégicas. Nichols também apontou que os desafios regionais refletem os desafios globais.

Em 2 de fevereiro de 2022, os Senadores Marco Rúbio (Republicano – Flórida) e Bob Menendez (Democrata – New Jersey) apresentaram um projeto de lei ao Congresso dos Estados Unidos que, se aprovado, demandará do governo federal a confecção de uma estratégia de segurança própria para a região. O projeto cita a influência “maligna e prejudicial” de China e Rússia como risco aos interesses nacionais dos Estados Unidos e propõe que os EUA devem aumentar as “parcerias” e promover “cooperação em segurança” com os países da região. O projeto também afirma que os EUA devem trabalhar com “agências de segurança e law enforcement [aplicação da lei]” da América Latina para fazer frente ao narcotráfico, ao crime organizado e apoiar o império da lei [rule of law], a democracia e os direitos humanos. Aponta ainda a necessidade de recursos adicionais para aumentar os investimentos e projetos dos EUA no Hemisfério Ocidental.

Alguns aspectos importam nesses movimentos, com consequências importantes para a América Latina. Em primeiro lugar, podemos citar que a tendência de securitização da presença russa e chinesa na região significa que há maiores constrangimentos sistêmicos para os países latino-americanos. Se, durante os anos 2000, no início da mudança sistêmica, a tendência à multipolaridade teve efeitos conjunturais aparentemente positivos e permitiu a diversificação de parcerias, atualmente, os Estados Unidos buscam minimizar esta possibilidade. Neste sentido, manter relações equilibradas e cordiais com as três potências mostra-se mais difícil para os países da região. 

Ademais, em sua estratégia de retomada da hegemonia regional, há dois atores que a potência hegemônica percebe como essenciais: as forças policiais e as forças armadas. Esta escolha pode conter um aumento da militarização da Política Externa dos EUA para a região, sendo que outros atores – como a diplomacia, ou a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) ficam em segundo plano. Os projetos com os militares e com policiais latino-americanos podem contribuir para o aumento do peso político interno desses atores, os quais, historicamente, tendem à intromissão na política. De forma semelhante, a conjunção de ameaças estatais e não-estatais apresentada no projeto de lei mostra que continua a não existir uma visão de separação entre as funções dos policiais e das forças armadas – o que significaria um contínuo apoio ao emprego dos militares internamente, mesmo que este seja historicamente associado à letalidade e a violações aos direitos humanos.

Por fim, em texto publicado sobre o tema, Adam Iscason alerta sobre o risco de que os Estados Unidos apoiem governos autoritários que se adequem a suas demandas de alinhamento geopolítico. Em alguma medida, isso já acontece. Cabe ressaltar o apoio concedido ao governo interino de Jeanine Añes, na Bolívia (2019-2020) – apesar da contestada forma como essa chegou ao poder – ou mesmo o convite feito ao governo brasileiro para participar da “Cúpula das Democracias” – apesar das falas nostálgicas e de apreço ao regime burocrático-autoritário emitidas pelo presidente brasileiro.

Em resumo, a guerra na Ucrânia é um desdobramento das crescentes rivalidades entre grandes potências, sendo que a abrangência deste elemento estrutural é global, atingindo todas as regiões, inclusive a América Latina. Na região, do ponto de vista da defesa, a posição de poder dos Estados Unidos ainda é muito superior, sendo que a projeção de seus competidores é mais limitada. Ainda assim, a potência hegemônica tem visto os avanços de seus competidores em outras áreas ou em situações específicas como problemas de segurança. Como consequências para a América Latina, destaca-se a maior dificuldade de colocar em prática uma posição equilibrada e de relacionamento não-excludente entre as potências, o reforço das tendências de militarização a partir de incentivos estadunidenses e um contexto internacional menos propício à manutenção da democracia.

[1] Luciana Wietchikoski e eu analisamos este documento e as formas como o Brasil poderia reagir a esse contexto de mudanças sistêmicas em texto publicado na coluna Diplomacia e Democracia do Uol.

* Lívia Peres Milani é pesquisadora de pós-doutorado em Relações Internacionais pelo Programa “San Tiago Dantas” (Unesp/Unicamp/PUC-SP), bolsista Capes-PrInt. Pesquisadora do Gedes e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). Twitter @Livia_LPM. E-mail: livia.milani@unesp.br.

Imagem por: US Southern Command.

A Invasão Russa na Ucrânia: Razões, Tempo e Espaço – Parte 2

            Getúlio Alves de Almeida Neto*

 

Na primeira parte do texto, busquei debater duas possibilidades de análise para a decisão russa de invadir a Ucrânia. Por um lado, existe a narrativa de que Putin possui um projeto expansionista e imperialista e buscaria anexar o território ucraniano, parcial ou totalmente. Por outro, há a perspectiva de que a decisão russa de invadir o país vizinho tenha se dado a partir da escolha em fazer prevalecer seus interesses político-securitários a partir do uso do aparato militar. Nessa segunda parte, abordarei a reação pública, política e midiática à guerra.

A reação à guerra: o espanto e a percepção do tempo

Tentativas de derrubada de governo têm sido prática frequente dos últimos 30 anos, capitaneadas sobretudo por operações estadunidenses e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). A exemplo, destacam-se sobretudo as guerras do Iraque, Líbia e Síria. No entanto, um grande diferencial destas invasões em relação à promovida pela Rússia na Ucrânia perpassa, sobretudo, fatores geográficos e imagéticos. De fato, EUA e OTAN não poderiam ter pretensões de anexar formalmente territórios que não são contíguos aos seus, o que dota suas operações de derrubadas de governo de uma roupagem mais sutil e que é justificada a partir da narrativa da democracia-liberal que liberta os povos da opressão de governos ditatoriais.

Dessa forma, as invasões aos países do Oriente Médio – para além da questão do preconceito que acaba por justificá-las aos olhos de parcela da opinião pública e da naturalização de conflitos nessas regiões nas grandes mídias – parecem menos agressivas pelo simples fato de não remeterem ao caráter mais “clássico” das grandes guerras do século XX e carregarem a roupagem das chamadas “novas guerras” características a partir dos anos 1990. Já no contexto ucraniano, a imagem de tanques russos invadindo por terra a fronteira do país vizinho, evoca a percepção de uma guerra de anexação em solo europeu e mobiliza a reação que expressa o espanto pela falsa sensação de que o mundo não é palco de inúmeras outras guerras. Por esse motivo, a invasão russa à Ucrânia traz um caráter de antiguidade à guerra que parece desconexa com as concepções contemporâneas dos conflitos armados.

À luz desse cenário, parece mais provável que o espanto gerado pela invasão russa decorra do contexto geográfico e histórico no qual a guerra da Ucrânia se insere do que na decisão per se de Vladimir Putin de invadir o território ucraniano. Isso se dá, sobretudo, a partir de elementos que influenciam na percepção do desenvolvimento da guerra e na expectativa que se gera entre o público em relação ao conflito. Em primeiro lugar, pode-se alegar que a guerra      na Ucrânia é a primeira na história acompanhada minuto a minuto por todos. Vale ressaltar que a guerra entre Azerbaijão e Armênia pela região de Nagorno-Karabakh, em 2020, também ganhou espaço nas mídias sociais, com impactos na guerra de informação sobre o conflito. No entanto, este se deu em menor escala e foi menos abordado pela mídia. Ainda que tenhamos a Guerra do Golfo, entre 1990 e 1991, como primeiro exemplo de um conflito televisionado e outros exemplos de grande interesse midiático na última década, como a Guerra Civil da Síria e a expansão territorial pelo autoproclamado Estado Islâmico, a invasão russa à Ucrânia se trata do primeiro embate no qual há análises feitas de forma quase instantânea, que se avolumam na televisão e nas mídias sociais.

Há alguns aspectos intrínsecos a este conflito que podem ser levantados para explicação do grande interesse público na guerra da Ucrânia. Em primeiro lugar, a Rússia é, junto com os EUA, a principal potência nuclear do mundo e possui um dos maiores exércitos a nível mundial. Decorrente disso, as possibilidades de transbordamento do conflito para a Europa e o risco de um confronto entre Rússia e OTAN se tornam o principal elemento de preocupação e interesse das análises. Por outro lado, há também os impactos econômicos na cadeia global de suprimentos alimentícios e energéticos que aumentam a expectativa sobre os desdobramentos da guerra. Não obstante, destaco o papel exercido pelas mídias sociais e das tecnologias de comunicação que, em 2022, estão muito mais consolidadas no cotidiano das pessoas do que na década passada. Nesse sentido, possibilita      ao mundo se relacionar com os acontecimentos em solo ucraniano de forma quase instantânea. Disto, se pode afirmar que a nossa percepção sobre o tempo da guerra e suas evoluções também foi alterada. Devido à enorme quantidade de informações que encontramos todos os dias, temos a impressão de se tratar de um conflito que já tem longa duração, quando na verdade estamos, no momento da escrita, há um mês observando-o.

Além disso, a forma como temos visualizado o desenvolvimento da guerra faz com que as análises sobre os avanços táticos e estratégicos russos possam ser distorcidas. No dia em que forças russas invadiram o país vizinho, destacava-se a narrativa de que tropas russas conseguiriam uma rápida tomada da capital Kiev e, em sequência, haveria uma rendição instantânea do governo e do povo ucraniano. Nessa linha, esperava-se, também, que as forças russas teriam um avanço muito maior em menos tempo em solo ucraniano. Por esse motivo, quando passados apenas alguns dias e observado a aparente lentidão do avanço russo, ganharam espaço análises segundo as quais a estratégia de Vladimir Putin havia falhado, uma vez que o presidente russo teria subestimado as capacidades de resistência do exército ucraniano.

Embora a aparente lentidão do avanço russo em território ucraniano, marcado por baixas humanas e de armamentos que, alegadamente, seriam maiores do que se esperava, é fato que as tropas russas continuam em progresso e garantindo avanços estratégicos dentro da Ucrânia, sem demonstrações de que pretendem recuar. Segundo o mapa de monitoramento do The New York Times, Moscou já tem o domínio de grande parte do Sul Ucraniano – como visto pela conquista da cidade de Kherson e Melitopol – assegurando grande parte do acesso ao Mar Negro; intensos ataques às cidades de Mariupol, e já cerca Kiev, ainda que sem maiores avanços ao centro da capital ucraniana. No cenário em que as negociações não avançam, em razão da relutância russa em flexibilizar suas reivindicações, em conjunto com a resistência ucraniana, a guerra tende a se estender. Nesse cenário, ambas as forças – de ataque e defesa – buscarão vencer o inimigo pela exaustão. No campo militar, a Rússia parece ter a vantagem nessa perspectiva. Do outro lado, a Ucrânia busca, com apoio sobretudo europeu e estadunidense, sufocar a viabilidade política e econômica da manutenção da guerra pela Rússia, ao mesmo tempo em que prolonga o conflito a partir de uma estratégia defensiva.

Contudo, não há ainda como afirmar a real estratégia pensada por Putin e os generais russos a respeito da invasão à Ucrânia. Tendo em mente o contexto que levou à guerra e os meses que os soldados russos estiveram estacionados próximos à fronteira com a Ucrânia, a hipótese de que o ataque tenha ocorrido às pressas, de forma mal planejada, parece pouco provável. Além disso, desde 2014 o exército ucraniano vem se fortalecendo com equipamentos e treinamentos providos pelos EUA e outros membros da OTAN. Nesse sentido, é de se imaginar que o Ministério da Defesa da Rússia e Vladimir Putin, munido de serviços de inteligência russos, tivessem ciência de que a capacidade de resistência ucraniana não deveria ser menosprezada.

Não deve ser descartada, no entanto, a hipótese de que os sucessos militares anteriores na Geórgia, Crimeia e na Síria, possam ter elevado a confiança de Putin em seu aparato militar de forma a contribuir para a tomada de decisão na expectativa de um menor poder de resistência militar, política e econômica da Ucrânia e do Ocidente. Assim, o próprio fato de que haja uma percepção de frustração dos planos russos e da bravura da resistência ucraniana, pode alterar os rumos da guerra e fortalecer ainda mais o moral do defensor e descreditar o aparato militar russo, instrumento cada vez mais utilizado por Moscou para reivindicar o status de grande potência da Rússia e fazer prevalecer seus interesses. Talvez revisitar literaturas que abordam a psicologia política como lente de análise, buscando incorporar não somente a dimensão externa aos Estados, mas também os objetivos, crenças e percepções dos indivíduos tomadores de decisão, possa contribuir para uma compreensão mais holística dos incentivos específicos que impulsionaram Vladimir Putin a seguir com a invasão. Como exemplo, vale citar as obras de Robert Jervis (2017): How Statesmen Think: Psychology of International Relations e Perception and Misperception in International Politics.

Em suma, a guerra na Ucrânia traz elementos que contribuem para o quase fascínio humano em compreender a guerra.  As análises cotidianamente difundidas pela mídia podem mudar a maneira como o público percebe e cria expectativas acerca dos desdobramentos. Ao passo que o conflito se desenrola, buscamos compreendê-lo enquanto esperamos que uma resolução rápida possa salvar um maior número de vidas. Para depois do conflito, surgirão perguntas que também trarão consigo um grau de complexidade para as análises que buscarão respondê-las. Para citar pelo menos algumas: qual o relacionamento do governo de Vladimir Putin com a Europa e os EUA no pós-conflito? Quem financiará a reconstrução da Ucrânia? Quais os desdobramentos para a coesão interna de um país que já se via dividido desde 2013? Quais os impactos da Guerra para a configuração de forças no sistema internacional, e para as instituições como o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), a OTAN e a União Europeia? Qual será o impacto no âmbito interno da União Europeia e dos partidos locais em termos de imigração e dependência energética em relação à Rússia? No momento atual, nos resta estar atentos aos impactos locais, regionais e globais do conflito.

*Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisa sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país, temas analisados em sua dissertação de mestrado. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br

REFERÊNCIAS

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ALMEIDA NETO, Getúlio Alves; MAKIO, Danielle Amaral. Guerra Civil no Leste da Ucrânia. Dossiê de Conflitos Contemporâneos, v. 1, n. 1, p. 55-60. Observatório de Conflitos Contemporâneos. Disponível em: https://gedes-unesp.org/wp-content/uploads/2020/10/Ucr%C3%A2nia_Observat%C3%B3rio-de-Confltos_-Dossi%C3%AA-de-Conflitos-Cont..-v.1-n.-1-2020-58-63.pdf. Acesso em: 22 mar. 2022.

CORDELL, Jake. Rewriting History, Putin Pitches Russia as a Defender of an Expanding Motherland. The Moscow Times. Feb. 22, 2022. Disponível em: https://www.themoscowtimes.com/2022/02/22/rewriting-history-putin-pitches-russia-as-defender-of-an-expanding-motherland-a76518. Acesso em: 22 mar. 2022.

JERVIS, Robert. Perceptions and Misperceptions in International Politics. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2017.

JERVIS, Robert. How Statesmen Think: The Psychology of International Politics. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2017.

KISSINGER, Henry. To settle the Ukraine crisis, start at the end. The Washington Post. Mar 5, 2014. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/opinions/henry-kissinger-to-settle-the-ukraine-crisis-start-at-the-end/2014/03/05/46dad868-a496-11e3-8466-d34c451760b9_story.html. Acesso em: 22 mar. 2022.

MAPS: Tracking the Russian Invasion of Ukraine. The New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/interactive/2022/world/europe/ukraine-maps.html?. Acesso em: 22 mar. 2022.

MEARSHEIMER, John. Why the Ukraine Crisis Is the West’s Fault. The Liberal Delusions that Provoked Putin. Foreign Affairs. September/October. v. 93, n. 5. 2014.

PUTIN reconhece independência de regiões separatistas da Ucrânia e prevê envio  de tropas para ‘manutenção da paz’. BBC NEWS. 21 fev. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60471555. Acesso em: 22 mar. 2022.

PRESIDENT OF RUSSIA. Article by Vladimir Putin “On the Historical Unity of Russians and Ukrainians”. July 12, 2021. Disponível em: http://en.kremlin.ru/events/president/news/66181. Acesso em: 22 mar. 2022.

SIMPSON, John. Guerra na Ucrânia: as 6 exigências de Putin para acabar com o conflito. BBC NEWS. 18 Mar 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60793048. Acesso em: 24 mar. 2022.

UKRAINE continues to receive military aid. Army Technology. Disponível em: https://www.army-technology.com/features/russian-invasion-ukraine-war-nato/. March 3, 2022. Acesso em: 22 mar. 2022.

Imagem: Armas russas destruídas pelas Forças Armadas da Ucrânia. Por Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia/Wikimmedia Commons.

A Invasão Russa na Ucrânia: Razões, Tempo e Espaço – Parte 1

            Getúlio Alves de Almeida Neto*

A grande quantidade de análises feitas diariamente acerca da guerra da Ucrânia desde a invasão russa – não somente no âmbito acadêmico, mas também midiático – desperta o interesse e demonstra o anseio público de compreender a complexidade desses eventos. Ademais, cria-se a expectativa de que analistas em geral, e sobretudo especialistas no tema, possam prever com acurácia os desdobramentos do conflito. Contudo, como tem-se observado ao longo de quase um mês de guerra, tentativas de predizer os acontecimentos e chegar a uma conclusão engessada são prejudiciais à compreensão dos fatos e estão, de certa forma, propensas a ser contraditas no instante seguinte. Nesse sentido, proponho um breve ensaio com reflexões que possam guiar o debate e auxiliar no entendimento de um fenômeno que se desenvolve enquanto o observamos.

É preciso tomar cuidado para que nossas análises não se tornem mais um reflexo do que esperamos que aconteça do que uma tentativa, ainda que naturalmente limitada, de depreender os acontecimentos que temos acompanhado, literalmente, minuto a minuto. Assim, proponho o breve debate de dois pontos: 1) os motivos que levaram à tomada de decisão russa de invadir a Ucrânia; 2) a reação pública, política e midiática à guerra, em razão de suas especificidades estratégico-militares que parecem em descompasso com o contexto histórico e geográfico atual, salientando aspectos da comunidade global contemporânea que têm impacto na percepção do tempo da guerra e seu desenvolvimento. O primeiro ponto é discutido neste texto e o segundo em sua continuação.

Os motivos da guerra: expansão imperialista ou agressão político-securitária?

Após a crescente tensão gerada por exercícios militares realizados pelas forças armadas russas próximos à fronteira ucraniana desde o final de 2021, Vladimir Putin ordenou, em 24 de fevereiro de 2022, que suas tropas invadissem o território ucraniano sob a alegação de uma “operação militar especial”. O objetivo, segundo Putin, seria “desnazificar” o país e atender ao pedido dos líderes das autoproclamadas repúblicas separatistas de Lugansk e Donetsk. Estas regiões no Leste Ucraniano são palco de uma guerra civil em confronto com o governo de Kiev que teve início há oito anos, na esteira da derrubada do então presidente Viktor Yanukovytch – tido como mais alinhado à Rússia em detrimento da aproximação com a União Europeia – nos protestos da Praça Maidan, em 2013. Três dias antes da invasão, o governo russo reconheceu formalmente a independência das repúblicas, anunciando a possibilidade do envio de tropas para a “manutenção da paz”.  Atualmente, o Kremlin busca impor como condições para o fim das hostilidades uma série de reivindicações: 1) neutralidade ucraniana, com garantias de que nunca se tornará país-membro da OTAN; 2) desmilitarização do país; 3) reconhecimento da independência das repúblicas de Donetsk e Lugansk; 4) reconhecimento do status da Crimeia como parte da Federação Russa; 5) e, por fim, proteção à língua russa na Ucrânia.

Antes de ordenar que suas forças armadas invadissem a Ucrânia, Vladimir Putin fez um discurso no qual colocou em xeque a própria existência do Estado ucraniano ao afirmar que “a Ucrânia moderna foi uma criação da Rússia”, após a formalização da URSS como produto da política leninista de uma federação de estados iguais. O discurso televisionado assemelhou-se a um artigo publicado por Putin, ainda em julho de 2021, no qual discorre extensamente sobre a história compartilhada entre russos e ucranianos. Este pronunciamento, somado ao histórico recente de anexação da Crimeia e o reconhecimento das regiões separatistas, torna possível questionar a narrativa utilizada por Putin antes da agressão à Ucrânia, segundo a qual Moscou buscaria apenas garantias de segurança. Consequentemente, vem crescendo como uma das linhas argumentativas para explicação do ataque russo à Ucrânia – sobretudo nas análises midiáticas –, que Putin buscaria incorporar todo o território ucraniano e restaurar territorial e formalmente as antigas fronteiras da União Soviética. Ainda nessa perspectiva, a Ucrânia poderia ser o primeiro passo para futuras tentativas de expansão russa.

O contexto ucraniano, em específico, torna ainda mais propenso o surgimento de tais análises. Russos e ucranianos possuem estreitos laços identitários que remontam ao passado político, econômico, cultural, linguístico e religioso em comum. Na historiografia de ambos os países é atribuída à Rus Kievana, um Estado feudal do século IX, como a primeira unidade política que deu origem aos atuais Estados modernos. Nesse seguimento, a interpretação de que Putin questiona a própria existência do Estado ucraniano faz sentido dentro desse contexto e perspectiva analítica.

Em compasso com as prerrogativas encontrada em documentos oficiais como a Doutrina Militar e o Conceito de Política Externa da Rússia, nas quais está prevista a utilização das forças armadas para fora de seu território em defesa de cidadãos russos, abre-se uma possibilidade de utilização deste argumento por parte do Kremlin para justificar suas ações, como observado nas incursões russas nas regiões separatistas da Ossétia e Abecásia do Sul durante a Guerra da Geórgia em 2008, além do caso da Crimeia, já citado acima. Quando expostos todos estes elementos, é natural que se traga à tona o argumento da expansão imperialista de Vladimir Putin. Não se trata aqui de descartar por completo tal possibilidade. No entanto, até que se tenha mais detalhes e conhecimento acerca dos fatos, tais afirmações podem ser caracterizadas no máximo como especulações.

Por outro lado, pode-se analisar o conflito a partir de um olhar que leve em consideração a dimensão político-securitária, em perspectiva histórica, podendo auxiliar na compreensão das circunstâncias que explicam a guerra, ainda que sem justificá-la. Nessa perspectiva, é importante ressaltar que a invasão russa faz parte de um contexto maior de crescente tensão entre Moscou e o chamado “bloco ocidental”, que remonta ao processo de dissolução da União Soviética e o consequente surgimento de 15 novas repúblicas independentes em dezembro de 1991, entre elas a Federação Russa e a Ucrânia.

No contexto de fragilidade econômica, política, social e militar da Rússia nos anos 1990, em conjunto com a supremacia estadunidense e surgimento de uma dita ordem internacional liberal-unipolar, Moscou observou a contínua expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em direção ao Leste Europeu. Ao longo desse processo, essa aliança militar ocidental incorporou 14 novos Estados-membros, entre eles ex-repúblicas soviéticas, como os Países Bálticos, e nações que antigamente estavam sob a esfera de influência de Moscou através do Pacto de Varsóvia, tal como a Polônia. O argumento utilizado por Putin de que o avanço de tropas ocidentais a regiões próximas à Rússia seria uma ameaça à segurança de seu país não pode ser desconsiderado, ainda que não justifique a invasão de tropas a um território de outro país sem que tenha havido qualquer ataque anterior.

De fato, a expansão da OTAN é debatida por acadêmicos, políticos e militares dos próprios países-membros desde os anos 1990. Teóricos realistas das Relações Internacionais, como Mearsheimer (2014), e o conhecido Secretário de Estado dos EUA na década de 1970, Henry Kissinger, já alertavam para a possibilidade de reação russa, ainda que advertissem para as consequências à Rússia em fazer uso de seu poderio militar para impor o status de neutralidade – ou subjugar – à Ucrânia. Ademais, o governo russo sempre deixou claro, em discursos e em documentos oficiais, ser contrário ao alargamento da aliança militar ocidental, sendo particularmente contrário a qualquer possibilidade de adesão da Ucrânia e da Geórgia. Sendo assim, desde a primeira Doutrina Militar russa pós-soviética, datada de 1993, encontra-se a crítica à expansão de blocos militares. Em 2010, a terceira edição do documento cita nominalmente a OTAN como principal ameaça à segurança do país. Logo, pode-se afirmar que a decisão russa de invadir a Ucrânia e assegurar que o país não se filie à aliança ocidental não é, no fundo, uma surpresa. Seja de forma retórica ou nos casos da Geórgia e Ucrânia, o governo russo já havia demonstrado disposição em fazer uso de seu aparato militar para reivindicar seus interesses político-securitários, mesmo que em detrimento de questões econômico-financeiras e repercussões políticas causadas pelas sanções impostas.

Em suma, a Guerra da Ucrânia suscitou o debate sobre um possível ímpeto expansionista-imperialista do governo de Vladimir Putin, que teria como objetivo restaurar – parcial ou totalmente – as fronteiras da União Soviética a partir da anexação contínua dos territórios adjacentes à Rússia. Apesar de o discurso do presidente russo ter se tornado cada mais agressivo e possua indícios de um revisionismo histórico, busquei salientar que considero mais frutífera a análise feita a partir de um contexto de percepção do governo russo de ameaça advinda de suas fronteiras ocidentais desde os anos 1990 em razão do processo de expansão da OTAN para o Leste europeu, e dos desdobramentos domésticos na política ucraniana desde os protestos na Praça Maidan, em 2013. Por essa perspectiva, o fortalecimento do aparato bélico russo, executado a partir de reformas militares em curso desde 2008, dotou o país de um instrumento de política externa para confrontação ao Ocidente e a partir da reivindicação de seus interesses político-securitários. Dessa forma, pode-se entender a agressão à Ucrânia como produto de um cálculo político do Kremlin que, dotado de confiança em seu poder militar, busca conseguir as vitórias políticas ensejadas, como a imposição do status de neutralidade da Ucrânia, o reconhecimento da independência das repúblicas separatistas de Lugansk e Donetsk, e da Crimeia como parte integral da Federação Russa, mesmo que isto venha a custos de pesadas sanções econômicas e isolacionismo político.

REFERÊNCIAS

MEARSHEIMER, John. Why the Ukraine Crisis Is the West’s Fault. The Liberal Delusions that Provoked Putin. Foreign Affairs. September/October. v. 93, n. 5. 2014

 

* Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisa sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país, temas analisados em sua dissertação de mestrado. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br.

Imagem: Russian military weapons destroyed and seized by the Armed Forces of Ukraine. Por Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia/Wikimmedia Commons

Entre a cruz e a espada: quais as armas corretas para defender a Amazônia?

Lisa Barbosa*

Ana Penido**

Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.

 

“Cada qual que tenha a sua, qualquer arma, nem que seja
algo assim leve e inocente como este poema em que canta voz de povo — um simples canto de amor. Mas de amor armado”. Thiago de Mello

A passagem do poeta do coração do mundo, Thiago de Mello, nos provoca a revisitar o Sínodo da Amazônia, realizado pelo Vaticano em 2019, consequente com a proposta ecológica de Francisco presente da encíclica Laudato Si, de 2015.

Em muitos momentos da história brasileira, a Cruz e a Espada atuaram em conjunto na Amazônia, buscando a domesticação da natureza (humana, animal e vegetal) selvagem. A justificativa? Integrar a região, objeto da “cobiça internacional”, ao restante do Brasil.

De fato, é inegável a importância da Amazônia para o meio ambiental global, sendo não apenas a maior floresta tropical do mundo, mas também a maior bacia hidrográfica do planeta. O bioma ocupa cerca de 60% do território brasileiro e também se expande pelos territórios de outros oito países: Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Suriname, Peru e Venezuela. Os povos que ali habitam são diversos, não apenas indígenas, mas também quilombolas, ribeirinhos, e tantos outros.

O Sínodo da Amazônia repensa a presença da igreja na região, onde estão interligados e em harmonia “água, território e natureza, vida comunitária e cultura, Deus e as várias forças espirituais”. Identifica também a crise socioambiental existente no local, e seus reflexos em outras regiões, dedicando  particular atenção à pobreza do amazônida como consequência da riqueza da terra, amplamente explorada (1). A ecologia proposta pelo Papa vê de forma integrada o clamor da terra e dos pobres.

Se a Cruz revê seu pensamento, o mesmo não ocorre com a Espada. A Amazônia, vista como um “vazio demográfico” e como uma fronteira de recursos naturais, ocupou um papel importante nas políticas desenvolvidas durante a ditadura militar, voltadas para a atração de novos ocupantes dedicados à exploração ambiental destinada ao mercado internacional.

Os povos indígenas foram tratados como “inimigos internos” do Estado, sentindo a “a mão amiga” do Exército, que levava assistência básica, mas também o “braço forte” repressor. O caso mais notável desse período, o garimpo na Serra Pelada coordenado pelo Major Curió, está eternizado pela lente fotográfica de Sebastião Salgado.

Com o final da Guerra Fria, e a crescente preocupação internacional com as mudanças climáticas, o interesse pela região se renovou. Os governos civis que sucederam os governos militares buscaram construir políticas mais sustentáveis, tanto do ponto de vista da floresta (controle das queimadas e desmatamento, criação de unidades de conservação ambiental), quanto dos povos tradicionais (homologação de Terras Indígenas).

Servir na fronteira Amazônica se tornou algo importante dentro da caserna, pois o ambiente “inóspito” era visto como depurador, de onde só saiam os melhores e mais resistentes. A onça, animal que representa a agilidade e a força para se movimentar na mata na cultura de diferentes povos indígenas, precisava ser acorrentada e domesticada, e se tornou símbolo dos quartéis.

A Amazônia como objeto de cobiça internacional voltou a ser propaganda ainda na campanha de Jair Bolsonaro. O discurso patriótico em defesa da soberania encobria propostas de retrocessos nas políticas de fiscalização e proteção do meio ambiente e das comunidades indígenas.

Depois de eleito, fica nítido em ações, não na retórica, que os mecanismos de regulação ambiental são vistos como um entrave para o desenvolvimento econômico do país. O resultado são os recordes históricos no número de queimadas e desmatamento, além de invasão de terras indígenas pelo garimpo (2).

Esse processo é coordenado pelo vice-presidente e general Hamilton Mourão, presidente do Conselho Nacional da Amazônia legal, e operacionalizado através de diversas operações de Garantia da Lei e da Ordem que ocorrem no local desde 2020, quando os militares ganharam a autorização para agir em áreas de fronteiras, terras indígenas e unidades de conservação a fim de combater os incêndios florestais e coibir crimes ambientais.

A operação que foi denominada Verde Brasil, assim como sua sucessora, a Verde Brasil II, viu os índices de desmatamento subirem durante sua vigência, junto com índices de contaminação pela covid-19 em diferentes comunidades (a região recebeu atenção internacional em razão da falta de oxigênio para pacientes e da ampla distribuição de cloroquina, medicamento ineficiente para o enfrentamento da doença fabricado nos laboratórios do Exército). Dessa maneira, as duas grandes crises na região – ambiental e de saúde – foram enfrentadas de forma militarizada, e perdidas por um comando eminentemente militar.

Recentemente, a Agência Pública revelou que o banco canadense Forbes & Manhattan (F&M) recorreu ao general-lobista Cláudio Barroso Magno Filho para “destravar” seus negócios de mineração na maior floresta do mundo.

Mais um filho da Minustah (Haiti), o general Magno Filho entrou no ramo de consultorias e venda de equipamentos para as forças armadas e empreiteiras ainda nos anos 2000, quando foi para a reserva. Desde 2019, o militar atua em prol do F&M no Brasil, que disputa licenciamentos ambientais para as mineradoras Belo Sun e Potássio do Brasil.

O plano é construir a maior mina de ouro a céu aberto do mundo na Volta Grande do Xingu, a mais de 800 km de Belém (PA). Caso consiga, a companhia canadense instalará em Senador Porfírio (PA) uma barragem de rejeitos maior que a da Vale, rompida em Mariana (MG).

Os projetos impactam assentados, indígenas e ribeirinhos no Amazonas e no Pará. O general parece forte candidato a novo Major Curió, e nisso será auxiliado pela carência de fertilizantes no mercado provocada pelo conflito entre a OTAN e a Rússia, que se desdobra no terreno da Ucrânia.

Daí ser necessário retomar o Sínodo, pensando sobre as reais ameaças presentes no território, e quais as armas adequadas para proteger o coração da terra. No Sínodo, a ameaça identificada é a exploração da “casa comum”, conectada à opressão dos amazônidas.

A atividade extrativa predatória é vista em conjunto com a criminalização (quando não assassinato) dos defensores da floresta, especialmente dos povos indígenas. A arma para enfrentar esse tipo de ameaça identificada é a própria população local, que deve ser apoiada com medidas nacionais e internacionais de transição na matriz produtiva global, particularmente na área energética.

A ameaça é sempre o Outro no imaginário militar. Externo às fronteiras brasileiras, toma a forma de ONGs internacionais, imigrantes venezuelanos, e até do Papa, que já declarou ser contra a internacionalização da Amazônia. Sim, o Sínodo foi visto pelo ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e ex-comandante do Comando Maior da Amazônia, general Augusto Heleno, como uma ameaça à soberania nacional.

[O Sínodo] quer falar de terra indígena, quer falar de exploração, de plantação, quer falar de distribuição de terra. Isso são assuntos do Brasil”. O Outro madeireiras, o Outro mineradoras, o Outro agronegócio, também externos (mas em forte aliança com a burguesia interna brasileira), e também presentes na região, não é visto como Outro, e sim como Nós.

Artigo XIII

Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou. (Thiago de Mello)

A Cruz se repensou. Há de chegar o tempo em que a Espada também será repensada.

 

(1) – Dossiê 14: Amazônia Brasileira, A Pobreza do Homem como resultado da Riqueza da Terra (thetricontinental.org)

(2) – De acordo com dados do Programa Queimadas divulgados pelo INPE, em 2019 foram registrados 89.176 focos de incêndio florestal na Amazônia Legal, um índice histórico e que registrou alta no ano seguinte (em 2020 foram registrados 103.161 focos de calor na Amazônia). Sobre as taxas de desmatamento, de acordo com os registros do Sistema de Detecção do Desmatamento na Amazônia Legal em Tempo Real (DETER), observa-se o crescimento de 85% no índice entre 2018 e 2019. Já de acordo com dados do Imazon, o desmatamento na Amazônia entre os anos de 2020 e 2021 foi o mais alto dos últimos dez anos.

* Lisa Barbosa é mestranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) e pesquisadora do Gedes.

** Ana Penido é pesquisadora de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) e integrante do Gedes.

 

Imagem: Vista aérea de queimada na Amazônia.Por: Amazônia Real.

O Starlink e a importância da internet via satélite para o conflito entre Rússia e Ucrânia

Larissa Aguiar*

 

Com o início da campanha russa na Ucrânia, o receio de que a Rússia poderia estrategicamente prejudicar, ou até mesmo utilizar a seu favor, a conexão de internet ucraniana se tornou uma preocupação válida das esferas governamental, militar e civil do país. Essa estratégia de usar as dimensões cibernética e informacional para obter vantagens no conflito já havia sido utilizada na Criméia durante a anexação do território ao Kremlin em 2014. Desde então, a dependência da Ucrânia em relação a servidores russos se tornou uma preocupação válida e constante. O controle dos meios de comunicação e, principalmente, do tipo de mídia que os cidadãos consomem, pode ser uma determinante na política internacional. Tendo em vista esses fatores, nosso objetivo neste texto é analisar os impactos da utilização da internet via satélite no conflito entre Rússia e Ucrânia.

Com a possibilidade de que os eventos de 2014 se repetissem, dois dias após o início da campanha russa na Ucrânia, o então vice-Primeiro Ministro e Ministro da Transformação Digital ucraniano, Mykhailo Fedorov, pediu, via Twitter, que  o empresário estadunidense Elon Musk, dono da SpaceX, fornecesse terminais da rede de satélites Starlink à Ucrânia. A partir disso, a tecnologia de comunicação via satélite e o projeto Starlink adquiriram uma posição central nas discussões do recente conflito, e passaram a ser uma das salvaguardas da conexão ucraniana com o mundo exterior. 

Primeiramente, é importante esclarecer o que é o Starlink. Trata-se de um projeto da empresa privada SpaceX que visa o desenvolvimento de uma constelação de satélites e objetiva a implementação de tecnologia espacial para a disseminação da internet via satélite em todo o mundo. Para além dos interesses privados da SpaceX em desenvolver uma constelação de satélites, o projeto Starlink, assim como outros projetos de internet via satélite, como a HughesNet e a ViaSat, contribuem para o acesso à internet em áreas isoladas, como as rurais, onde a internet via fibra ótica se torna de difícil acesso.

A recepção da internet via satélites acontece por meio de uma triangulação dos sinais. A princípio, instalam-se estações terrenas – ou gateways – em pontos estratégicos do globo, que fornecerão o sinal primário de internet através de uma conexão de fibra óptica previamente hospedada. Em seguida, é necessário lançar satélites LEO, um tipo de satélite específico para este serviço, que se estabelece na órbita terrestre baixa – uma órbita próxima à superfície terrestre, não ultrapassando os 1000 km de altitude em relação ao espaço. Atualmente, o projeto Starlink possui 1587 satélites estabelecidos, mapeados e ativos, que formam a chamada “constelação de satélites” e refletem o sinal emitido pelas estações terrestres do projeto. As estações terrenas são as responsáveis por conectar o sinal da fibra óptica aos satélites que orbitam a Terra e que, mais tarde, repassam esse sinal aos terminais domésticos adquiridos por civis, empresas e governos, responsáveis pela reprodução do sinal de internet em equipamentos eletrônicos.

A internet via satélite, então, permite a conexão de terminais domésticos em muitos locais inalcançáveis pela fibra óptica comum. A simples passagem de um satélite em órbita e o espaço a céu aberto permitem que os terminais captem o sinal e forneçam conexão de banda larga efetiva, embora não tão rápida quanto a fibra óptica comum. 

Tal tecnologia pode ser útil durante conflitos armados, visto que as forças armadas e os civis estão em permanente estado de alerta em relação à localização das forças inimigas. As investidas militares por parte das forças armadas russas, na intenção de dominar parte do território em guerra, bem como as esquivas ucranianas, demandam comunicação urgente e eficaz. A necessidade do lado agressor receber, processar e tomar decisões com base no território inimigo perpassa, antes de mais nada, a comunicação entre os centros de controle e as forças. Por outro lado, a resistência das forças defensoras depende, diretamente, da capacidade de obter informações precisas acerca da posição inimiga. Entender o campo de guerra é um aspecto estratégico e vital para ambas as partes. O que nos leva, então, à importância da comunicação rápida, eficiente, direta e correta, e também à importância de neutralizar a comunicação das forças inimigas, o que pode significar uma vantagem massiva durante as campanhas de ambos os lados.

Outro ponto vital do conflito entre Ucrânia e Rússia que é impactado pela internet via satélite é a crise de refugiados de guerra gerada desde o início da invasão russa. De acordo com Filippo Grandi, o atual Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados, mais de 2 milhões de civis ucranianos já deixaram o país fugindo do cenário de guerra que se instalou em suas cidades natais. Com a crise de refugiados, órgãos de toda a Europa têm disponibilizado, via sites e aplicativos, informações úteis para que ucranianos possam sair de seu território em segurança. É o caso da União Europeia, que tem utilizado o próprio site como hospedagem para postagens informativas rápidas. Ademais, o Fórum Econômico Mundial lista que, para além de informações, outras ações importantes têm alcançado os ucranianos on-line, como doações globais para a compra de alimentos e serviço médico gratuito.

Diante da relevância da conexão com a internet para a resistência ucraniana e a resposta humanitária, uma questão que se mostra relevante é a possibilidade de bloqueio dos sinais e terminais do Starlink pela Rússia. Para que um bloqueio fosse devidamente efetivo, a Rússia deveria acionar dispositivos aéreos que desviem, dificultem ou, ao menos, desequilibrem a triangulação dos sinais de internet. No entanto, dois desafios se colocam entre essa realidade. O primeiro deles é a dificuldade em atingir a estação terrena que emite o sinal captado pelos terminais ucranianos, que se situa em Wola Krobowska, uma vila no centro-oeste da Polônia, com alcance suficiente para conectar os terminais ucranianos. O projeto de Elon Musk, atualmente, possui mais de 50 estações terrenas espalhadas principalmente entre Estados Unidos e Europa Ocidental, sendo outras 7 na América do Sul. A Polônia, no entanto, é um país-membro da União Europeia desde 2004 e da OTAN desde 1999, e qualquer avanço russo em suas fronteiras neste momento é inconcebível, tendo em vista a resposta bélica que aguarda Putin. Vale lembrar que, de acordo com o Artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte, a violência contra um membro da OTAN significa a violência contra todos os membros, e deve ser respondida pela organização como um todo, o que torna altos os custos dessa decisão . 

Outro problema enfrentado pela Rússia é a falta de superioridade aérea do espaço de conflito. Após duas semanas de investida, a campanha russa ainda não conseguiu estabelecer um controle definitivo do espaço aéreo ucraniano. Desse modo, a inviabilização de sinais, pela via aérea, se torna uma tarefa difícil de ser alcançada pelas forças russas.

Enquanto o espaço aéreo for preservado, e os altos custos da OTAN permanecerem, as condições indicam  que ucranianos continuem acessando livremente a internet provida via satélite, sem controle estatal russo, e sem qualquer influência direta do Kremlin. A guerra informacional e midiática, até então, foi vencida pela Ucrânia, seus civis e pelo governo de Zelensky, que comoveram milhões de pessoas ao redor do mundo, enquanto arrecadam milhões de dólares e, ainda mais, traçam estratégias de refúgio e contra-ataque. O fluxo veloz e eficiente de informações, que possibilita aos ucranianos até mesmo encontrar e observar tropas russas, mostra-se um componente cada vez mais relevante para os conflitos. A investida russa enfrenta, para além de resistência, sanções e votos contrários na Organização das Nações Unidas, um obstáculo que cresce cada vez mais: a comunicação global e a narrativa a favor do lado ucraniano. No que tange a essa questão, a importância da troca de informações eficaz, menos custosa e mais acessível se torna essencial para os atores internacionais. A tecnologia capaz de atender essas demandas se faz, então, cada vez mais relevante, bem como a presença de atores – privados ou públicos – que possam pesquisar, desenvolver e aplicar tais inovações em situações como o conflito entre Rússia e Ucrânia. Com isso, a internet via satélites, bem como o projeto Starlink, se tornam, para além de um produto comercial e inovador, uma ferramenta estratégica capaz de influenciar  diretamente conflitos internacionais.

 

*Larissa Aguiar é graduanda em Relações Internacionais e bolsista de iniciação científica (FIP) pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).

Imagem: Starlink Bedienungsanleitung, por Tim Reckmann.

A look at the UK’s strategic partnership with Ukraine

 

A version of this article was first published at the UK Defence Journal in December 2021

João Vitor Tossini

 

The UK’s defence relationship with Ukraine experienced a sharp growth in the aftermath of the Russian annexation of Crimea in 2014, including the delivery of British military equipment and training. The 2016 British decision to leave the European Union led to the “Global Britain” foreign policy, which became the framework of the British engagement with Ukraine. Aiming to reaffirm the country’s leadership at the North Atlantic Treaty Organization (NATO), while seeking new partners and allies beyond the European Union, the new British foreign policy engaged in a path of increasing political and defence cooperation with Ukraine.

During the first years of Ukrainian independence, the British Government would work closely with Ukraine, the United States, and Russia on the future of the Ukrainian, Belarus, Kazakhstan nuclear arsenals inherited from the Soviet Union.  In 1994, the three powers agreed to provide security assurances against the use of force or threats against the territorial integrity and independence of Ukraine, Belarus and Kazakhstan in exchange for their adherence to the Treaty on the Non-Proliferation of Nuclear Weapons (TNP). This accord was known as the “Budapest Memorandum on Security Assurances”, and between 1994 and 1996, Belarus, Kazakhstan and Ukraine gave up their nuclear weapons (MARTEL, 1998). 

In 2008-2009, Ukraine’s attempts to achieve closer cooperation ties with the European Union received British support while intensifying defence collaboration with Britain, which the Ukrainian Government saw as a possible supporter of Ukraine’s ambition to initiate a NATO Membership Action Plan. Within this context, Britain and Ukraine signed a Joint Statement in 2008 declaring for the first time the “strategic” character of their bilateral relations.

Nevertheless, between 2009 and 2013, the British position changed after Ukraine opted for “non-alignment” in 2009. Following this Ukrainian foreign policy shift, Britain focused on supporting the advancement of the Association Agreement between Ukraine and the European Union (EU). However, in November 2013, the Euromaidan movement erupted in Ukraine, especially in the Western part of the country, mainly in response to president Viktor Yanukovych’s refusal to sign the European Union–Ukraine Association Agreement. The refusal came after previous postponements and was seen as an attempt to appease and maintain close ties with Russia, Ukraine’s largest trading partner. On 22 February 2014, the parliament voted to relieve Yanukovych from his duties. 

These events highlighted divisions within Ukraine’s society and quickly involved Russia. Moscow justified its intervention as a safeguard for the Russian minority in Ukraine. The Russian Government stated that it did not recognise the new administration in Kyiv (AVERRE; WOLCZUK, 2018). On 27 February, unmarked Russian soldiers took control of the Crimean local government, forcing the regional parliament to replace its Prime Minister for the pro-Russian politician Sergey Aksyonov. The Crimean Peninsula, including the strategic naval base at Sevastopol, leased to Russia since 1991, was formally annexed by the Russian Federation on 21 March (AVERRE; WOLCZUK, 2018).

As one of the three “guarantors” of Ukraine’s sovereignty and territorial integrity, through the Budapest Memorandum (1994), the UK had a particular responsibility when the Russian intervention occurred. The UK supported the change of government in Kyiv and opposed the Russian intervention in Ukrainian affairs. Despite that, witnesses contributing to a Houses of Parliament report in 2015 considered the initial British response “hesitant”. Thus, the unfolding events in Ukraine raised concerns and negative criticism concerning the British Government’s initial response. It can be argued that the budget cuts laid out by the 2010 Defence Review still had a significant impact on the British defence and foreign policy.

As the crisis unfolded, the British Government adopted an active role. Britain presented itself as a leading supporter of collective sanctions against Russia through the EU and the Group of Seven (BIELIESKOV; SOLODKYY, 2017). The British Government also performed a crucial role in the approval of the General Assembly resolution on Crimea. In March 2014, the UK declared that it regarded the annexation of Crimea as illegal and would maintain a position of support for Ukraine’s sovereignty and territorial integrity. This statement remains the cornerstone of the British bilateral relationship with Ukraine. 

Since 2014, the UK has sought to enhance its economic and defence cooperation with Ukraine while improving the Ukrainian position as a nation capable of containing the conflict with the Russian-backed insurgents in the far Eastern part of the country (BIELIESKOV; SOLODKYY, 2017). During the NATO Wales Summit of 2014, Britain also acted to alleviate fears in southern members of NATO that the Baltic States were exacerbating the Russian threat, opening the path for a final collective statement favourable to Ukraine (DEVANNY, 2017). Following Brexit, this trend gained pace and Ukraine could become a special partner within the scope of the “Global Britain” policy (UNITED KINGDOM, 2021).

Beyond the support within NATO, Britain initiated “Reform Assistance Programmes” in Ukraine to improve local governability, while supporting economic reforms. These initiatives would indirectly support enhanced trade arrangements between the two nations (BIELIESKOV; SOLODKYY, 2017). In October 2020, Britain and Ukraine signed a “continuity agreement” adapting the existing Ukraine-EU Trade Agreement into an Anglo-Ukrainian version. Furthermore, the “Political, Free Trade and Strategic Partnership Agreement” updates and formalises the strategic partnership between the UK and Ukraine (VOROTNYUK, 2021).

Concerning Defence cooperation, since the Russian annexation of Crimea, seeking international assistance to strengthen its defence capabilities has been a priority of the Ukrainian Government. In Ukraine, expectations of British military assistance have been high as Britain remains one of the two signatory powers that still commit to the Budapest Memorandum of 1994. Supporting these expectations lies the fact that before the 2014 Crisis, Britain had been an active partner of Ukraine, leading programmes between 2009 and 2014 to enhance Ukraine’s military command, control and communication systems while conducting joint training exercises (BIELIESKOV; SOLODKYY, 2017). Therefore, during the 2014 NATO Summit, Britain was chosen as the leading partner in the Alliance’s Trust Fund to improve the Ukrainian forces’ command, control, and communications (DEVANNY, 2017; VOROTNYUK, 2021). 

Moreover, the UK supports Ukraine through direct bilateral military aid. In late 2014, London supplied the first wave of military equipment and logistical assistance to Kyiv. In March 2015, Britain announced a package of non-lethal equipment to Ukraine. Concurrently, the British Government approved the deployment of military advisers to train the Armed Forces of Ukraine. In 2017, the British training programmes prepared the most significant contingent of troops for the Ukrainian military. The 2016-2017 period witnessed the British shift from military material aid to training local troops. Between 2015 and 2021, the operation – called Operation Orbital – trained more than 21,000 Ukrainian personnel (VOROTNYUK, 2021).  

Avoiding a direct association with the ongoing military conflict in Eastern Ukraine, the sites used by the British personnel were located far from the areas of armed conflicts. Additionally, in 2016 the two countries agreed on a Memorandum of Understanding about the bilateral defence and security cooperation. This 2016 Memorandum represented the increasing Ukrainian confidence that Britain remains an actor in the region despite Russian pressures and led to the 2020 Free Trade and Strategic Partnership Agreement previously mentioned. With British diplomatic support, Ukraine achieved NATO’s “Enhanced Opportunity Partner” status in June 2020, which grants “enhanced access to interoperability programmes and exercises, and more sharing of information”.

After March 2014, the Black Sea has witnessed an increasing British naval presence. Romania and Bulgaria received British personnel through NATO’s Multinational Divisional Headquarters (South-East) and Force Integration Units. Between January 2018 and October 2021, the Royal Navy and Royal Fleet Auxiliary vessels spent roughly 50 days every year on a rotational basis on the Black Sea (VOROTNYUK, 2021). These deployments are symbols of the British strategy to reinforce NATO’s Eastern flank while displaying its support for Ukraine’s sovereignty and territorial integrity. However, this increasing British military presence in the Black Sea led to diplomatic tensions with Russia.

In September 2020, the British Government announced that its training contribution through Operation Orbital would expand to include maritime capacity-building. Thus, the UK  led a multinational Maritime Training Initiative (MTI) for the Ukrainian Navy. In the same month, British paratroopers and their Ukrainian counterparts participated in joint exercises (Exercise Joint Endeavour). Flying direct from Britain and parachuting into the south of Ukraine, British paratroopers participated in the drill, considered the largest of its kind within a decade (VOROTNYUK, 2021). The exercises of 2020 highlighted Britain’s ability to independently project military power over Ukraine.

Since the establishment of the MTI, the British-led naval training initiative resulted in a similar British-led effort to enhance Ukraine’s naval capabilities. This new phase of defence cooperation was initiated by the Memorandum of Intent of October 2020 signed by the British Defence Secretary and his Ukrainian counterpart on board the British aircraft carrier HMS Prince of Wales. According to the British Government, one of the main points of the Memorandum concerns the GBP 1.25 billion on terms from UK Export Finance – the UK’s export credit agency – for Ukrainian naval projects. Britain would build “missile cruisers” and other ships in line with NATO standards to aid the naval forces of Kyiv (TOMS, 2020). 

 On 21 June 2021, during HMS Defender’s visit to the Black Sea as part of the British Carrier Strike Group Deployment, Britain and Ukraine signed a Memorandum of Implementation. In short, Britain secured the following projects: (1) “Missile sale and integration on new and in-service Ukrainian Navy patrol and airborne platforms”; (2) “The development and joint production of eight fast missile warships”; (3) “The creation of a new naval base on the Black Sea as the primary fleet base for Ukraine and a new base on the Sea of Azov”; (4) Sale of two mine countermeasure vessels; (5) participation in the Ukrainian project to deliver a new generation of frigate capability; and (6) shipyards regeneration plans (UNITED KINGDOM, 2021a).

Two days after the signing of the Memorandum of Implementation on board HMS Defender, this Royal Navy Type 45 Destroyer performed freedom of navigation patrol through the disputed waters of Crimea. The “diplomatic incident” between the British vessel and Russian patrol boats and aircrafts resulted in renewed tensions with Moscow. The Ministry of Defence of the Russian Federation alleged that its patrol boats fired warning shots and Sukhoi Su-24 “dropped bombs” in the path of HMS Defender after the ship entered Crimea’s territorial waters. The British Ministry of Defence denied these claims and stated that the shots were fired three miles astern and could not be considered warning shots. HMS Defender kept its planned course arriving in Batumi, Georgia, on 26 June. 

Considering that the British Government recognises only the Ukrainian authority over Crimea and the customary route between the Ukrainian port of Odesa and Batumi includes passing near Crimea, the decision also involved not displaying weaknesses or some degree of recognition to the Russian presence. The “incident” also highlights that Russia avoided the risk of direct military confrontation in the Black Sea with the UK and other NATO members beyond the assertive rhetoric and behaviour. In comparison, the Kerch Strait incident of 2018 resulted in the Russian capture of three Ukrainian military vessels

Britain’s planned military deployments to the Black Sea and Ukraine suffered no changes after HMS Defender’s incident. While the Royal Navy reinforced the British support for Ukrainian territorial integrity near Crimea, British and Ukrainian forces led the multinational “Cossack Mace” land exercises in that same month. During two weeks in June 2021, these exercises rehearsed a joint response to a potential aggressor state seizing and controlling Ukrainian territory. Shortly after, HMS Defender took part in the annual Sea Breeze naval drills in the Black Sea, reaffirming the traditional British naval presence in this annual exercise (VOROTNYUK, 2021).

Therefore, since 2014 the British-Ukrainian bilateral relations have entered an ascending path. The UK has achieved a unique position within Ukraine’s foreign policy as one of the country’s closest and most committed partners, only surpassed by the United States. London has been an active supporter of increasing Kyiv’s integration with NATO while seeking to improve its military presence in the eastern flank of the Alliance, particularly in the Baltic nations and the Black Sea. Since 2015, British forces have trained thousands of Ukrainian personnel every year and performed regular joint land and naval exercises. Lastly, the UK continues to recognise Ukrainian sovereignty over Crimea. 

In conclusion, looking for new international partnerships since 2014, Ukraine has found one of its prominent supporters in successive British Governments. In addition, the UK remains seen by Russian defence specialists as a major actor “willing to go to the edge” for Ukraine and the international rules-based system while having “fewer reservations about confronting Russia than some other European NATO member states”. One example is the British arms supply to Ukraine, that remained in place even after the UK changed its emphasis to training local forces. Concerning Britain’s point of view, the British Government has in Ukraine one of its strategic partners for the Global Britain foreign policy that searches for new allies beyond the EU. Enhancing ties with Ukraine is a way for the British Government to display how the UK can reaffirm its position as the leading European contributor to the security of the Euro-Atlantic area and major supporter of the international rules-based system.

 

References

AVERRE, Derek; WOLCZUK, Kataryna. The Ukraine Conflict: Security, Identity and Politics in the Wider Europe. London: Taylor & Francis, 2018.

BIELIESKOV, Mykola; SOLODKYY, Sergiy. Foreign Policy Audit: Ukraine-United Kingdom. Kyiv: Institute of World Policy, Discussion Paper. 2017.

DEVANNY, Joe. UK National Security Decision-Making in Context: The Ukraine Crisis and NATO’s Warsaw Summit Meeting. Ridgeway Information, 2017.

KUZIO, Taras. The Crimea: Europe’s Next Flashpoint. Washington DC: The Jamestown Foundation. November 2010.

MARTEL, William C. “Why Ukraine gave up nuclear weapons: non-proliferation incentives and disincentives”. In SCHNEIDER, Barry R.; DOWDY, William L. (eds.). Pulling Back from the Nuclear Brink: Reducing and Countering Nuclear Threats. 1998.

TOMS, Bate C. Britain and Ukraine unveil new strategic partnership. Atlantic Council. 13 October 2020. 

UNITED KINGDOM. Ministry of Defence. Global Britain in a Competitive Age: The Integrated Review of Security, Defence, Development and Foreign Policy. Ref: CP 403. March 2021.

UNITED KINGDOM. Ministry of Defence. UK signs agreement to support enhancement of Ukrainian naval capabilities. Press Release, June 2021a. 

VOROTNYUK, Maryna. Security Cooperation between Ukraine and the UK. Royal United Services Institute (RUSI). 10 November 2021. 

 

* João Vitor Tossini é doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

Imagem: Desfile de tropas britânicas em Kiev, 2017 (British Embassy Kivy, Crown Copyright).